O Fim do Ano nunca me evocou a inverniça
imagem da decrepitude ou senescência de Chronos, mas a de florescências
quasimicológicas, que nem bolor gerando-se geometricamente numa caixa de
petri: pesadelos escatológicos dos esporos anunciantes
daquilo que o Ano Novo poderá conter. É uma época em que vates vencidos
pela vida hipnotizam leitores e espectadores com os mais diversificados
augúrios, que se elencam num espectro que se estende entre o
humorístico e o horroroso, mais parecendo diversas espécies de aves
canoras pousadas em poleiros de diferentes alturas dentro da mesma
gaiola -- umas chilreiam, outras grasnam. Feche-se os olhos e irá
sentir-se o pivete pungente do inconfundível bouquet, mesclado de
matéria cloacal e qliphoths de alpista, que denuncia o facto da gaiola
precisar urgentemente de uma limpeza -- uma Daath em cada casa, cortesia
de... Cortesia de nós todos, bem vistas as coisas: é espantosa a
velocidade a que a escória do ainda infante século XXI se acumula à
nossa volta com o nosso complacente consentimento.
Vivemos num período neo-romano, digo-o há muitíssimo tempo: neste período antipancalista, no sentido em que o Belo não é mais o valor fundamental, o harmonioso só terá licença para existir se for útil -- ou, pior (porque é verdade), utilitário. Os romanos achavam que o belo devia ser utilitário. Os romanos faziam telhas em cima do joelho e, de facto, nestes dias, tudo é feito em cima do joelho, apressadamente, sem respeito pelo suor e cultura que permitem aos anões actuais subir aos ombros de gigantes com cujo cotejo palidejam: qualquer ser pensante não passa de um clandestino nesta realidade desquiciada dos gonzos, mantida em pé, teimosamente, por uma espécie de milagre de feira chamado Mercado. Todos os artigos dispostos nas bancadas dos bufarinheiros do sistema têm de ser produzidos em massa, numerados, etiquetados com um preço injusto e postos à venda. Quando falo em artigos, incluo as pessoas: as pessoas, hoje, não passam de mercadorias. Quando deixam de ser úteis -- utilitárias -- são deitadas ao lixo, que nem electrodomésticos avariados. Com efeito, sem-abrigos, idosos, desempregados são, tal como electrodomésticos, formas de vida baseadas em algo que difere do carbono: são peças mecânicas de uma engrenagem inumana que começou a espiralar infernalmente com força há algumas décadas.
Não quero viver num mundo que deita pessoas para o lixo -- é tão simples quanto isso.
Rejeito um mundo em que o valor humano de um indivíduo é avaliado pela quantia que existe numa conta bancária e no qual os pobres têm, mais uma vez, de ser escravos ou gladiadores para sobreviver.
Sim, a cartilha da competitividade neoliberal transforma-nos a todos em gladiadores do empreendedorismo: directores de empresas lêem Sun Tzu na diagonal e sussuram entre dentes nas casas de banho dos seus gabinetes que assim é que se fazem ofertas públicas de aquisição. A plutocracia nunca foi tão palpável. Tão vaidosa.
Os anos anteriores provaram que a vida é vitrificável quando exposta às altas temperaturas da austeridade e da instabilidade: carne transmuta-se numa finíssima e dura membrana e parte-se. Há pessoas a passar fome e a desaparecer -- ali, ao dobrar da esquina. E, no entanto, a cultura neo-romana infiltra-se em todas as áreas da vida: é um veio que agarra em tudo para desenhar um único e unidimensional organismo, achatado e polinervado como uma folha. Sem mais do que uma dimensão para viver, perde-se o horizonte, perde-se a faculade de erguer a cabeça e olhar para cima. Estamos todos a olhar para o chão.
Os meus votos de Bom Ano Novo para 2015 é que se pare de olhar para o chão e se ganhe a coragem de criar um horizonte. Isso só acontecerá se se rejeitar a hegemónica cultura neo-romana que nos ensopa e, em vez de aceitarmos ser escravos ou nos resignarmos a ser gladiadores, nos atrevermos a ser filósofos.
Não vai ser de um dia para o outro; nem será ao mesmo ritmo para toda a gente. É provável que haja quem não consiga (ou não queira, sequer, tentar). Não obstante, não existe outra solução: é preciso tornar belas as coisas que são meramente utilitárias. Quem não entender isto não entenderá que já perdeu tudo.
Vivemos num período neo-romano, digo-o há muitíssimo tempo: neste período antipancalista, no sentido em que o Belo não é mais o valor fundamental, o harmonioso só terá licença para existir se for útil -- ou, pior (porque é verdade), utilitário. Os romanos achavam que o belo devia ser utilitário. Os romanos faziam telhas em cima do joelho e, de facto, nestes dias, tudo é feito em cima do joelho, apressadamente, sem respeito pelo suor e cultura que permitem aos anões actuais subir aos ombros de gigantes com cujo cotejo palidejam: qualquer ser pensante não passa de um clandestino nesta realidade desquiciada dos gonzos, mantida em pé, teimosamente, por uma espécie de milagre de feira chamado Mercado. Todos os artigos dispostos nas bancadas dos bufarinheiros do sistema têm de ser produzidos em massa, numerados, etiquetados com um preço injusto e postos à venda. Quando falo em artigos, incluo as pessoas: as pessoas, hoje, não passam de mercadorias. Quando deixam de ser úteis -- utilitárias -- são deitadas ao lixo, que nem electrodomésticos avariados. Com efeito, sem-abrigos, idosos, desempregados são, tal como electrodomésticos, formas de vida baseadas em algo que difere do carbono: são peças mecânicas de uma engrenagem inumana que começou a espiralar infernalmente com força há algumas décadas.
Não quero viver num mundo que deita pessoas para o lixo -- é tão simples quanto isso.
Rejeito um mundo em que o valor humano de um indivíduo é avaliado pela quantia que existe numa conta bancária e no qual os pobres têm, mais uma vez, de ser escravos ou gladiadores para sobreviver.
Sim, a cartilha da competitividade neoliberal transforma-nos a todos em gladiadores do empreendedorismo: directores de empresas lêem Sun Tzu na diagonal e sussuram entre dentes nas casas de banho dos seus gabinetes que assim é que se fazem ofertas públicas de aquisição. A plutocracia nunca foi tão palpável. Tão vaidosa.
Os anos anteriores provaram que a vida é vitrificável quando exposta às altas temperaturas da austeridade e da instabilidade: carne transmuta-se numa finíssima e dura membrana e parte-se. Há pessoas a passar fome e a desaparecer -- ali, ao dobrar da esquina. E, no entanto, a cultura neo-romana infiltra-se em todas as áreas da vida: é um veio que agarra em tudo para desenhar um único e unidimensional organismo, achatado e polinervado como uma folha. Sem mais do que uma dimensão para viver, perde-se o horizonte, perde-se a faculade de erguer a cabeça e olhar para cima. Estamos todos a olhar para o chão.
Os meus votos de Bom Ano Novo para 2015 é que se pare de olhar para o chão e se ganhe a coragem de criar um horizonte. Isso só acontecerá se se rejeitar a hegemónica cultura neo-romana que nos ensopa e, em vez de aceitarmos ser escravos ou nos resignarmos a ser gladiadores, nos atrevermos a ser filósofos.
Não vai ser de um dia para o outro; nem será ao mesmo ritmo para toda a gente. É provável que haja quem não consiga (ou não queira, sequer, tentar). Não obstante, não existe outra solução: é preciso tornar belas as coisas que são meramente utilitárias. Quem não entender isto não entenderá que já perdeu tudo.