quarta-feira, 24 de abril de 2013

Alquimia + Conversa com Deus (sem AO90)

Em seguida, transcrevo um trecho do meu romance Batalha (Saída de Emergência, 2011), um livro de forte tónica iniciática e hermética, que, entre outras inquietações, interroga o fenómeno religioso do ponto de vista dos animais. Trago-o à colação para demonstrar que o AO90 é, de facto, incompatível com a liberdade dos escritores; neste caso, inconciliável com a minha voz autoral, animada por um léxico muitíssimo específico, tão arcano quanto neológico. Neste livro, cuja personagem principal é uma ratazana, como é que um "lince" iria, então, limpar as palavras que lhe parecessem inconformes com o AO90?
Não têm os autores a liberdade legítima de decidirem, eles próprios e pelas suas exclusivas razões, como devem ou não escrever? A tirania de um (des)acordo ortográfico nunca deverá servir de obstáculo ou politriz à literatura. Convido-vos, pois, à especulação de imaginarem como ficaria o texto que se segue vertido em "acordês". 

«Reunindo todas as forças, Batalha escavou o túnel mais fundo que os músculos e a dureza da terra lhe permitiram e, como quem esvurma uma ferida infectada, espremeu do crânio os vestígios da passagem pela comuna de ratos domésticos. A humidade do terriço seria o vulnerário com o qual cicatrizaria as feridas do corpo e da mente: como um danado, rolou a cabeça na terra e os torrões que se lhe grudaram no pêlo emprestaram-lhe um semblante pagão – de plutónico deus viticomado: uma potência podalírica. Esgotada a energia, estirou-se.
Sentindo o cansaço apoderar-se de si, vagueou pelo labirinto nemático feito por pensamentos prestes a tornarem-se memórias – malsorteados, eles podem revelar-se inaliáveis, inatingíveis até, mas se puderem ser ligados a lembranças seguras, em selvática sínfise semântica, passam do estado líquido para o cristalino, tornando-se sinónimos de uma vida. Sem a valiosíssima memória, o que seria dos murídeos miseráveis que, derrotados pelo desespero e pelo peso imenso da terra já percorrida, procuram a lassidão subterfluente? Perder-se-iam para sempre, essas pequenas vidas – amebas no coalho de todas as vidas e, no entanto, tão essenciais que o mundo não pôde girar sem elas. E que não pode continuar a existir sem elas.
Manipulada pelo instinto, Caldaça queria Batalha dentro dela. Queria imaginar-se no mesmo sonho seminíparo que todas as vidas, grandes e pequenas, precisam de sonhar para sobreviver, mas, embora não o conseguisse, no instante em que tentou, um sem-número de ratos e homens proctocriavam, de facto, de corpos e carácteres despidos.
Tal como a rancidez se regozija com o ar desprotegido, também a nudez vulnerável é o estado espontâneo da cópula. Nus, todos os bichos são lesáveis e a vulva é uma mitene que só cobre o pénis, deixando o resto do corpo ao capricho do contágio – neurotomias naturais que a todos deixam indefesos. A reprodução é regular, sem sobressaltos, como uma colónia de fungos rompendo a casca grossa dos carvalhos; e, em jeito de alcalóide amanitário, o amor escorre pelos troncos cerebrais abaixo, como vinho entornado: o símbolo universal da alegria, da sorte. O sal desperdiçado, símbolo universal da tristeza, do azar, somos nós todos, nos começos das nossas vidas: brutos, informes, impuros, sem o conhecimento das relações sensuais e da morte. Precisamos, por isso, de ser ungidos, purificados e diluídos com vinho – com sexo e deterioração – de modo a crescer, a amadurecer, a salinar. Só então podemos ambicionar a ser completos, adultos, mas Batalha, repudiando a oferta de Caldaça, estaria sempre perdido, como um infante anquilosado ao crisol, ao colo do útero. Conjuctio do macho e da fêmea – estado principal da Grande Obra, na qual toda a gente participa ou assiste – que gera a Luz: fetos incandescentes, sangrantes e vermelhos como o Sol, que choram e, com esse plangente anúncio, dão início à contagem do tempo – dos seus tempos, porque não existem outros.
O tempo é apanágio da matéria viva – os mortos não precisam dele.
Os mortos não precisam de nada.
E, por mais que fingisse estar morto, no interior do profundo buraco acabado de escavar, com a intenção de ser a sua sepultura, Batalha podia sentir a vida que ainda lhe pulsava no pénis turgescente, nas veias urziformes e na língua ressequida.
Do que é que precisava?
O que é que lhe fazia falta? Pensa, Batalha, pensa…

Quem falou?
Ninguém.
Tu és a minha melhor criação.
O mais esplendoroso filho.
Alguém.
Alguém falava.
Sou Deus.
Deus?
O Deus do padre. Lembras-te de mim? Castiguei os filisteus com ratos e hemorróidas. Sou o Deus dos ratos e dos homens, sou um vórtice para o qual todas as vidas vertem e, vomitivo, devolvo-as à terra, numa girândola que não tem fim nem princípio. Estas volteaduras são a vontade do mundo.
Estava desfeito o mistério das misérias da vida.
Deus caíra na rotina.
Fiz-te à minha imagem, meu Batalha. Hás de morrer e ressuscitar, numa das minhas vomições. Mas tens de acreditar em mim.
Acreditar? E se não acreditar?
Os ratos e os homens são feitos da mesma carne e dos mesmos ossos. Têm o mesmo sangue. Foi a preguiça: ad hoc fiz tudo da mesma massa.
Mas eu não pedi para ser feito, ò Deus.
Não te pedi patrocinato.
Todos os bichos são meus proletários, porque só estão na terra para procriarem e povoá-la. Valem quantos filhotes têm. Já cumpriste o teu papel? Já procriaste? Já provaste o teu valor?
Eu? Eu não valho nada.
Não tenho prole, nem proveito.
Mas tens falta de qualquer coisa.
Se calhar, tenho.
Se calhar, podes tê-la. Através de mim. Não queres a salvação?
Não sei.
É fácil de saber. Não só sou o Deus de todos os homens e de todos os ratos, como o de todos os bichos. E de todas as árvores. Todas as pedras. Até sou o Deus de mim mesmo. Na verdade, tu nem sequer existes: estou a sonhar-te. Quando acordar, deixas de existir.
Quando acordar, deixas de existir.
Quando acordar, deixas de
Quando acordar
Quand

Batalha acordou, sozinho, dentro do buraco que escavara.
Não sabia quanto tempo passara, desde que adormecera, mas percebeu de imediato que o Deus com quem falara tinha sido ele próprio.
Não existem deuses nenhuns, pensou Batalha, sacudindo os grãos de terra que lhe polvilhavam o pêlo. Não existem nenhuns pais do mundo. A não ser nas nossas cabeças. São apenas invenções de homens velhos e de ratos velhos. Só existe a carne. A carne que se gera a si mesma, repetidamente.
Só existimos nós.
Só nós.»