quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Lizbona Triumfujaca

A revista polaca Lampa, dedicada à divulgação cultural, lançou um número especial sobre literatura portuguesa; a tónica é colocada na prosa editada depois do 25 de Abril de 1974. Entre excertos de obras de autores como Mário de Carvalho, Lídia Jorge ou José Saramago, encontra-se um do meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), numa tradução realizada por Jakub Jankowski.

Esta edição da Lampa apresenta, ainda, uma amostra de banda desenhada portuguesa, na qual se encontram trabalhos de José Carlos Fernandes, Luís Henriques, João Mascarenhas, Pedro Burgos e João Paulo Cotrim.

Uma edição com o apoio do Instituto Camões de Varsóvia.

Invisualidade sonora

Foi com pena que li que o programa Invisual de Marcos Farrajota, na mítica Rádio Zero, vai de férias durante um tempo indeterminado. Fui lá duas vezes, nas quais me diverti bastante, e até cheguei a levar uns pastéis de Belém para eu e o Marcos comermos enquanto ouvíamos as músicas mais delirantes. Ficam as recordações de uns momentos bem passados.
O Marcos disponibilizou a lista de podcasts para que possam fazer download dos vossos programas preferidos. Deixo-vos os links para as minhas duas entrevistas: a primeira sobre A Conspiração dos Antepassados e a segunda sobre o Lisboa Triunfante, mas, com efeito, ambas acabam por ser sobre várias coisas. (A minha voz ouve-se um pouco mal na segunda, por culpa de um problema inesperado com o microfone, mas nada que um ouvido atento não dê resposta.)

Da minha parte, cá fico à espera que o programa regresse o mais depressa possível.

domingo, 25 de outubro de 2009

"Mucha" no FIBDA








quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Debate sobre literatura fantástica na SPA

No âmbito do ciclo Com Todas as Letras: Livros, Autores e Editores em Debate, uma iniciativa organizada pela revista Os Meus Livros e pela Sociedade Portuguesa de Autores, vai ter lugar no Auditório Maestro Frederico de Freitas (Avenida Duque de Loulé, nº31) o debate FC e Literatura Fantástica: O Reinado da Imaginação. É na próxima terça-feira, às 18H30.

De acordo com o press release, a conversa versará temas como «os universos paralelos, as pontes com a realidade, o mercado crescente, o regresso dos vampiros, a escassez de autores nacionais e outras questões não menos pertinentes. Na mesa, editores, a voz da crítica e quem escreve».

Na mesa estarão João Seixas (editor da Livros de Areia e colaborador da revista Os Meus Livros), Luís Corte-Real (editor da Saída de Emergência), Pedro Reisinho (editor da Gailivro) e eu na qualidade de autor de literatura fantástica.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

MUCHA - Sessões de autógrafos no FIBDA

Os Miiológos:

Dr. David Soares, Dr. Osvaldo Medina, Dr. Mário Freitas.

Estes três académicos, especializados em miiologia por paixão e vocação quasi-religiosa, privaram-se de uma carreira notável na Universidade ao abraçarem a infame linguagem da banda desenhada (coisa que qualquer pessoa séria reconhece como sendo o vício dos iliteratos) para publicarem uma inacreditável tese de doutoramento, desprovida de qualquer qualidade científica, sobre um aterrorizante fenómeno que envolveu moscas, nazis e paganismo polaco, nos finais da década de trinta do século XX. Embora nunca tenham recuperado o prestígio junto da Academia, esperam, no mínimo, que a sua descoberta chegue ao conhecimento dos jovens leitores e, para o efeito, convenceram as boas almas do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora a deixá-los marcar umas sessões de autógrafos, de modo a alertar o público insuspeito e autentificar exemplares de Mucha; publicado pela Kingpin Books, editora orientada para este tipo de material sensacionalista.

Os dias e os horários exclusivos em que estes partiari desesperados estarão presentes no FIBDA são os seguintes:

- Dia 24: das 17H00 às 18H00.
-Dia 25: das 17H00 às 18H00.
- Dia 31: das 15H00 às 17H00.
- Dia 1: às 18H00
- Dia 7: das 17H00 às 18H00
- Dia 8: das 17H00 às 18H00.

Da minha parte, aviso que só irei estar presente no primeiro e no último fim de semana do festival, mas o Osvaldo Medina e o Mário Freitas estarão à espera de quem aparecer no segundo fim de semana, claro.


sábado, 17 de outubro de 2009

A burocratização do Mal

«O horror inventado pode ser avassalador», escreveu Susan Sontag em Regarding the Pain of Others.
Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, filme realizado por Pier Paolo Pasolini, é uma obra dessa estirpe.

A natureza da arte é criar beleza; e o cinema, como a fotografia, fá-lo de um modo descomplexado, inclusive quando a matéria apresentada prima por um insustentável grau de violência (Witkin, Peckimpah, Verhoeven). Quer se trate de instantâneos capturados no campo de batalha ou cenas gravadas numa cela escura de uma instituição punitiva existe sempre uma composição vestigial mecanizada pelo fotógrafo ou pelo cineasta, uma certa direcção artística. Mas em Salò não existe nenhuma beleza; no mínimo, beleza envernizada. As imagens do filme são baças e estáticas. Sobretudo não indicam um juízo de valor e isso é confuso o suficiente, pois essa nudez quasi-documental faz do espectador um cúmplice.

Num pequeno documentário que integra os extras da edição em DVD da Costa do Castelo Filmes, a realizadora de Romance, Catherine Breilat, diz que Salò é uma obra cinematográfica que oferece uma experiência impossível de ser alcançada ou ultrapassada pela leitura. Sinto-me inclinado a concordar, pois considero que a imaginação individual é, por vezes, demasiado pobre em experiências alarmantes para fabricar imagens que consigam evocar sentimentos semelhantes aqueles que assolam o espírito e o corpo diante de obras como Salò.
Não obstante, discordo, de igual modo, de Breilat, porque o filme de Pasolini é, na sua máxima espessura, uma obra literária.

O realizador da Trilogia da Vida é, acima de tudo, um escritor e os filmes que nos deixou, mais que imagens sobre enredos, são contos ilustrados por imagens animadas. Esta desventura que nos conta a história de quatro italianos, pertencentes à elite fascista, que decidem acabar os seus dias numa propriedade isolada de modo a dedicarem-se a ininterruptos exercícios de crueldade é toda contada em pequenos episódios, seja pelas prostitutas incumbidas de abrir as sessões orgiásticas com relatos titilantes ou por farrapos que parecem ter caído de um caderno de apontamentos como são exemplo os diálogos delirantes entre os velhos pederastas. É uma espécie de A Grande Farra às avessas.

Acredito que as alacridades perpetradas pelos carcereiros são comentários aos contos das prostitutas: a personagem interpretada por Umberto Paolo Quintavalle, ele próprio um escritor sem experiência de representação e convidado por Pasolini em virtude da compleição doentia, interrompe o relato da primeira prostituta e exige que ela seja pródiga em pormenores. Só dessa forma, explica, pode ele, e os colegas, retirar o combustível necessário às diabruras.

«É aceite entre os verdadeiros libertinos que as sensações comunicadas pelo ouvido são as mais vivas.»(1)

O conto de prostíbulo é a primeira obra e a sevícia imaginada em seguimento é, dessa forma, o comentário - o segundo texto. O homem que corrompe o corpo do adolescente que escolheu para vítima é, apenas, um crítico, um teórico que intenta complemetar o opúsculo original e explorar as possibilidades gramaticais que este deixou em aberto.

Acentuei gramaticais e não semânticas, pois as brincadeiras ofensivas não visam a pessoalidade da vítima nem a intimidade que poderia ter-se desenvolvido entre ela e o carrasco. A violência dirige-se ao corpo; e ao corpo enquanto aparelho composto de peças (mãos, boca, órgãos genitais) que podem ser substituídas por outras se manifestarem defeito. Um bom exemplo dessa lógica industrialista é uma cena iniciática na qual um dos fascistas recusa uma rapariga durante uma mostra porque lhe descobre um dente cariado. Não existe qualquer desejo em Salò e nenhum ódio. Existe burocracia.

Uma vontade de parar o tempo histórico exterior aos muros da propriedade tornada campo de concentração e que anuncia a capitulação do fascismo que protege a República de Salò criada por Mussolini. O que os quatro fascistas tentam fazer é cristalizar o fluxo; ou melhor, fazê-lo circular como o tempo vivido pelas sociedades primitivas. Justifica-se, assim, a escolha do calendário dantesco (os Círculos das Manias, da Merda e do Sangue) que orienta os dias deles de volta ao primeiro instante - à inauguração: a esse momento recheado de novas possibilidades e novos corpos prontos a ser abraçados. Os fascistas de Salò não temem o tédio, pois sabem que tudo irá recomeçar: o tempo é o seu palimpsesto.

«Belo e certo céu, vê-me a ser diferente! Após tanto orgulho, tanto e estranho ócio, carregado embora de estranhos poderes, faço a minha entrega ao espaço brilhante, sobre o lar dos mortos corre a minha sombra (…)»(2)

O Mal que respira em Salò - e argumentar que conceitos de Bem e de Mal não se aplicam a este filme é falacioso - é um terror despersonalizado; no sentido da não-encarnação. É um ectoplasma indistinto que voga sobre os indivíduos, moldando-lhes o comportamento, como o clima. É o mesmo tipo de mal que encontro nos aparelhos punitivos das histórias de Kafka e nas figuras intersticiais dos Ringwraiths de O Senhor dos Anéis, de Tolkien: uma presença que mais que testemunhada é sentida.
A burocratização do mal, epígona da metade do século XX, não é fruto da hierarquia que se instaura no interior da propriedade, e que rege tanto o escritório como o excretório, mas, possivelmente, contingência de um fenómeno mais antigo: o advento do Iluminismo e a cessação das meta-narrativas (mitos) de ordem religiosa.
Com efeito, a imagem analógica do campo de concentração endémico do período da Segunda Grande Guerra é o Inferno.

«Tem-se falado muito da solidão e da desorientação do homem desde a época em que o Paraíso deixou de ser objecto de uma crença activa. Conhecemos o vazio neutro dos céus e o seu terror. Mas talvez a perda do Inferno tenha sido mais devastadora ainda. Talvez a transformação do Inferno em pura metáfora tenha deixado uma lacuna formidável nas coordenadas do reconhecimento espacial e psicológico do espírito do Ocidente. A ausência dos condenados familiares escavou um vórtice que o Estado totalitário contemporâneo terá vindo preencher. Não temos Paraíso nem Inferno é ficarmos intoleravelmente despojados e sós num mundo sem espessura. Dos dois reinos perdidos, verificou-se que era o Inferno o mais fácil de recriar. (As suas descrições tinham desde sempre sido mais precisas.)»(3)

A casa de Salò é um Inferno miniaturizado e as quatro personagens que a governam são embaixadores dos poderes institucionais: temos um juiz, um bispo, um duque e um político. Todos eles casados com as filhas uns dos outros, como que para sublinhar o pacto - a consanguinidade - entre os departamentos. A fenomenologia da hierarquia é a dominância, claro, mas mais que o simples jugo dos indivíduos, sob graus de exigências, é a domesticação do desconhecido. Numa hierarquia cada um tem o seu lugar cativo e as relações entre constituintes cumprem-se pela correspondência. Ora, o Homem hierarquizou o Inferno - em círculos, em diversos níveis de torturas para os pecados mais exóticos, regidos por castas demoníacas de diferentes importâncias - para o conhecer: para negociar com o Inominável.
O Diabo que atende o sacrifício do nobre é superior ao Familiar que auxilia a bruxa, e assim cada qual controla o seu medo do desconhecido com um sistema de correspondências que não assusta ninguém pois reproduz o modelo feudal terreno. A perda de todo esse sistema deixou, com toda a certeza, cicatrizes profundas no nosso tecido cultural. A transcrição de George Steiner aponta um efeito dessa queda, mas haverá outros.

Baseado no livro homónimo escrito pelo Marquês de Sade, Salò suplanta esse trabalho literário e apresenta-se como um objecto mais lúcido: o humor do filme é sempre acidental, inversamente ao humor de Sade que procura ser constante. Pasolini cita Pierre Klossowsky, irmão de Balthus Klossowsky, e o seu Sade, Mon Prochain (título que evoca S. Bento Labre que comia as lombrigas expulsas nas próprias fezes), Roland Barthes e Sade, Fourier e Loyola, entre outros autores. Curiosamente, olvidou, intencionalmente ou não, o ensaio de Bataille em La Littérature et le Mal. O enredo de Salò pode ser entendido como uma sátira (grotesca) à erotização da relação que se estabelece entre professor e aluno. Como se os assassinos procurassem discípulos dignos entre as vítimas e as torturas fossem uma correspondência desproporcional com os ritos de passagem arquetípicos que os neófitos precisam cumprir para ganharem a confiança dos Mestres e garantir o treino intelectual ou físico. A ir por esse caminho, também ele legítimo, encontro nesta transcrição de Yukio Mishima o exemplo perfeito dessa premissa:

«Ele é o homem mais livre do mundo... Ele acumula o Mal e ergue-se sobre ele. Se quisesse, poderia tocar a Eternidade com as pontas dos dedos levantados. Ele que fez santidade da imundice.»(4)

Os celerados de Salò afundam-se na bebida e em acesas discussões filosóficas sobre a natureza do Mal. É preciso não esquecer que são eles a elite do seu país: aqueles que lêem e têm acesso à cultura estrangeira alvo da censura imposta pelo regime. Assistimos à aniquilação da civilidade do Homem de Cultura, pois ele não previne a barbárie e acaba, enfim, por se perder em prejuízo de rituais sem sentido que têm como objectivo iluminar o seu espírito sobre um conhecimento mais elevado, mais transcendental. Sob a égide de que nada deve ser proibido se for excessivo, os fascistas de Salò almejam a ascese, mas o próprio movimento circular em que estão imersos regurgita-os sempre à ignorância. O Homem Clássico foi, em certa medida, um felizardo, pois nunca travou conhecimento com a face mais desumana do seu descendente.

Salò pertence a uma escola de cinema que se extinguiu. O casting de Pasolini é correctíssimo: as composições dos quatro fascistas são verdadeiramente repulsivas. Neste filme tudo é feio – até atonal.
No cinema, o texto literário é, cada vez mais, somente uma legenda para a imagem projectada. Em Salò as imagens ferem, é certo, mas quem deixa marcas é a palavra.
Mandatório. Nem que seja visto só uma vez.

(1) Marquês de Sade, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma.
(2) Paul Valéry, O Cemitério Marinho.
(3) George Steiner, No Castelo do Barba Azul: Algumas Notas Para a Redefinição da Cultura.
(4) Yukio Mishima, Madame de Sade.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Vencedores do passatempo "Mucha"

Afinal já estão apurados os vencedores do passatempo Mucha.

Foram vinte e três participações e só três pessoas deram a resposta certa. As duas mais rápidas foram enviadas pelas leitoras Raquel Pais e Paula Robalo. Ambas ganharam um exemplar de Mucha, assinado por todos os autores. Parabéns!

A resposta certa era: miiófobo.
A fobia por moscas chama-se miiofobia.

Obrigado a todos os que participaram.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Passatempo "Mucha"

Dois exemplares de Mucha (assinados por mim, por Osvaldo Medina e por Mário Freitas) estão à espera dos leitores dos Cadernos de Daath que responderem de modo correcto a esta questão: que nome se dá a quem tem fobia por moscas?

Até ao final desta semana enviem um email com a resposta certa, mais os vossos nomes, para o seguinte endereço: passatempo.mucha(at)gmail.com. Os mais rápidos ganham.

Para a semana, divulgo os nomes dos vencedores. Boa sorte!

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

"Mr. Burroughs" em livro de ensaios sobre BD

O meu álbum de banda desenhada Mr. Burroughs, desenhado por Pedro Nora e editado há nove anos pela minha (entretanto extinta) chancela pessoal Círculo de Abuso, é um dos livros escolhidos pelo académico Bart Beaty para figurar no seu ensaio sobre banda desenhada intitulado Unpopular Culture (Universtity of Toronto Press, 2006).
Diz Beaty que Mr. Burroughs é uma «surrealist, nightmarish reconceptualization (...) flattering to the comics form, seen as it is by many as a cross between literature and the visual» (pg. 101).

É sempre bom ver quando o nosso trabalho é reconhecido lá fora, sobretudo a nível académico.
Mr. Burroughs foi publicado em francês pela editora franco-belga Frémok (2002).

(Eu, numa loja de BD em Paris, com a edição francesa de Mr. Burroughs.)

Teleplasma

A televisão vem ocupar o lugar vagado pela prática da feitiçaria, assim como a feitiçaria arrogou para si o papel desempenhado pela guerra primitiva.
Segundo Gilles Lipovetsky a feitiçaria é: «a prossecução do imperativo de guerra por outros meios. (...) Toda a desgraça provém de uma violência mágica, de uma guerra perniciosa, de tal maneira que aqui o outro só pode ser amigo ou inimigo segundo um esquema semelhante ao instituído pela guerra e pela troca. Com a regra de reciprocidade, com efeito, ou os homens trocam presentes e são aliados, ou se interrompe o ciclo dos presentes e os homens tornam-se inimigos. A sociedade primitiva que, por um lado, impede o aparecimento da divisão política, gera, por outro lado, a divisão antagónica na representação da relação de homem a homem. Não há indiferença, não há relações neutras como as que irão prevalecer na sociedade individualista. (...) na feitiçaria, uma vez que tudo o que de funesto acontece ao ego se liga necessariamente a um outro. Nos dois casos, os homens não podem pensar-se independentemente uns dos outros; o sortilégio não passa da tradução invertida da dádiva de acordo com a qual o homem só existe numa relação socialmente pré-determinada com outro. (...) não há feitiçaria na sociedade em que o indivíduo só existe para si próprio; o desaparecimento da feitiçaria na vida moderna não pode ser separado de um novo tipo de sociedade em que o outro se torna a pouco e pouco um desconhecido, um estranho à verdade intrínseca do ego.»

E ainda: «Com o Estado centralizado e o mercado, surge o indivíduo moderno, considerando-se a si próprio isoladamente, absorvendo-se na dimensão privada, recusando a submeter-se às regras ancestrais exteriores à sua vontade íntima, não reconhecendo já como lei fundamental senão a sua sobrevivência e interesse próprio.»

Mesmo conhecendo a existência na antiguidade de fenómenos republicanos, mais ou menos oligárquicos, a república moderna só emergiu depois da ruína das instituições monárquicas e com a elaboração de um novíssimo conjunto de princípios, correlacionados com exigências de carácter democrático; doutrina que atinge o ponto de ruptura com os sistemas regentes durante a Revolução Francesa, a partir da qual o sistema republicano se converte no regime predominante em França e em muitos outros países.
O rompimento com as tradições monárquicas e o feudalismo assinala, também, um divórcio com uma visão creacionista do mundo e a influência da igreja sobre a sociedade diminui, contribuindo para isso a propagação da Revolução Industrial e a formação de novíssimos agregados familiares nos quais a hierarquia encabeçada por uma única figura masculina de poder já não se reflecte nas relações entre pais e filhos, fragmentadas pelo mecanismo que os alimenta. Com a revolução industrial surge a necessidade de alfabetizar as classes mais pobres. A dinâmica laboral evolui e o sucesso da sua manutenção depende de trabalhadores cada vez mais especializados que saibam ler instruções e calcular situações rápidas e gradualmente mais complexas. Nasce a chamada Classe Operária.

Mais ou menos contemporânea destas mudanças paradigmáticas, a televisão é fruto de uma série de invenções isoladas que têm início com a criação de um dispositivo para transmitir imagens à distância imaginado pelo físico alemão Paul Nipkow, em 1884, e que culminam em 1934 com a apresentação do iconoscópio de Vladimir Zworykin, aparelho que abre caminho à criação dos primeiros televisores completamente electrónicos. A televisão vem unir os indivíduos alienados por um mundo tornado grande demais de repente e fabricar novas tradições que comunicam com a sua própria difusão: os acontecimentos mais importantes da vida mundial passam a ser vistos por milhões de pessoas através do ecrã da televisão; e, mais que o cinema, a televisão é passível de ser transformada em fétiche só por ser um objecto táctil. A televisão não só é para ver (em alemão, televisão diz-se fresehen; literalmente, olhar à distância) como para mexer e para criar presença.

A televisão passa a ser parte da família: é um elemento que partilha histórias e faz companhia, mas pode revelar-se um elemento castigador ou um poderoso agente de tentação. O olho humano deixa de ser um órgão da visão para ser uma mucosa, como a boca, pela qual os nervos são estimulados - viciados. A hipertrofia da estimulação obriga a doses cada vez maiores de estímulos visuais de maneira a ultrapassar os limites de tolerância criados pelo cérebro; tal como a cera que é segregada pelos ouvidos para proteger os tímpanos de, lá está, noise.

A substância televisiva - teleplasma? - modifica o espectador, aproximando-o de si, ao mesmo tempo que esse mesmo espectador tem um papel decisivo na formatação dos programas. Ele não é hospedeiro da emissão televisiva, mas seu «cúmplice»; citando uma palavra do filósofo brasileiro Moniz Sodré, que se dedica ao estudo dos grandes veículos de comunicação. Vale a pena sublinhar o carácter regulador da televisão, que acaba por funcionar num sistema de punição e recompensa. (E, nesse sentido, semelhante ao fenómeno da feitiçaria estudado por Lipovetsky.) Mas onde na fenomenologia da feitiçaria podemos facilmente detectar os vestígios da acção do pensamento mágico, ou a presença do sobrenatural, no universo telegístico a tarefa não é simples. No mínimo, a um primeiro escrutínio, pois o que fazemos, erradamente, é transferir para o segundo exemplo a crença de que existe algo mais que sensações e prazeres, órgãos e corpos, sistemas e funções. Também na feitiçaria a vontade sobrenatural não existe: existe, sim, um comprimento de onda. Esse comprimento de onda, essa identidade - e como identidade assumo toda a cultura que está na origem do fenómeno da feitiçaria, e, por extensão, do televisivo - é, na realidade, uma espécie de texto: de guião. Mas um guião que é inato. Esse texto é, também, o elemento sobrenatural do fenómeno televisivo.
O binómio Televisão + Feitiçaria faz todo o sentido quando observado à luz da separação de classes.

O chamado telelixo, composto por reality-shows e programas humorísticos de gosto duvidoso cumpre a função de criar sedimentos de diferentes espectadores. As classes carenciadas culturalmente aderem com mais prontidão ao fascínio da feitiçaria e aos mistérios do oculto de pacotilha, porque, paralelamente à religião, lhes oferecem modelos domésticos de controlo fáceis de dominar; e, já que é assim, absorvem com igual prazer o denominador comum mais rasteiro que lhes entra em casa pela televisão. Mas nada disto é novidade: a televisão de grande audiência acaba por ser como o freakshow que atraía as pessoas à praça pública para que escarnecessem dos aleijados e dos anões.

A própria câmara televisiva aproxima-se do kit da feitiçaria porque evoca o símbolo protector usado pelos supersticiosos contra o malocchio: um vítreo olho ciclópico. Contudo, se também o ecrã pode ser um olho será sem dúvida o da Górgona Medusa: a televisão faz estátuas de pedra de todos nós.

sábado, 10 de outubro de 2009

Os senhores das moscas no FIBDA

A 20ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora (Fórum Luís de Camões) abre as portas ao público no próximo dia vinte e três e decorre até dia oito de Novembro. O grafismo de apresentação é da autoria de Rui Lacas, autor português que no ano passado ganhou dois Prémios Nacionais de Banda Desenhada para as categorias de Melhor Álbum Português e Melhor Argumento. Como é habitual, muitos autores portugueses e estrangeiros estarão no FIBDA para apresentar os seus trabalhos e falar com os leitores. Entre os estrangeiros, destaque-se as presenças de David Lloyd, Cameron Stewart, Oscar Zarate, Karl Kerschl, Ramón Pérez e C.B. Cebulski.

A vinda de Stewart, Kerschl, Pérez (assim como de Cebulski) é uma iniciativa da Kingpin Books, que no âmbito do festival irá editar um álbum com trabalhos dos três canadianos, compilando em papel alguns dos webcomics de grande qualidade que são produzidos pelo estúdio TX Comics. Não percam a oportunidade de conhecer os trabalhos destes autores, também responsáveis por títulos como Seaguy, Marvel NYX: No Way Home e Flash.
No dia vinte e dois, Cebulski estará presente na loja da Kingpin Books para conduzir uma Master Class e avaliar portfólios. (Consultem o weblog de Mário Freitas, editor da Kingpin Books, para ficarem a saber todos os pormenores sobre estas e outras iniciativas.)

No que diz respeito à produção nacional, ela estará representada por Mucha, o meu novo álbum de banda desenhada, ilustrado por Osvaldo Medina e arte-finalizado por Mário Freitas.
Trata-se de uma história de horror, que marca o meu regresso à escrita de bd, seis anos depois da publicação de A Última Grande Sala de Cinema, álbum vencedor de uma bolsa de criação literária do IPLB/Ministério da Cultura em 2002. (Um regresso antecedido pela publicação da banda desenhada Rei Arenque, escrita por mim e desenhada por Richard Câmara, feita de propósito para o catálogo da 17ª edição do FIBDA e, entretanto, publicada no número onze da revista espanhola de banda desenhada Barsowia.)

A história de Mucha é negríssima e o Osvaldo e o Mário fizeram um excelente trabalho em recuperar o espírito e o grafismo dos velhos comics de horror da EC Comics. Pela minha parte, espero conseguir horrorizar-vos e, ao mesmo, tempo, fazer-vos pensar, pois é mesmo para isso que o Horror serve.
Poderão ver as pranchas originais deste trabalho e as do álbum A Fórmula da Felicidade, escrito por Nuno Duarte (Kingpin Books, 2008), numa grande exposição temática que, segundo me parece, contará com uma mosca gigante. O Osvaldo e o Nuno estão nomeados para os Prémios Nacionais de Banda Desenhada deste ano para as categorias de Melhor Desenho e Melhor Argumento, assim como o próprio álbum também se encontra nomeado para Melhor Álbum Português.

O lançamento de Mucha será no dia vinte e quatro (sábado), à tardinha, que é a hora em que as moscas se tornam mais mansas, à aproximação da queda do seu metabolismo por falta de açúcar. Em breve, darei mais pormenores, como os horários desta apresentação e das sessões de autógrafos.

(Entomólogos honorários: Eu, Osvaldo Medina e Mário Freitas.)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A raposa e a serpente

O crítico de banda desenhada Pedro Moura descobriu este livro de introdução à lógica, escrito pela professora de filosofia Mary Rowland Haight, e enviou-me a imagem da capa: intitula-se A Serpente e a Raposa.

Não conhecia este livro, mas fiquei muito intrigado com a coincidência da autora norte-americana ter escolhido duas criaturas que são as personagens principais de Lisboa Triunfante: a Raposa e o Réptil (sob a forma de um lagarto e de uma serpente).
Como o aniversário da publicação do romance se aproxima, achei que a descoberta deste título consitia em algo bem curioso - mais uma sincronicidade a ser adicionada à mitologia da raposa e do réptil que desenvolvi, tanto no romance como no companion.

Afinal os arquétipos andam por aí e nós também andamos por aqui a pensar que queremos escrever sobre eles, mas se calhar eles é que querem ser escritos por nós.

Crítica a "Scorpio Rising" (e não só)

Dizer que os americanos são incultos não é a mesma coisa que dizer que a América não tem cultura e aqui está o livro Scorpio Rising: Transgressão Juvenil, Anjos do Inferno e Cinema de Vanguarda, de Ondina Pires, para prová-lo. À superfície é uma análise do filme Scorpio Rising de Kenneth Anger, mas basta começar a lê-lo para se perceber que as intenções autorais não se esgotam nesse desiderato.

Sob o olhar de Pires, cujo Scorpio Rising consiste na publicação em livro da sua tese de mestrado em Estudos Americanos (Universidade Aberta), é nos mostrado que a cultura americana existe, de facto, mas que se trata de uma cultura ready made, usada na maioria das vezes como aríete.
Em conversas com amigos costumo dizer-lhes que a cultura americana até parece ser de esquerda, pois dirige-se sempre à ruptura e à mudança, mas isso, num país que ainda por cima não nenhumas tradições nem partidos de esquerda, pode ser entendido como um quadro fortalecido por imensos factores: a própria adolescência do país, quando comparado com a vetusta Europa (em sentido figurado: quem é que quer ser "de direita" aos quinze anos?), a constatação de que foi colonizado por peregrinos de raiz protestante que têm um pavor ingénito a tudo o que cheira a institucional e o isolamento geográfico face ao continente europeu.

Penso que é essa desconfiança sentida por qualquer espécie de cartilha institucional que faz da cultura americana uma espécie de "fartar vilanagem" pop: tudo é descontextualizado, tudo é dissolvido, interrogado e coagulado em novos formatos e linguagens. É por essa razão que, por exemplo, no filme Scorpio Rising assistimos a um entretecimento entre as iconografias nazi, gay e cristã, numa amálgama que nunca poderia ter sido sequer pensada por um europeu de 1964, ano em que esse filme de Anger foi realizado. Um escritor como Burroughs, para citar outro exemplo, nunca poderia ter nascido na Europa, assim como Anger é um cineasta essencialmente americano. Hoje em dia, com a velocidade a que se processam os cruzamentos de referências, as coisas não serão bem assim, mas nos anos sessenta, época em que não existiam os meios de comunicação e disseminação de mensagens que possuimos à nossa disposição, este carácter distintivo entre aquilo que é um modo de pensar europeu e um modo de fazer à americana apresentava distinções bem definidas, até conservadas sob visões mais ou menos preconceituosas sobre o que é a Alta ou a Baixa cultura.

Por conseguinte, ao ler Scorpion Rising de Pires de comigo envolvido numa espécie de debate muitíssimo interessante, porque nem sempre concordei com as propostas da autora, mas, ao mesmo tempo (e é para isso que servem os livros) também encontrei matéria de reflexão. A conclusão é que Scorpio Rising faz bem à cabeça: está muito bem feito, com uma sólida argumentação e ainda melhor documentado. É sempre um grande prazer ler livros escritos por quem sabe do que está a falar e Pires é um bom exemplo dessa premissa. Todavia, não existe em Scorpio Rising um único pensamento que se aventure a "sair da caixa". Uma consequência da sua prévia encarnação enquanto tese (nas quais quase nenhum raciocínio pode ser formulado sem ser apoiado por documentos existentes)? É possível - e esse é o ponto fraco de Scorpio Rising. Os pontos fortes são os momentos em que Pires discorre sobre Arte Popular, Arte Pop, culturas mainstream e underground, linguagem cinematográfica e a herança de Anger.
Entre outros excertos de mérito, posso citar este: «A falta de impacto comercial do cinema alternativo reside no condicionamento alienante das massas populares do cinema mainstream financiado por produtores, políticos e lobbies económicos a quem não convém a abertura das "portas da percepcção" (cf Aldous Huxley) desse público, preferindo o êxito fácil de melodramas sentimentalistas, pornografia e comédias de baixo coturno, divulgadas pelos mass media - um quase terrorismo cultural totalitário que tem contaminado a Cultura Popular. Pelo motivo acima apontado, o cinema de vanguarda é visto pelo público como um alienígena subversivo e complicado de entender, algo que está acima do comum espectador, como por vezes se ouve em sondagens de rua. Contudo, convém não generalizar em termos de qualidade, que todo o cinema vanguardista é bom e que todo o cinema tradicional é mau. Assim como foi dito em relação às subculturas juvenis, nem todas tiveram qualidades positivas pois nada fizeram para apresentar soluções alternativas ao Sistema. Também é importante registar que sem cinema mainstream não teria havido cinema avant-garde, pelo que foi possível a este ir ao fundo das questões high/low cultures, sem entraves económicos, políticos e artísticos» (pgs. 120-121).

Neste excerto encontram-se várias questões importantes que podem ser dirigidas, também, à literatura.

O livro Scorpio Rising é, pois, uma bela proposta conjunta da Chili Com Carne e da Thisco, que vale muito a pena ler e cujo tema de análise abre canais de comunicação para outros assuntos. Um título que foi referenciado na revista Os Meus Livros deste mês.
Não posso deixar de destacar o excelente design de edição (João Cunha) para a luxuriante capa ilustrada pelo artista João Maio Pinto. Anger iria gostar...

("-Fancy a fag?")

E falando em João Maio Pinto, urge divulgar a primeira publicação impressa (enquanto entidade apartada de textos de outros autores) do seu trabalho como ilustrador: The Gleaming Armament of Marching Genitalia (mmmnnnrrrg, 2009). A edição é o número vigésimo primeiro do famoso fanzine português de banda desenhada Mesinha de Cabeceira, editado por Marcos Farrajota.
O título, que também é o de uma música da banda-sonora do filme Christmas on March (realizado e produzido pela banda The Flaming Lips) não é tão intrincado quanto os desenhos dendriformes de Maio Pinto, artista que tem um talento verdadeiramente paganiniano para desenhar cenas convulutas sem as transformar em objectos amorfos. Esta é, apenas, uma pequena amostra do seu belíssimo trabalho e capacidades artísticas, claro, mas sobre ela muito bem pensou Pedro Moura, crítico de BD que escreveu uma crítica a esta proposta de Pinto que eu vos convido a ler.


terça-feira, 6 de outubro de 2009

Crítica a "2666"

«Acordai, pecadores, acordai, não durmais mais; Olhai que estão ardendo em chamas as almas dos vossos pais que vos deixaram os bens e vós deles não vos lembrais.»
(Cantiga de "Encomenda de Almas", típica de Miranda do Douro)

«The analogy between ancient practice and modern pantomime is often stirking in the extreme. From the myth of Lityerses as sung by the Phrygian harvesters, it can be deduced that it was once the custom to seize a stranger who happened to pass a cornfield and to put him to death as a human embodiment of the corn spirit. The mythical Lityerses used to regale the passing stranger with food and drink, then take him to the cornfields on the banks of the Meander and compel him to reap with him. Lastly he would wrap the stranger in a sheaf, cut off his head with a sickle and carry away his body awathed in corn stalks. At Carnival time in the Vinhais district of Trás-os-Montes, young men disguised as Death or as the Devil seize any passing stranger and make him kneel on the bare earth while the assembled multitude cry "Death!
(Rodney Gallop, Portugal: A Book of Folk Ways)

«"Do you think," asked Afanasievna, "that the dead feel sexual desire?"»
(Roberto Bolaño, 2666)


Talvez não seja uma coincidência que tenha acabado de ler o romance 2666, de Roberto Bolaño, nesta altura do ano, em que o cadáver do Verão ainda está morno, para lá de qualquer expectativa; o calor que se desprende das ossadas do estio está longe do vigor fastígio dessa estação, mas, mesmo assim, pode escaldar se nos mantivermos muito tempo na sua proximidade. Nesse sentido, recheado de panoramas áridos, setentrionais, 2666 queima, não como o Sol do zénite, o que seria de esperar, mas de mansinho, quase docemente. É um calor corrupto que, passando despercebido ao longo de centenas de páginas, vai fritando por dentro.

O hype que a publicação do romance provocou por todo o lado é perfeitamente compreensível: 2666 é muitíssimo bom.
É, também, muitíssimo bom poder falar bem de um livro que está na moda, já que é raro um grande fenómeno de popularidade construir-se à conta de uma obra desta monumentalidade. Não acho que seja um romance genial. Ou melhor: que seja tão bom quanto já o descreveram, mas reparem que, na minha opinião, isso só é assim porque já li outros livros que me impressionaram mais. Até hoje li muitos livros bons (felizmente) e há poucos que considero verdadeiramente geniais. Darconville's Cat é um deles. Com efeito, pouquíssimos romances conseguem alcançar as alturas a que chegou Alexander Theroux (irmão do escritor Paul Theroux) com a escrita desse título magnificente que (até agora) considero o romance mais genial que li. O livro de Theroux é prodigioso. 2666 é "apenas" muitíssimo bom... Mas quão muitíssmo bom ele é!...

Ombreia com monstros literários sem que estes lhes façam sombra; e, contudo, imiscui-se nesse panteão de uma maneira mansa. Uma mansidão que nada tem a ver com tibieza, mas com o tal calor sorrateiro que mencionei no início.
Bolaño quer transmutar-nos: pôr-nos a ferver para, sob a forma de vapor, ascendermos a outros estádios de consciência. Afinal de contas, esse é o objectivo de qualquer obra artística que se leve a sério: operar mudanças - e, de acordo com essa premissa, 2666 é um êxito da mesma ordem que o sucesso crítico que recolheu. Operará é mudanças lentas. Tão lentas quanto as espreguiçadelas das camadas estratigráficas da terra. Não estaremos vivos para ver os efeitos que irão provocar, mas é bom que possamos testemunhar as primeiras fissuras.

Li um exemplar traduzido por Natasha Wimmer, porque tive dúvidas se iria ser capaz de compreender o original de língua espanhola. Como não estou habituado a ler nesse idioma preferi não arriscar e comprei a versão em inglês para não perder informação (a versão portuguesa ainda não tinha sido publicada). Por conseguinte, a minha avaliação de 2666 é feita sobre a tradução inglesa.

A prosa de Bolaño (consequência dessa versão?) é simples, apesar de nada ter de simplório. Somente não contém nenhuns florilégios, daqueles que levantam obstáculos à leitura quando o autor não é hábil o suficiente para os domar. Falei em Theroux e ele é o melhor exemplo que eu conheço de um escritor que é capaz de escrever um romance inteiro com neologismos e florilégios variados sem prejudicar o todo. Na literatura fantástica também existem excelentes exemplos desse tipo de labores ecléticos: Riddley Walker de Russel Hoban ou até mesmo Shardik de Richard Adams. Todavia isso não significa que outros tenham de seguir esse caminho. Bolaño não o segue, de todo. Aliás, "todo" é mesmo o substantivo que serve de mote à minha apreciação: o escritor chileno é um artesão do todo e não do particular - como podia ele perder tempo com minudências soltas se o romance inteiro é imaginado como peça única com tanta escrupulosidade?

Dividido em cinco capítulos (A Parte Sobre os Críticos, A Parte Sobre Amalfitano, A Parte Sobre Fate, A Parte Sobre os Crimes e A Parte Sobre Archimboldi), pode dizer-se que 2666 orbita em volta de dois eixos, torcido como uma Faixa de Möbius: o primeiro é a história de vida do arisco escritor alemão Benno von Archimboldi, nom de plume de Hans Reiter, que, aparentemente, perambula algures no México, na vizinhança da cidade de Santa Teresa (na fronteira com os Estados Unidos), afastado das lides literárias europeias que, volta e meia, o nomeiam para o prémio Nobel da Literatura. É neste contexto de demanda quase espiritual pelo paradeiro desta personagem que quatro académicos viajam para Santa Teresa em busca do seu escritor preferido.

O outro ponto principal são os crimes violentos que vitimam as mulheres de Santa Teresa: centenas de cadáveres são descobertos mensalmente, durante vários anos, sem que qualquer pista sobre o assassino, ou assassinos, seja descortinada. Não deixa de ser sob um clima de apatia que estas mortes ocorrem em catadupa - como se a vida de todos os dias fosse desse jaez. Mas, no final de 2666, percebemos que a verdade é outra; se bem que de modo enviusado... Não há desfecho nenhum.
No mínimo, um desfecho esclarecedor.
É uma obra aberta, mas que também não é elusiva. Talvez dimane do facto do livro ser, bem vistas as coisas, um trabalho incompleto? (Bolaño morreu enquanto trabalhava nele.) Porém não foi esse tipo de interrupção que senti e é bem possível que a versão publicada de 2666 seja muitíssimo próxima daquilo que o autor idealizou. (Ou talvez não, porque ao que parece existe um possível sexto capítulo que não foi compilado. Iremos ter outra edição? Seja como for, não se pode falar daquilo que está ausente. É provável que, caso venha a ser publicada outra versão, muita coisa que se escreveu sobre ele seja rectificada. Incluindo esta apreciação. À vista disso, e para usar uma alegoria, talvez seja mais correcto dizer que a conclusão de 2666 não é, de facto, inconclusiva: é absoluta.)

Tão absoluta quanto o horizonte observado no deserto: sabemos que a paisagem não é infinita, mas lá que parece, parece. Penso que se trata de uma obra que convida à releitura. Finnegans Wake de James Joyce, por exemplo, é infinito, pois o final é o início, mas a releitura que (também) exige é da mesma estirpe. Bolaño não é Joyce e nem 2666 consiste num manual de ocultismo disfarçado de romance quebra-cabeças como é Finnegans Wake. A ser alguma coisa mais classificável, por mais curioso que isso possa parecer, será um livro policial. Na verdade, o quarto capítulo lê-se como um, e apesar de ser o pior (de um ponto de vista formal) contém algumas das melhores passagens. Entre as páginas 427 e 437 (Picador, 2009) lemos a estreia televisiva da vidente Florita Almada, personagem que tem visões sobres os terríveis crimes de Santa Teresa e que, às tantas, discorre sobre a Lua de um modo que invoca o poema Endymion de John Keats, usando o governador mexicano Benito Juárez como pastor.

Quando Bolaño referencia outros autores e livros, em momentos que não concorrem para o desenvolvimento da narrativa, fá-lo de modo indirecto - miragens no seu deserto. Existe também nesse capítulo um pequeno episódio cheio de humor que conta a história de um emigrante falhado que passou toda a vida a ser capturado nos Estados Unidos e a ser repatriado para o México. Já idoso, o homem porfia em fugir para a América e os coyotes (nome pelo qual são conhecidos os agentes que transportam os clandestinos para solo norte-americano) levam-no de borla porque ele já não tem dinheiro para lhes pagar e porque, como escreve Bolaño: «after the fiftieth deportation the polleros and coyotes brought him along out of friendship, and after the hundredth they probably felt sorry for him, he thought. Now, he said to the Tijuana talk show host, they brought him as a good-luck charm, because his presence in some way relieved the stress for everyone else: if anyone was caught that someone would be him, not the others, at least if they knew to steer clear of him once they had crossed the border. Put it this way: he had become the marked card, the marked bill, as he said himself» (pg. 567).

O segundo capítulo (o mais curto) agarra numa personagem algo clownesca do capítulo anterior, o professor de filosofia Oscar Amalfitano, e oferece-lhe uma inesperada dimensão trágica. A transformação desta personagem é um dos momentos mais poderosos do romance e assistir aos receios dela é comovente. À guisa de talismã contra o mal que permeia Santa Teresa, Amalfitano pendura um livro aberto no varal de secar a roupa: trata-se do Testamento Geometrico escrito pelo galego Rafael Dieste. Achado de modo acidental nas caixas de livros que ele expediu de Barcelona quando se mudou para o México, é um título de que Amalfitano não tem recordação e, assim, é encarado como sendo um mau presságio. Inspirado por uma ideia do artista surrealista francês Marcel Duchamp, que consiste em pendurar um livro de geometria num estendal para que o mesmo possa aprender sobre a vida comum, o professor assim faz, esperando, ao mesmo tempo, que o mal fique preso e não lhe roube a filha, Rosa, que anda em muito más companhias; e cuja história é narrada em A Parte Sobre Fate, na qual a rapariga se envolve com um jornalista negro, correspondente de uma revista anacrónica, que aparece de repente na vida dela em jeito de cavaleiro branco. Entretanto, no segundo capítulo, os diagramas que Amalfitano passa a desenhar de forma quase automática, com formas geométricas e nomes de intelectuais (uns mais ilustres que outros), cifram-se numa ideia que não se encontra desenvolvida da melhor forma, talvez porque Bolaño não nutrisse um interesse genuíno pelas discipinas ocultas - e é uma pena porque muito sumo se poderia espremer dessas enigmáticas construções geogramágicas. Como tantas outras coisas em 2666, ficam para o leitor dar continuidade com a sua imaginação.

O capítulo inaugural tem algo dos dramas amorosos de Éric Rohmer, mas um Éric Rohmer que bebe mezcal como se não houvesse amanhã: a desilusão, o engodo e a mise en scène rohmerianos estão lá (tudo em A Parte Sobre os Críticos se lê em "grande angular", sem grande proximidade entre o leitor e o texto - retenham as descrições dos espelhos no quarto da académica Liz Norton), mas fortalecidos por uma lógica de embuste e, claro, personagens de uma faixa etária que são alheias à sensibilidade do realizador de Contes des Quatre Saisons. Também se pode dizer que passam por aqui influências de Jorge Luis Borges, mas será que passam ou fica-se com essa ideia porque se fala muito de livros fictícios e escritores desavindos? É possível que seja um capítulo borgiano, mas "honorário".

A Parte Sobre Archimboldi consiste num belo final para o romance; mas um final "permissivo", como já referi, com tudo o que de bom e de mau daí emana. Esta omissão, não de oferecer explicaçõezinhas para tudo o que foi deixado em aberto, o que até seria patético (à maneira dos piores filmes de Hollywood), mas a de não fazer da última parte um aglutinador das diferentes densidades que compõem o romance é aquilo que me impede de achar 2666 um livro verdadeiramente genial. Aliás, tanto nesta omissão, como nas descrições geográficas (reais) que nos vai mostrando, é muito parecido com o livro The Seven Who Fled de Frederic Prokosh, um título que, como este de Bolaño, vai acumulando locais (imaginários) e personagens para nos dar um desfecho que não é desfecho nenhum. Chega-se ao final de ambos com a sensação que foi derramada qualquer coisa e que o jarro ficou vazio. Bem, no caso de 2666 foi mesmo derramada uma coisa: a vida do autor.

O relato da vida de Hans Reiter (aka Benno von Archimboldi) é do melhor que 2666 tem para oferecer. Depois de passar uma infância feliz, dedicada a mergulhos exploratórios no mar, o anormalmente alto Reiter é engajado na Wehrmacht. Nesse contexto, descobre, num esconderijo oculto dentro de uma lareira, os diários de um judeu comunista que vão ser a sua obra de formação. Graças a essas páginas, Reiter recupera a voz (perdida por culpa de um ferimento de guerra) e adquire inteligência criativa (até essa altura foi criatura insipiente), acabando por tornar-se escritor, alguns anos mais tarde. Para o efeito, quando vai alugar uma máquina de escrever, apresenta-se como Benno von Archimboldi, invocando o pintor preferido do judeu comunista e o mesmo "pastor" de que fala a vidente Almada no programa televisivo.

É como um quadro archimboldiano que 2666 deve ser observado: de forma holística; ou seja, em "grande angular". Contém múltiplas pequenas histórias fascinantes, como aquela que se pode ler no último capítulo (pgs. 710-728) sobre o escritor russo de ficção científica, amigo do judeu comunista, que é morto por suspeitas de ligações trotskistas: «And it was around this time that he met Efraim Ivanov, the science fiction writer, at a literary café (...) Ultimately, thought Ansky, the revolution would abolish death. When Ivanov told him that this was impossible, that death had been with man from time immemorial, Ansky said that was precisely it, the whole point, maybe the only thing that mattered, abolishing death, abolishing it forever, immersing ourselves in the unknown until we found something else. Abolishment, abolishment, abolishment» (pg. 710).

Este capítulo também contém esta curiosa observação sobre o ofício da escrita: «For Ivanov, a real writer, a real artist and creator, was basically a responsible person with a certain level of maturity. A real writer had to know when to listen and when to act. He had to be reasonably enterprising and reasonably learned. Excessive learning aroused jealousy and resentment. Excessive enterprise aroused suspicion. A real writer had to be someone relatively cool-headed, a man with common sense. Someone who didn't talk to loud or start polemics. He had to be reasonably pleasant and he had to know how not to make gratuitous enemies. Above all, he had to keep his voice down, unless everyone else was raising his» (pg. 714).

2666 pertence à classe dos melhores romances, como Gravity's Rainbow de Thomas Pynchon ou The Recognitions de William Gaddis (um excelente romance que não deixa de ter alguns pontos de contacto com o de Bolaño) e encontra-se recheado de personagens e pequenas histórias fascinantes (a do pacto "satânico" com Deus, por exemplo, na página 675).
Como convite à leitura apenas deixo este excerto: «(...) where the Aztec priests or doctors lay their victims before tearing out their hearts. But now comes the part that will really surprise you. This stone bed where the victims were laid was transparent! It was a sacrificial stone chosen and polished in such a way that it was transparent. And the Aztecs inside the pyramid watched the sacrifice was if from within, because, as you'll have guessed, the light from above that illuminated the bowels of the pyramids came from an opening just beneath the sacrifical stone, so that at first the light was black or gray, a dim light in which only the inscrutable silhouettes of the Aztecs inside the pyramids could be seen, but then, as the blood of the new victim spread across the skylight of transparent obsidian, the light turned red and black, a very bright red and a very bright black, and then not only were the silouettes of the Aztecs visible but also their features, features transfigured by the red and black light, as if the light had the power to personalize each man or woman, and that is essentially all, but that can last a long time, that exists outside time, or in some other time, ruled by other laws. When the Aztecs came out of the pyramids, the sunlight disn't hurt them. They behaved as if there were an eclipse of the sun. (...) And above them in the sky there was always an eclipse» (pgs. 698-699).

Isto deu-me que pensar e, reflectindo sobre imensos detalhes da obra que se ligam de modo insuspeito, comecei a achar que talvez o número 2666 não fosse tanto uma data, mas uma espécie de número verde para o qual se pode ligar e evitar, quem sabe, o dia do Juízo Final. É que, com efeito, prevê-se um eclipse do Sol para o ano de 2666.
Trata-se de um eclipse parcial e é apenas um dos muitos que irão ocorrer no século XXVII, mas, entre tantos, o Apocalipse teria de chegar às costas de um, não é verdade?
Talvez os crimes de Santa Teresa, que até parecem ser cometidos por pessoas diferentes, alguns quase por acidente, sejam um atavismo azteca - anticorpos aztecas - para evitar que uma desgraça maior suceda? Será esse o grande mistério de 2666?
O romance é tão generoso que também permite esta leitura.

domingo, 4 de outubro de 2009

Crítica a "Memórias de Um Vampiro"

Qualquer obra artística que se inscreva num determinado género considerado a priori menor, ou de nicho, é, em maior ou menor grau, problemática de ser avaliada com clareza por todos aqueles que ainda não foram "iniciados" nesse território, simplesmente porque, na maioria das vezes, lhes faltam conhecimentos, relacionados com o modelo em questão, que lhes permitam colocar o objecto de análise em perspectiva.

Quando essa obra é literária convém que o exegeta possua bons conhecimentos do cânone na qual o autor a quer arrolar, de modo a que o exame paute pela clareza de raciocínio e, já agora, pela justiça. É, com efeito, injusto que uma avaliação crítica (um tipo de apreciação que, mesmo quando não é especializado, possui um peso que influencia quem lê) vilipendie ou glorifique uma obra, baseando-se em informações esquemáticas ou até incorrectas sobre aquilo que se acha ser o estilo e a estética na qual ela aparentemente se implanta.

Esta é uma das razões pela qual a designação "Série B" é hoje mal utilizada na maioria dos média para caracterizar quaisquer filmes que se assumam como de género ou satíricos ou mal-comportados, quando, na verdade, Série B é uma denominação relacional a fitas de baixo oraçamento. O que significa que um filme de terror de grande orçamento não é nenhum filme de Série B, assim como um drama de costumes produzido por tuta e meia não é nenhum filme de "Série A". Em suma: apesar do preconceito voltado contra os ditos géneros menores (o Horror, a Ficção Científica, a Fantasia, o Policial), não é a catalogação de uma obra numa certa classe que a atira para o lado errado da criação artística. A qualidade de uma obra não tem nada a ver com o tom dominante que ela apresenta e que, por convenção, se encontra definido pelos géneros reconhecíveis.

Nessa óptica, é essencial que o discurso crítico seja redigido com mais sofisticação, mas esperar que isso aconteça, nestes tempos em que os textos jornalísticos encolhem até ao tamanho de simples sinopses, é, talvez, ingrato. No entanto, independentemente do tamanho das críticas (e dos conhecimentos que os críticos tenham ou não tenham), convém que as palavras e as designações sejam usadas com conhecimento de causa e prudência, não se vá enganar os potenciais leitores da resenha e levá-los a olhar de lado algo que é bom ou a aceitarem de braços abertos algo que é mau. É que a crítica especializada, além dos critérios distintivo e informativo, também deve conter um aspecto de esclarecimento, de contextualização da obra analisada, senão para que é que serve, afinal de contas? Se serve, apenas, para dizer bem ou mal, que se gostou ou que se não gostou, então a crítica de rigor - literária ou outra qualquer - não serve para nada, porque esse exercício dualista (e simplista) de triagem já é feito pelos próprios receptores, que seleccionam aquilo que lhes interessa com base em questões subjectivas de gosto pessoal.

É, pois, com prudência (no sentido de justiça para com a obra, ou seja criticá-la como merece) e conhecimento de causa que avanço na crítica do livro Memórias de Um Vampiro, de Rafael Loureiro (Editorial Presença, 2009), que, como o título indica, se trata de uma obra que, à partida, desperta nos leitores um leque de conceitos e referências familiares, satélites da literatura de Horror, neste caso as diversas histórias sobre vampiros.

(Essa reserva também se corresponde com o facto de que não sou crítico, mas autor de literatura fantástica, e posso correr o risco de meter a foice em seara alheia ao adoptar o discurso crítico. Mas, por outro lado, o meu trabalho enquanto escritor também envereda diversas vezes pelo registo do ensaio, no qual o discurso crítico é um instrumento imprescíndivel; sendo assim, acho que não me fica mal tecer estas considerações que a leitura de Memórias de Um Vampiro me trouxe ao espírito e qualquer leitor compreenderá que o meu julgamento se dirige à obra e não ao autor - repudiando com veemência, aqui e agora, todos os fantasmas de agressões declaradas ad hominem que o texto poderá invocar.)

A primeira impressão que tive ao ver um exemplar deste título numa livraria de Lisboa foi a de que se tratava de uma co-publicação da Editorial Presença com a rádio Antena 3, ideia fortalecida pelo destaque, de tamanho e localização, que o autocolante de fundo negro com o logotipo dessa estação ocupa na capa de Memórias de Um Vampiro: colado acima do logotipo da editora, quase que consegue ser maior que este; não fosse a inclusão da frase "Com o apoio", escrita com letras miudinhas, e ficaria convencido da ideia inicial da co-publicação. Na minha opinião é uma escolha de marketing um bocado foleira, mas entendo que ela se relaciona com o facto de consistir numa excelente maneira de chamar a atenção dos leitores jovens, familiarizados com a referida rádio, numa associação que lhes desperta uma série de emoções positivas (felizes, até) e os leva a aceitar com facilidade um livro escrito por um autor ainda desconhecido. É bem-feito? É mal-feito? A pergunta é de retórica, porque do ponto de vista da psicologia do consumidor deve funcionar tão bem quanto a proverbial flauta de Hamelin. É a mercadologia em marcha: toda a gente sabe que é uma maneira de proceder que se tem tornado cada vez mais agressiva no mercado livreiro e, felizmente, ainda não se chegou ao ponto da intrusão de anúnicos dentro dos próprios livros, à maneira das revistas e dos comics norte-americanos. Mas não desesperem, porque os ebooks que aí vêm já os irão ter, provavelmente.

O título do livro não engana. São memórias escritas pela personagem principal, o vampiro Daimon DelMoona. Este protagonista começa por ser humano e é transformado em vampiro por uma senhora encantadora chamada La Luna. Não se tratam dos nomes de baptismo destas personagens, porque no universo ficcional imaginado por Rafael Loureiro os vampiros respondem pelo nome da alma deles, um nome que sempre tiveram, desde sempre: «A pessoa que éreis morreu hoje e jamais será lembrada. A partir desta noite sereis chamado: Daimon DelMoona. Este é o nome da vossa alma. O nome que a vossa alma usa há já muitas eras. E assim continuará a ser (...)» (pg. 34). Eu assumo que Loureiro não nos queira convencer que estes nomes são, mesmo, aqueles que as almas dos vampiros acabados de fazer têm desde os tempos imemoriais. Tratar-se-á de uma liberdade poética que expressa que cada novo vampiro escolhe (sem grande reflexão, ao que parece) um nome que tenha a ver com as suas qualidades intrínsecas. O que se passa é que tanto por um lado como pelo outro o artifício não funciona. A acreditar na literalidade da explicação que La Luna oferece a DelMoona, então os idiomas humanos, neste caso o spanglish (Del Moona?...) já andava a vogar pelo cosmos ainda antes do magma arrefecer à superfície da crosta terrestre, esperando paciente que os mexicanos e os vampiros evoluíssem para lhes cair em cima. Se é, de facto, um efeito poético, qual é a razão pela qual os vampiros, independentemente das diversas nacionalidades que possam ter, escolhem todos nomes colados à língua inglesa? Há um Daimon DelMoona e uma La Luna, mas também um Janus Moonhunter, uma Lília Whitemoon, uma Pandora Darkmoon, um Philippe Moonshadow, um Ascelli Nightstar. São escolhas autorais imaturas. Não funcionam enquanto referências à importância que a Lua tem no fenómeno do vampirismo, no universo ficcional de Nocturnus (o nome pela qual é conhecida a sociedade composta pelos vampiros dos diversos clãs que descendem dos diferentes vampiros criados pelo anjo Tiriel, o pai de todas as espécies de sugadores de sangue), nem como verdadeiros nomes de guerra das personagens.

Mas se a antroponímia não é o forte de Loureiro, o resultado é muito mais sofrível quando ele se aventura na geografia e na cronologia.

No mundo de Nocturnus, os vampiros foram criados pelo anjo Tiriel que, à semelhança de Lúcifer, foi expulso do Paraíso por Deus. «O Criador, ouvindo nos murmúrios dos anjos que os seus corações se começavam de novo a dividir, cortou as asas brancas a Tiriel e enviou-o para a Terra (...) Conta-se que o Anjo acordou numa praia, sozinho, em terras da Ásia» (pg. 15).
Considere-se esta transcrição com a leitura deste excerto decalcado de uma crítica feita a Memórias de Um Vampiro (assinada por Joana Cardoso) no weblog Bela Lugosi is Dead: «Apesar de ser mais uma história de vampiros, não me senti aborrecida nem a achei semelhante a qualquer outra que tenha lido.»
Infelizmente, já não posso dizer o mesmo, porque acho que a premissa de Loureiro é muitíssimo semelhante à mitologia que se pode ler em The Book of Nod, de Sam Chupp e Andrew Greenberg (White Wolf Publishing Inc. 1997), obra na qual é Caim que, depois de ser banido por Deus para a Terra de Nod, dá origem a diversos clãs de raças diferentes de vampiros: «And He exiled me to wander in Darkness, the land of Nod. I flew into the Darkness, I saw no source of light and I was afraid and alone» (pg. 25). Mas as semelhanças do livro de Loureiro com a mitologia de The Book of Nod não se resumem à concepção do universo vampírico.

Em The Book of Nod existe uma sociedade de vampiros moderados, formada por sete clãs, que responde colectivamente pelo nome "The Camarilla" e "The Masquerade" é a designação que dão à política de se imiscuir subtilmente entre os humanos, ocultando-se deles: «Masquerade: the effort to hide Kindred from the world of mortals» (pg. 134), sendo que "Kindred" são os próprios vampiros. Agora comparem com esta transcrição de Memórias de Um Vampiro: «La Luna falou-me sobre Nocturnus, que é o nome dado à sociedade vampírica. Os vampiros existem desde os esgotos até à alta sociedade, caminhando em silêncio através dos séculos desde o Anjo Tiriel que, banido do céu, foi condenado a deambular imortalmente pela Terra por ciúme da humanidade...» (pg. 40).
Basta consultar o léxico de The Book of Nod para perceber, de imediato, que o índice lexical de Memórias de Um Vampiro é uma tradução quase literal: onde no primeiro há um "The Beast" («The hateful drive that push a vampire to become a monster. The push to Frenzy») no segundo encontra-se um "Ser Impuro" («Estado em que o Vampiro não controla o seu instinto e o seu lado bestial o comanda»); onde no primeiro há um "Sire" («Parent or creator of a vampire. Used for both men and women») no segundo pode encontrar-se um "Senhor/Senhora" («Vampiro que cria outro Vampiro»); onde no primeiro há um "Prince" («The Vampiric ruler of a city») no segundo existe um "Regente" («Vampiro que rege Nocturnus numa Terra»); onde no primeiro há um "Embrace" («The bite. The process of making a human into a vampire») no segundo encontra-se um "Novo Nascimento" («Transformação de humano em Vampiro»). E a lista de semelhanças continua por ordem alfabética...

É legítimo perguntar porque é que a autora da crítica supracitada não achou Memórias de Um Vampiro semelhante a qualquer outra história de vampiros que tivesse lido. A resposta é que não leu The Book of Nod, nem nunca ouviu falar no jogo de RolePlay Vampire: The Masquerade, que está na origem de The Book of Nod: compêndio que reune os elementos dispersos desse jogo na forma de uma mitologia coerente - um cânone, portanto.
A analogia entre as concepções de Memórias de Um Vampiro e The Book of Nod é tão grande que mais parece que o livro de Loureiro é uma peça de fan fiction.
Vale a pena recordar aquilo que escrevi no início sobre os críticos com falta de conhecimentos: Memórias de Um Vampiro até pode surgir como inovador e surpreendente aos olhos de quem não está familiarizado com o género Fantástico, e com a ficção que tem sido escrita nas últimas décadas sobre vampiros, mas não passa na inspecção de um leitor especializado que já leu mundos e fundos, muito antes das editoras, dos candidatos a autores e dos média terem "descoberto" agora o fenómeno da literatura sobre vampiros. Só quem nunca leu nada sobre eles é que será capaz de achar originalidade e inovação em Memórias de Um Vampiro.

Acima mencionei as tíbias tentativas de Loureiro em se aventurar nos campos pantanosos da geografia e da cronologia.

Já se percebeu que Memórias de Um Vampiro narra a vida de Daimon DelMoona (numa colagem descarada ao universo vampírico de Vampire: The Masquerade), mas onde e em que época?
Também já vimos que Tiriel caiu «nas Terras da Ásia» quando foi expulso. Com efeito, causa alguma estupefacção vermos que naquela altura (no princípio dos tempos?) já existia o continente asiático e que, ainda por cima, ele era conhecido por esse nome. Mas as coisas complicam-se porque «A nossa história perde-se aqui durante várias décadas. Deduz-se que Tiriel tivesse caído de novo no seu sofrimento e partido para outras terras, a actual Europa» (pg. 17). Depois desta viagem, «Tiriel partiu de novo para terras distantes para de novo se isolar. Partiu para o seio da actual África» (pg. 18). Mas afinal Tiriel também viaja no tempo?! Transita da Ásia (primordial) para as actuais Europa e África? Só pode ser isso, porque, em seguida, «ao vaguear por uma necrópole da Grécia antiga, deparou com um homem adormecido» (pg. 18). Como bom viajante no tempo, Tiriel «de novo partiu para a sua terra natal, no Norte de África, actual Egipto» (pg. 19).

Mas Daimon DelMoona, em cujas veias corre a herança de Tiriel, também faz umas digressões temporais inesperadas: «Continuei a minha jornada como um fugitivo e parei apenas em 1792, depois de uma viagem de barco, num país a Oriente que é o actual Japão» (pg. 74). Ou seja, de acordo com Loureiro, o Japão não existia no ano de 1792. Porquê? Porque ele não escreveu "Japão actual" (o que tornaria a viagem no tempo ainda mais extraordinária, diga-se), mas sim que a personagem chegou a um país que é o "actual Japão". Então, se esse país não era o Japão, ou não se chamava assim, como é que se chamava? Diz Loureiro na página 76 que «O Japão já não é o que era». É a resposta possível.

Contudo, o salto no tempo mais incrível que se pode encontrar em Memórias de Um Vampiro é este que vou descrever em seguida.

Diz a personagem principal que «Decorria o ano de 1680» (pg. 23). Este é o início das memórias e Daimon DelMoona ainda é humano... Prossegue-se na leitura e na página 56 pode ler-se isto «Vinte anos se passaram (...) Estávamos a virar para o século XVII».
O quê?!... Então?... Então voltaram todos no tempo, para o início do século? Não... É que mais à frente, na página 73, pode ler-se que estamos no «Ano de 1700. Deveria ter quarenta anos e aparentava ainda vinte e dois.»

Se bem compreendi, a história de DelMoona começa no século XVII (1680). Depois há uma inversão temporal total e todas as personagens regressam ao início desse século («Estávamos a virar para o século XVII»). Em seguida, saltam cem anos directamente para o século XVIII (1700). E mais: as viagens no tempo têm um efeito anti-oxidante porque DelMoona, que deveria ter quarenta anos de idade (em cada perna, a acreditar na contagem dos anos que avançou), apenas aparentava ter vinte e dois.
Como é que isto se explica?
Explica-se desta forma: Loureiro não sabe que a data de 1680 corresponde ao século XVII.
Pensa que por ela começar com um "16" se refere ao século XVI e é por isso que diz na página 56 que se estava a «virar para o século XVII». Depois acha que 1700 é que é o século XVII quando é o XVIII. Alguém que lhe diga, por favor, que já estamos no século XXI, porque ele é bem capaz de achar que ainda estamos no XX, porque a data de 2009 começa com um "20".

O mais estupendo disto tudo é que ninguém que leu o livro deu por isto!...
Se tivessem dado, já o tinha lido na crítica citada (e em outras disponíveis na internet) ou o próprio autor já o teria corrigido no seu texto. Ou seja, ninguém percebeu que 1680 não é uma data do século XVI. O que leva a formular a seguinte pergunta: será que alguém leu, de facto, o livro?

É porque 1) se não leram e dizem que sim estão a mentir e 2) se leram e não perceberam este erro monumental é porque são burros. Desculpem lá, mas isto não é culpa de distração, porque a própria narrativa deveria fazer com que os leitores achassem que algo de errado se estava a passar com a cronologia: não perceber que seria impossível virar para o século XVII quando a narrativa tem início em 1680 é ser-se burro com todas as letras que a palavra tem.

Ainda bem que Loureiro é professor de Educação Física: eu não queria que ele ensinasse geografia e história aos meus filhos.
Depois disto, nem sequer precisava de continuar a minha análise a Memórias de Um Vampiro porque neste ponto desvaneceu-se qualquer ínfima porção de credibilidade que ainda restasse ao livro.
Mas há mais...

Uma capacidade admirável que os vampiros de Memórias de Um Vampiro têm é a de conseguirem sorrir e olhar de muitas maneiras: há sorrisos cúmplices, saudosos, orgulhosos, escondidos, tristes, forçados, sarcásticos, devolvidos; há olhares obedientes, pregados, sorridentes, catapultados, beijoqueiros... Enfim, há muitos sorrisos e olhares à la carte, cada qual o mais requintado. Também há algumas imagens muitíssimo originais como: «estendendo a sua mão numa gargalhada», «ambos se estudam como tigres», «A sua postura de tutora desfez-se», «Descemos dos cavalos e amarrámo-los a uma árvore», «bebem em elegantes tragos» e «desfere um poderoso pontapé rotativo sobre a face do nosso companheiro que é projectado no chão.» Esta talvez seja auto-biográfica, considerando que o autor é praticante de artes marciais.
Realmente, Memórias de Um Vampiro tem de tudo um pouco: viagens não-intencionais no tempo, um samurai vampiro, um lendário caçador de vampiros chamado Claudius Van Helsing e, até prova em contrário, um cameo role de Mussolini, sob o disfarce de um vampiro chamado Duce (I kid you not). Mas antes que possam acusar o autor de fascista, Memórias de Um Vampiro contém a mais bela ode ao Comunismo que eu já li, seja onde for: «Alimentei-me como antes, mas desta vez foi mais fácil. O conflito em mim era menor. Penso que me habituei rapidamente a ver aquele ritual como uma necessidade inócua, pois não havia mortes, não havia lembranças, não havia marcas. Era como roubar uma moeda a um rico, não lhe faria falta» (pg. 44). "Economia Robin Hood" no seu melhor. Como escreveu Engels no prefácio da edição alemã do Manifesto Comunista: «Quem me dera que Marx pudesse estar a meu lado para ver isto com os seus próprios olhos» (Oxford University Press, 1998. pg. 56).

A esta altura vale a pena perguntar onde é que o autor de Memórias de Um Vampiro quer chegar com isto tudo. A pergunta é tão pertinente, tão pertinente que até lhe foi feita numa entrevista que ele deu há uns dias à rádio Antena 3 (a do autocolante na capa). Pergunta a entrevistadora: «-Portanto, um futuro auspicioso para ti enquanto escritor?» Loureiro responde: «-Ah... Vamos ver... Eu creio que sim, eu acredito, eh, eh.» A fé move montanhas.

Mas será que Loureiro sabe alguma coisa sobre literatura fantástica (ou de horror, na generalidade)? Ou sobre vampiros, apenas?
Pergunta a entrevistadora: «-Todo este universo "vampiresco" foi algo que apareceu naturalmente em ti ou tem a ver com o facto de teres lido determinado livro na tua adolescência que te despertou?...» O autor responde: «-Também, também!... (...) mais tarde acabei por descobrir o lado romântico deste terror e aí claro que tive influências da Anne Rice, do Dracula do Bram Stoker, do próprio Nosferatu de 1940, se não me engano, e acabei por desenvolver este personagem que acaba por ser quase de terror, mas, ao mesmo tempo, é um personagem romântico. Ou ultra-romântico.» A entrevistadora enfatiza: «-Ultra-romântico?!...»

Com efeito, ele enganou-se. Nosferatu, de Friedrich Wilhelm Murnau, filme a preto e branco e mudo, foi realizado em 1922 (altura em que os filmes eram todos a preto e branco e mudos). Em 1940 havia cinema a cores e falado, mas já se percebeu pela leitura de Memórias de Um Vampiro que datas e localizações temporais não são o forte deste autor.

Porém, pese o pouco jeito para números, ele tenta bastantes coisas com este livro. Tenta ser a Anne Rice, por exemplo, plagiando sem grande engenho as regras do código deontológico vampírico que essa autora foi desenvolvendo nas Vampire Chronicles. Em Memórias de Um Vampiro pode ler-se: «-O Silêncio? - perguntei. -É uma das principais leis de Nocturnus. 1º Lei: A Opção: Nunca oferecerás o Novo Nascimento contra a vontade do escolhido. 2º Lei: O Silêncio: Nunca revelarás a tua verdadeira natureza ao Homem. 3º Lei: A Cortesia: Nunca desafiarás a palavra do Regente da Terra onde estiveres. 4º Lei: A Linhagem: Nunca criarás um Filho sem a permissão do Regente. 5º Lei: A Segunda Morte: Se as leis forem violadas aplicar-se-á a Segunda Morte ao Vampiro que as quebrou» (pg. 50).

As regras supracitadas provém de diversos títulos escritos por Anne Rice, assim como de The Book of Nod (que também as usa, mas de um modo original que Memórias de Um Vampiro é incapaz de mimetizar). Introduzir essas transcrições é um exercício exaustivo e este texto já é longo o suficiente sem incluir, ainda, essas informações. Mesmo assim, porque é mais breve e também mais acertado, transcrevo alguns diálogos da adaptação cinematográfica de Interview With the Vampire, realizada por Neil Jordan, que se encontram reproduzidas de modo muito semelhante no texto de Loureiro. Aliás, deste modo fica em evidência que quando Loureiro admitiu ter sido influenciado por Anne Rice, não se referia aos romances, mas às adaptações cinematográficas desses trabalhos. É, portanto, com referências a filmes e a jogos de RolePlay, que se faz esta proposta de literatura fantástica portuguesa...

Louis em Interview With the Vampire: «Then out of curiosity, boredom, who knows what, I left the old world and came back to my America. And there, a mechanical wonder allowed me to see the sun rise for the first time in two hundred years. And what sunrises, seen as the human eye could never see them: silver at first, then, as the years progressed, in tones of purple, red, and my long lost blue.»

Em Memórias de Um Vampiro: «A tecnologia trouxe a cor às telas de cinema, e o dia, o nascer do Sol, entrou em casa de cada vampiro através da televisão» (pg. 145. Mencionar o cinema, tal como no trecho anterior, era demasiado flagrante, por isso fala-se em televisão.)

Em The Book of Nod: «Raphael cursed me, saying: "Then, for as long as you walk this earth, you and your children will fear the dawn and the sun's rays will seek to burn you like fire where ever you hide always. Hide now for the Sun rises to take its wrath on you"» (pg. 32).

Em Memórias de Um Vampiro: «Pela maldição de Deus a Tiriel, não conseguimos suportar a luz do Sol. Esse é o nosso maior inimigo, pois nos tornaria em cinzas em segundos» (pg. 40).

Daniel Molloy e Louis em Interview With the Vampire: «- What about crucifixes? - Crucifixes? - Yes, can you look at them? - Actually I am quite fond of looking at crucifixes. - What about the old stake through the heart? - Nonsense.»

Em Memórias de Um Vampiro: «De maneira nenhuma temos medo de cruzes, há até alguns de nós que as usam como adorno. Não são as cruzes que nos afectam, mas sim a Fé - somente a verdadeira Fé de quem as segura nos pode afectar! As estacas de madeira no nosso coração apenas nos paralisam, não nos matam. A única forma de nos tirarem a vida é decapitando-nos» (pg. 40).

Enfim, que Loureiro tente ser a Anne Rice é compreensível, mas é inaudito que tente ser o Paulo Coelho. Não acreditam? Então leiam os excertos seguintes:

O Alquimista, de Paulo Coelho: «E quando você quer uma coisa, todo o Universo conspira para que se realize o seu desejo» (pg. 47).

Lília Whitemoon e Daimon DelMoona em Memórias de Um Vampiro: «-Sabes que o Destino conspira a nosso favor. Ele coloca ao nosso lado as pessoas mais importantes para a nossa jornada, almas que foram forjadas ao mesmo tempo que a nossa» (pg. 177).

O Alquimista, de Paulo Coelho: «Como sabes que não voltarás a vender ovelhas. -Quem lhe disse isso? - perguntou o rapaz, assustado. - Maktub - disse simplesmente o velho Mercador de Cristais. E abençoou-o» (pg. 96).

Lília Whitemoon e Daimon DelMoona em Memórias de Um Vampiro, de Rafael Loureiro: «-Tu enfeitiçaste-me? Parece que te conheço desde sempre. - Misteriosos são os desígnios de Deus.» (pg. 177).

O Alquimista, de Paulo Coelho: «Escuta o teu coração. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma do Mundo, e um dia retornará para ela» (pg. 196).

Memórias de Um Vampiro, de Rafael Loureiro: «Os vampiros podem continuar a ter Fé» (pg. 131).

Excerto da entrevista de Rafael Loureiro à Antena 3: «-Que conselhos darias a quem nos ouve que tenha o sonho de ser escritor? -Olha, eu já tenho algumas pessoas que me vão enviando mails com algumas... com alguns parágrafos ou alguns capítulos de... de... livros também deles e o meu conselho é sempre esse: não desistam. Não desistam porque toda a energia que... que vocês estão a emanar... ela há-de... há-de dar fruto, tal como eu. Foi um processo longo... de quase cinco anos ou seis anos, mas... teve os seus frutos. -É não deixar a esperança ir embora.»

O Alquimista, de Paulo Coelho: «Maktub - disse. -Se eu for parte da tua Lenda Pessoal, voltarás um dia» (pg. 159).

Neste trecho de uma resenha crítica que retirei do weblog As Leituras do Corvo pode ler-se: «(...) esta relação que se cria entre o leitor e as personagens que torna Memórias de um Vampiro num livro tão tocante e tão belo. A todos os apreciadores do fantástico e principalmente aos fãs de histórias de vampiros, não posso deixar de recomendar esta história em que o único defeito que encontro é o de terminar demasiado depressa. Resta-me, pois, esperar pelo próximo tomo desta excelente aposta (...)»

Citei este excerto para dar a entender que, aparentemente, a minha opinião vai no sentido contra-corrente daquilo que vai sendo escrito sobre Memórias de Um Vampiro. Contudo, apesar de isolada, acho que demonstra aquilo de que é feito este livro e porque é que ele, apesar de já ter sido um produto de Série B (edição de autor), continua a ser mau agora que é um produto de Série A (publicado por uma editora com um grande orçamento). Não é culpa do género em que se insere. O livro é mau porque, como se viu acima, está mal pensado, está mal escrito, contém erros imperdoáveis e, sobretudo, pelo modo como tem sido apresentado ao público, só prejudica o género Fantástico.

Se eu não fosse um conhecedor de literatura fantástica e até tivesse preconceitos voltados contra ela, graças a isso, não seria com Memórias de Um Vampiro que eu iria convencer-me de que este género de ficções são tão boas quanto as aprovadas pelo cânone da dita literatura erudita.
O facto é que há quem diga que ser reconhecido pelos literati não interessa nada e que, isso sim, é que é prejudicial ao género Fantástico. Eu também concordo que nós não precisamos do imprimatur da academia para nada, para que fique clara a posição em que me situo sobre esse tema, mas o que é fatal é que livros como Memórias de Um Vampiro e quejandos não dignificam em nada o género no qual se inserem e talvez fosse mais proveitoso, já que o objectivo era cavalgar a onda da moda vampírica na literatura que o mercado atravessa neste momento e facturar umas massas, gastar-se mais uns trocos e mandar traduzir obras de referência como Some of Your Blood, de Theodore Sturgeon, The Vampire Tapestry, de Suzy McKee Charnas, Hotel Transylvania, de Chelsea Quinn Yarbro, Lost Souls, de Poppy Z. Brite, Anno Dracula, de Kim Newman, The Dracula Tapes, de Fred Saberhagen, The Travelling Vampire Show, de Richard Laymon, Sunglasses After Dark, de Nancy Collins, e muitos outros. Até mesmo os livros do vampiro Varney, de James Malcolm Rymer.
É que, dessa maneira, vampirizavam à mesma os vampiros, mas ao menos punham cá fora obras de qualidade.