terça-feira, 12 de julho de 2016

Reflexão sobre futebol


A atenção sem precedentes com que vi o jogo da final do campeonato de futebol Euro 2016 entre as equipas portuguesa e francesa, assim como as subsequentes celebrações, deram-me oportunidade de reflectir com novidade sobre o fenómeno futebolístico. Assim, ao mesmo tempo que constatei que, para a minha sensibilidade, o futebol, como outros desportos, em geral, é aborrecido (os elementos excêntricos - dir-se-ia quasi-narrativos - presentes no desafio, como a presença insólita das traças, a dramática lesão de Ronaldo, logo no ínicio, as defesas infalíveis do nosso guarda-redes, o golo da vitória tão puxado a ferros e marcado habilmente por um jogador que, até ao momento, não figurava na galeria de favoritos de ninguém, foram, com efeito, aqueles que motivaram o meu interesse), também compreendi o motivo pelo qual ele é tão cativante - universal e transversalmente. O fascínio do futebol opera-se ao nível do da música.

O futebol tem personagens, tem espaço e tempo, tem contexto histórico e social, mas tudo isso lhe é, com justiça, acessório: tudo isso é subsidiário daquilo que perdura após a visualização de um jogo, que é, diga-se desta forma, o andamento. Andamento, em sentido musical, incorpóreo, abstracto. No futebol, tudo se faz de cores planas, na acepção de não-misturadas: são cores aplicadas na tela, exactamente tal qual saem do tubo. Não há autêntica expressão individualizada: há regra, há improviso, mas não há estilo. No desporto não há noção de estilo, em feitio artístico: só há regra e riffs sobre essa regra - dá vontade de falar em Jazz, mas, possivelmente, precipito-me. De qualquer das formas, o que permanece do futebol é o andamento: é a pauta feita durante noventa minutos de duração.

De um ponto de vista metafísico, arrisco a hipótese de cada jogo de futebol, assim como cada prova desportiva, ser uma espécie de comentário a uma forma ideal de jogo de futebol plasmado pelas regras e, assim sendo, inacessível e modelar - em profunda analogia com a disciplina medieval do comentário escolástico, em que duas equipas de alunos de uma escola monástica comentavam, ao despique, ao desafio, e cada qual com a sua estratégia, a matéria imutável, inquestionável, dada pelo mestre; por conseguinte, regra e comentário, sendo que, aqui, o comentário não tem como objectivo a procura da originalidade, nem a produção de novo conhecimento, mas, somente, o consolidar a matéria apresentada por meio de um texto clássico estruturado e terminado pela autoridade. Assim é o futebol; assim é, pela larga medida, o desporto: regra e desafio - matéria e comentário. Quem ganha é sempre o próprio conceito de desporto. 

Cântico de coreografia muscular e velocidade, feito de técnica, ritmo e de tonalidades facilmente reconhecíveis, o futebol age no mesmo plano da música. Não é, verdadeiramente, visual, como um filme do qual, algum tempo depois do visionamento, se memoria cenas preferidas ou que provocaram impacto, perfeitamente cristalizadas na mente; nem é, verdadeiramente, verbal, como trechos de um texto que, verbatim, se decoraram. É como a música. Opera, em exclusivo, no plano emocional: pode-se assobiar o andamento futebolístico, quase.