terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Nota sobre o Absoluto


 
Ao ler neste momento sobre o problema filosófico do Absoluto, lembrei-me, de modo absoluto (isto é, acabado em si mesmo, não-contingente), de determinados espaços que vi poucas vezes na minha infância, mas que sempre considerei fascinantes: a estância e a drogaria. Na minha geografia mental, eles nunca contêm pessoas (tal como as melhores pinturas de Hammershoi), somente um florilégio de objectos e briquebraques, como espelhos, escovas, panos, louças; ali, na estância de atmosfera seca — tão grande que parecia uma imperfeição para a qual a ortogonal malha cosmopolita consistia em pérola — estão suspensas sobre o longo balcão de madeira dezenas de alfaias esqualomórficas, lemniscatas de ferro e cobre cujo uso nunca determinei: que estranha física, aquela que elevava o metal ao tecto e agarrava papel, areia e plástico ao chão, nas formas mais dóceis e perceptíveis de lixas, serraduras e mangueiras. Porém, na recendente drogaria todos os artefactos derivavam uns dos outros, em estonteante reprodução assexuada — amebas de vidro e tecido, de borracha e cortiça, dispostas nas escadas, nas paredes e nas portas. Infenitesimais parafusos coabitavam com colossais misturadoras de cimento, cujo antracíticos ventres davam ares de gigantes caldeirões caligráficos numa lista medieval. Cheira a cera e a suor e a farinha creme que se desprende de contraplacado serrado vai misturar-se como cacau em pó com a luz projectada da rua pela porta. E, no entanto, não existem pessoas nestes espaços atafulhados. Todos os sons, cores e formas estão lá por si só. E ao lado da caixa registadora vê-se um calendário cheio de pó e lascas de ferrugem: sem utilidade num espaço intemporal que é o da mente, é livre para existir por si mesmo, sem a contingência que o unia à marcação do tempo. Tóteme do absoluto num interior tão desértico e relevante quanto uma paisagem marciana.