segunda-feira, 28 de abril de 2014

As serpentes também vêm connosco


Noé, de Darren Aronofsky, é capaz de ser um filme visionário. É composto por espantosos elementos visuais, cujos modelos e modos de plasmar na tela já vimos em outros filmes realizados por cineastas de culto (Peter Jackson e George Miller, por exemplo), mas é o modo como esses elementos se conjugam que faz de Noé um filme intrigante. Não é um filme bíblico, no sentido em que o são Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille, A Bíblia de John Huston ou até A Paixão de Cristo de Mel Gibson, mas as maiores derivações ao cânone nem sequer são as sequências que o público poderia achar (e achará) mais fantasistas, como a presença dos Vigilantes, retirados literalmente do Livro do Génesis e dos textos apócrifos judaico-cristãos, como o Livro de Enoch (pai de Matusalém, avô de Noé), entre outros: é a dinâmica emocional entre Noé e a sua família, inclusive a sua emergente dúvida sobre se valerá a pena conservar a espécie humana no mundo lavado de malevolência, algo que está ausente da história original, embora o modo como se apresente retenha uma autenticidade "bíblica" enorme - quase que poderia estar escrito. De qualquer das formas, a história de Noé é um dos episódios mais heterodoxos da Bíblia, tendo sido costurado a partir de várias histórias diferentes sobre dilúvios e redenção, imaginadas pelas diversas culturas que povoaram o Próximo Oriente. É uma história que transcende o bioma judaico-cristão.

O filme de Aronofsky é ambíguo sobre o espaço e o tempo em que a narrativa ocorre: Noé tanto pode ser interpretado como tendo lugar nos tempos veterotestamentários, como num futuro muito distante ou até em outra dimensão. Um detalhe que provocou a minha imaginação foi a presença conspícua de estrelas brilhantes no céu diurno: servem para reforçar a ideia de que Noé se passa num outro mundo ou, simplesmente, é uma forma de representar o céu mais límpido dos nossos antepassados pré-revolução industrial? Seja como for, o efeito é de grande beleza.

A primeira metade do filme é mais bem conseguida que a segunda e este contém mensagens (se forem mensagens) com as quais eu discordo totalmente: leia-se, uma quasicolagem ao ambientalismo extremo que, quando advogado por figuras sinistras e psicologicamente perturbadas como Les U. Knight e Petti Linkola, se transforma em algo que pouco se relaciona, de facto, com o ambientalismo e tem tudo a ver com o anti-humanismo. No entanto, o filme não vai tão longe e, no final, quando a survivor's guilt de Noé começa a dissipar-se, ele compreende o valor da vida humana, que foi a vida que, afinal de contas, foi capaz de salvar todas as outras.