quarta-feira, 29 de maio de 2019

O sonho é um órgão autopoiético


O sonho é um órgão autopoiético: cada persona, cada panorama patenteado durante o sono, encerra parte de um padrão numa particularíssima e pessoal topologia que o próprio órgão vai desenvolvendo em detalhe. O órgão do sonho é, pois, físico e diáfano, em simultâneo: não flui sangue nas suas veias, mas memórias dos nossos mortos; e, assim como uma esponja se fragmenta ao ser coada, mas se regenera de imediato do lado oposto da malha de arame, o órgão de sonho dissolve-se quando despertamos, mas reintegra-se intacto cada vez que adormecemos. Este comportamento não é guiado por nenhum sistema nervoso — o órgão de sonho é antigo, primevo e pristino, parente de uma era em que luz e treva eram as coordenadas espaciais existentes. Uma era frondejante de simbolismo — substantivo que, aqui, volta a ser substância, pois simbolismo é metabolismo.
Os mortos por ele são atraídos: não os mortos, em suma, mas os vestígios que deixaram em nós — cada sonho a que o órgão de sonho dá o ser é um icnofóssil: resquícios de vidas que abandonaram a nossa companhia ocultam-se nas suas pregas e arquivoltas; vozes ainda familiares; gramática de cor e artefactos; gestos que pensávamos nunca mais voltar a ver. Serão os nossos mortos invocáveis a partir destas translúcidas palinfrasias? Destes duplos que, como esponjas e remanescentes teriomorfos pré-câmbricos, se dissolvem e sublimam constantemente?
Os pulmões oxigenam o sangue. Os olhos deixam passar a luz. Os sonhos ligam a vida à morte.