quinta-feira, 12 de abril de 2018

Montaigne: poderia ter sido um "Cristo" para o Estoicismo?



Montaigne foi um individuador, disso não duvido; fresco que venho de mais uma releitura dos seus ensaios, aos quais, brioso, retorno sempre que exequível. Foi, também, um católico paradoxal – mas não no sentido translatício que, hoje, se poderia empregar para designar um católico liberal (ou “não-praticante”). Com efeito, o rigorismo de Montaigne aproxima-o, in limine, de determinadas atitudes evangélicas; como, entre outras, a insistência na pureza de pensamento no acto da oração, tropo que critica evocando um dos contos de Margarida de Navarra sobre o cinismo de Francisco I, que, nessa narrativa, corta caminho pelo interior de um mosteiro em direcção à casa da amante, não se coibindo de rezar virado para o altar a cada ida e vinda (no Heptamerão, publicado postumamente em 1558*). Todavia, em oposição aos pregadores protestantes, Montaigne desconfiava das iniciativas de traduzir-se os textos sagrados para vernáculo; estratégia de divulgação que considerava revogadora da subtil mensagem mistérica – até mesmo iniciática – do corpus crístico.

A esta altura, introduzo uma perspectiva singular que a recente releitura de Montaigne me proporcionou: a de que ele é uma espécie de Cristo do estoicismo. Na verdade, Montaigne é várias vezes seduzido pela ideia que defende uma familiaridade intrínseca entre o cristianismo primitivo e a filosofia estóica; todavia, o autor, de maneira um pouco desorientadora, talvez, em virtude da sua reiterada austeridade, protege a inconstância** intelectual da criatura humana – se o estoicismo defende que o homem sábio é aquele que foi capaz de alcançar o estádio de desejar sempre a mesma coisa e rejeitar sempre a mesma coisa***, Montaigne aconselha a não esperar outra coisa do ser humano, senão a volubilidade. No fundo, é o assumir da improbabilidade do ideal estoicista, provavelmente apenas conseguido pelos mais irredutíveis ascetas – ou pelos santos, o que é quase traduzir no mesmo. Assim, sobre este assunto, sintetizo o credo de Montaigne na seguinte fórmula: o estoicismo foi criado para o homem, não foi o homem a ser criado para o estoicismo.

Não duvido que se Montaigne tivesse, em concreto, enveredado pela sistemática escrita de filosofia teria operado uma mudança profunda nessa corrente filosófica – tão profunda quanto as sismogenias que convulsionaram o universo teológico do seu tempo.    

* Penguin Books, 1986, dia III, conto 25, pp. 288-289.
** Na França quinhentista, a palavra “inconstante” relacionava-se, com maior adequação, com a noção de “diversidade” e não tanto com a de “instabilidade”. Porém, pode perfeitamente aceitar-se que Montaigne se alcandora às duas.  
*** Segundo Séneca em Cartas a Lucílio (Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, carta XX, 5, p. 71).