terça-feira, 21 de maio de 2019

Histórias de café e tabaco


Da mesma maneira que as pessoas, a história nem sempre diz aquilo que pensa; daí ser preciso reparar nos pormenores. Um dos detalhes mais significativos do ascendente de Leni Riefenstahl sobre Adolf Hitler é visível por poucos segundos na segunda parte do documentário Olympia, intitulada Festival de Beleza: passados vinte minutos desde o início, durante a sequência da competição de vela, podemos ver um atleta vestido de preto a manobrar com energia o velame do seu barco enquanto fuma um cigarro. Enquadrado com esmero, o plano exsuda solicitude para com o tripulante tabagista que ocupa a dianteira da composição e nela tudo concorre para que o cigarro refulja como um pirilampo. A sempre sartorial Riefenstahl (embora – por culpa da sua inexpressão cubiculária – nunca se libertando de invocar uma peculiar imagem a que, posteriormente, Russell Hoban daria existência no romance Turtle Diary para caracterizar a quarentona Neaera H.: «parece a mulher de alguém sem o alguém») não se coíbia de ser fotografada de cigarro na boca, num contexto político hostil para fumadores: Hitler abominava tabaco (vira grandes fumadores, como o pai, mais o mentor político Dietrich Eckart, morrer tormentosamente) e as campanhas anti-tabagistas nacionais-socialistas eram as mais duras até à data.
Com efeito, Hitler orgulhava-se do facto de ele e dois ditadores seus próximos, Mussolini e Franco, não fumarem, ao mesmo tempo que líderes adversários, Churchill, Roosevelt e Estaline, não terem vergonha de mostrar-se em público como repugnantes viciados em charutos e cigarros. Profundo conhecedor e grande admirador de Westerns, Hitler gostava de definir o tabaco como «a fúria do Pele-Vermelha contra o Homem Branco, a vingança por todo o uísque que lhe fora dado a beber». Descrita como a medicina do estado, promovida por Himmler e Hess, a recrudescência da homeopatia acompanhou a guerra nacional-socialista contra a outrora chamada erva-santa; em principal, a homeopatia era utilizada contra casos de cancro causados por uso de tabaco, diagnósticos em que a iátrica nazi se especializou. A fumadora Leni, contratada por Hitler para lenificar (nunca um verbo terá feito tanto sentido como neste caso) os estragos morais provocados pela exibição do filme A Oeste Nada de Novo, de Lewis Milestone (baseado no romance do escritor alemão Erich Maria Remarque, veterano da Primeira Grande Guerra), realizou com enorme êxito dois documentários laudatórios da cosmovisão nacional-socialista, Triunfo da Vontade e Olympia, tornando-se, inclusive, uma influente mensageira do regime nazi em Hollywood, onde alguns grandes estúdios aquiesceram a colaborar regularmente com a agenda política alemã.
Em simetria, outra substância que Hitler considerava venenosa para a população adolescente era a cafeína – afortunadamente, a Alemanha havia inventado há umas décadas a descafeinação, processo que, a partir dos anos 30, foi sendo alvo de sucessivas pressões administrativas para tornar-se mais biológico.
Em contraste total com os ideais homeopáticos e holísticos dos protagonistas nacionais-socialistas, outros alemães alimentaram no passado relações menos obstinadas com os seus vícios – e o exemplo que resgato neste momento é o melhor de todos, porque mata dois coelhos com uma só cajadada: Bach, matemaníaco compositor barroco, autor de ascencionais e majestosas sinfonias e sonatas,  escreveu, precisamente, divertidas cantatas para celebrar com alegria o seu amor pelo café e pelo tabaco. Inveterado bebedor de café (e amante de vinho), em bachica (ou báquica) verve escreveu versos como «café, café, tenho de bebê-lo / se alguém me quer bem / então dê-me café», mas de igual modo não dispensava o cachimbo: «é sempre com o meu tabaco / que tenho as melhores ideias / e contente fumarei muito / na terra, no mar e em casa». Na verdade, o texto da cantata do tabaco constrói uma alegoria muito agradável entre a fragilidade do cachimbo, feito de barro, e a debilidade humana, também proveniente da argila: homem e cachimbo estão destinados a partir-se, a repulverizar-se no retorno à terra, mas felizmente serão o aconchego um do outro até chegar esse destino.