quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Passatempo "A Conspiração dos Antepassados"

Em jeito de prenda de Natal, as edições Saída de Emergência e eu temos um exemplar da edição especial d'A Conspiração dos Antepassados para oferecer ao primeiro leitor dos Cadernos de Daath que responder correctamente às seguintes perguntas:

1) Qual era a famosa alcunha pela qual Fernando Pessoa gostava de ser chamado?
2) Quais foram as últimas palavras que Aleister Crowley proferiu no leito de morte?

Enviem as respostas, até 5 de Janeiro, para o seguinte endereço de email: passatempo.conspiracao(at)gmail.com.

A edição especial d'A Conspiração dos Antepassados, que conta com um prefácio do escritor e realizador de cinema António de Macedo, estará disponível nas livrarias a partir do dia 22 de Janeiro de 2010.

Grande C: Criatividade nas escolas

A Agecop (Associação para a Gestão da Cópia Privada) está a organizar junto das escolas uma iniciativa intitulada Grande C: Projecto Escolas/Concurso de Criatividade, que consiste em «sensibilizar os mais jovens para a importância do respeito pelos direitos de autor e propriedade intelectual.»
O objectivo da iniciativa (o concurso) «passa por estimular a criatividade e o talento dos jovens alunos com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos. Assim, os candidatos são convidados a criar obras originais nas seguintes categorias: Música, Letra, Design, Vídeo, Plano de Promoção Online, Escrita Criativa e Media. Está a ser desenvolvido em articulação com outras entidades que representam os autores, os artistas, os produtores e os editores.» (Entre elas, a APEL, Associação Portuguesa de Editores e Livreiros.) «O projecto conta com o apoio das Ministras da Cultura e da Educação, bem como da Comissária Europeia para os Assuntos dos Consumidores.»

Em Janeiro de 2010 será lançado, oficialmente, o site da iniciativa GC, que apresentará diversos depoimentos, de diferentes criadores, sobre as áreas artísticas em que trabalham. Foi no âmbito dessa recolha de testemunhos que me convidaram a gravar um depoimento.
Os vídeos «servirão de fio condutor de todo o projecto» e têm como objectivo dar a conhecer aos jovens o ofício da criação pela voz das pessoas que nele trabalham.


terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Edição especial em Janeiro de 2010

No próximo dia 22 de Janeiro será publicada uma edição especial do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), sobre o encontro do poeta Fernando Pessoa com o mago Aleister Crowley: com uma nova capa e um prefácio de António de Macedo, consiste numa edição da qual muito me orgulho.

Quem já leu, sabe que a história orbita em volta do mito sebástico e tem como ponto de partida a vida e a obra do pintor renascentista português Francisco D'Ollanda. É dele a pintura que ilustra o excerto de A Conspiração dos Antepassados que se segue; um trecho que o apresenta como personagem. É, pois, um convite que eu deixo, àqueles que ainda não leram o romance, para que aguardem pela publicação da edição especial.

«Protegendo-se do violento vento nocturno, com um capuz e um manto, Francisco d’Ollanda agarrou o bebé contra o peito e desceu o carreiro pedregoso em direcção à entrada da gruta; o ruído do rio que fluía para o interior da Terra, invés de desaguar no Tejo, era uma verdadeira alegoria das energias telúricas que erguiam a traça magnética da área. Mais uma vez, precisava de abandonar um filho nessas fundações de pedra.
No início do ano morrera D. João III, seu protector, e as construções que ambos acompanhavam permaneciam incompletas. Preocupado com as urgentes experiências alquímicas, descurara as obras no Mosteiro de Santa Maria de Belém e nos Paços Reais de Enxobregas – a sua tão amada Nova Lisboa. D. Catarina estava com vontade de se ocupar pessoalmente das alas inéditas que ele tinha desenhado para o Convento de Cristo, em Tomar, projecto que muito lhe aprazia. De qualquer modo, Tomar encontrava-se demasiado distante, na geografia e na mente, para que pensasse no mosteiro: a morte do rei obrigava-o a trabalhar sob uma pressão inusitada – a rainha queria resultados no espaço de um ano. A delicada situação que se avizinhava não permitia desleixos.
Ollanda admirou a criança deformada, que carregava ao colo, com um misto de repulsa e esperança: após seis experiências falhadas, compreendera finalmente o que fizera de errado e já sabia como emendar a receita que seguia. O bebé era a prova que se aproximava, célere, da fórmula perfeita: as deformações que o afectavam eram insignificantes, comparadas com aquelas que cobriam os corpos dos irmãos mais velhos.
Talvez tivesse sido mais acertado eliminar essas criações inúteis, mas, construídas à imagem do seu melhor anjo, o arquitettore não encontrou coragem para as matar. Lembrou-se de as deixar naquele local isolado, ao abrigo da crueldade dos homens. Na verdade, sentia-se orgulhoso delas: vaidoso por ter tido sucesso; mesmo que essas vidas não servissem os objectivos para os quais havia sido contratado pela coroa.
Começara esse empreendimento em Outubro de 1550; D. Catarina pagara-lhe, para efeitos de contrato, uma primeira prestação de vinte e cinco cruzados, mercê de doações periódicas e alojamento. Sete anos depois, não se arrependera. O segredo que só ele sabia é que aceitara o trabalho infernal com a meta de amealhar dinheiro suficiente para se casar. Amava a mulher, D. Luísa da Cunha de Siqueira, e bastava-lhe acordar ao lado dela para pensar que as maquinações diabólicas valiam a pena. Mesmo assim, debruçado sobre as retortas, sobre o lendário Caldeirão Negro, quando calhava a vislumbrar o seu reflexo em alguma superfície reflectora via um rosto contorcido que não reconhecia: uma face impregnada de satanismo – ele estava a adorar cada momento da sua missão! Haveria de chegar o tempo de parar e de plantar couves na horta, no Monte: antes, precisava de mudar o mundo, de oferecer o Messias ao Quinto-Império.
O paredão com a gorja da caverna elevava-se na noite como um gigante petrificado, castigado pela Lua. Ollanda assustou uma coruja que caçava à entrada da gruta e entrou.
Havia no ar um cheiro calcário que denunciava a proximidade com o litoral, mais que a vizinhança do rio; o chão polvilhado de pedra moída. A dor de cabeça surgiu no momento previsto: a presença intrusiva que experimentava sempre que regressava à gruta. Uma sensação repelente, como se dedos pegajosos lhe massajassem a mente.
Uma série de imagens brotaram-lhe na cabeça; retalhos ordenados como um livro de ilustrações. Ele desconfiava que a origem daquelas visões forçadas se relacionava com os filhos deformados que viviam no fundo da gruta: era o modo peculiar que tinham encontrado para comunicar com o pai, mas, enquanto falavam, aprendiam. Ollanda viu desejos futuros, viu a figura secreta do salvador imaginado: não a personagem brilhante que o animava nas horas de desalento, mas uma versão corrompida, demasiado horrível para ser verdadeira. Tremeu, desconfortável, amparando a cabeça com a mão, e abandonou o indesejado no chão.

O Indesejado?!

Estes filhos deformados estavam para o Desejado como o Anti-Cristo estava para Jesus. Ollanda não compreendeu a mensagem que lhe arrombava o espírito, mas sentiu uma angústia que ultrapassava a maior das ambições. Qual o significado? Nenhum: a substância dos sentimentos era não terem expressão.
Alguém se aproximou, oriundo do interior da Terra, e o homem reconheceu-o: tratava-se do segundo filho. Crescera! Arrastava-se pelo chão, olhando-o com curiosidade infantil. Ollanda recuou, atingido pela recepção de uma imagem que lhe era conhecida: a noite em que deixara esse segundo filho na gruta. Ele lembrava-se!
Cobriu a boca com as mãos e fugiu a correr em direcção ao rio, deixando o seu sexto bebé na caverna. Ajoelhou-se e mergulhou a cabeça na água para afogar as imagens horríveis.
Malitia Temporis!’, gritou, com água a escorrer-lhe pela barba loura. Agarrou erva com as mãos e arrancou-a num gesto desesperado. ‘Oh, Deus, perdoa-me, que eu criei monstros em teu nome!’
Serenou, pensando que tinha sido a última vez que produzira uma aberração: a receita estava apurada, sem dúvida. Apressou-se até ao sítio onde deixara o cavalo e retirou-se.
Perturbado pela visita do pai, o segundo filho emergiu lentamente da entrada da caverna e espiou o mundo pela primeira vez. Observou as coisas sem as compreender, sem as reconhecer. Sentia-se confundido por um novo tipo de imagem mental que formulara quando vira o pai dentro da gruta. Tratava-se de uma representação diferente das outras – mais abstracta.
Arrastou-se até ao rio e, debruçando-se, viu o seu reflexo na água. Permaneceu algum tempo a observá-lo, a tentar decifrar aquilo que o incomodava. Num instante, percebeu tudo com uma clareza assustadora. Perturbado pela constatação que conseguia pensar por palavras, e não apenas por imagens, ergueu-se e olhou para o céu negro. A confusão deu lugar ao medo e esse temor transformou-se em ódio: a nova espécie de imagem que o encorajara a sair da gruta não passava, afinal, de um pensamento! Um pensamento que o fazia sentir sozinho. Um pensamento que acabara de o transformar para sempre.
Não era igual ao pai

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Novo romance em Fevereiro de 2010

O meu novo romance intitula-se O Evangelho do Enforcado. Chegará às livrarias a 12 de Fevereiro, numa edição da Saída de Emergência.

É um romance negro de literatura fantástica, cuja história se concentra sobre a realização dos Painéis ditos de São Vicente.
O cenário é, em grande parte, a cidade de Lisboa, em meados do século XV. Para os leitores que esperam encontrar um retrato autêntico da sociedade desse tempo fica a promessa de que O Evangelho do Enforcado é uma cápsula do tempo feita de imagens realistas e que as personagens pensam e agem como, muito provavelmente, pensavam e agiam os indivíduos nos finais da Idade Média. No entanto, é a fantasia negra que dá o tom dominante ao livro.

Espaçadamente, irei desvendar mais pormenores sobre O Evangelho do Enforcado. Para já, deixo-vos com um excerto:

«Os viajantes cheiravam Lisboa, antes de lhe pôr a vista em cima: os quatro ventos sopravam para Sintra e Sacavém os cheiros provenientes dos açougues, oficinas de calafates, baiucas dos curtidores e lixeiras que se espraiavam à sombreada do muramento da cidade; as gentes expulsavam das chaminés e janelas abertas das casas um florilégio de fragrâncias, das melíferas, como os eflúvios das enxercas, refogadas com ervas e mel, às malcheirosas, como os pivetes deitados fora com o conteúdo dos penicos. Não era invulgar o vento bater na cara dos transeuntes e enfiar-lhes o cheiro a vinho e caca de porco pelas narinas acima. Um fabuloso odor de “aqui e agora” que ia buscar essências pretéritas, fixadoras dos aromas do presente, para controlar os pensamentos dos lisboetas: o hipocentro da geologia temporal de Lisboa, impressa nas rochas, tijolos e ossos, reverberava sob a forma de lenga-lengas, cantigas estúpidas e orações de esperança. Ninguém, nem sequer um fungo, se dava ao trabalho de aprender alguma coisa com a presença do passado: e a cidade, de quando em quando, dava coices; deitava umas casas abaixo e reorganizava-se – ninguém me usa, clamava, merismática.
Casas de pedra e madeira erguiam-se voltadas para o rio Tejo, tão tortas quanto as próprias elevações sobre as quais se equilibravam; em direcção à linha da água, a pouquíssima distância das muralhas coroadas de líquenes, as ruas estreitas tornavam-se exíguas e a imundície sedimentava-se em estratos graúdos que encapotavam o chão de terra batida. Algumas artérias de maiores dimensões, como a eritematosa Rua Nova, possuíam pavimentos; mesmo assim, se apresentassem uma cota mais elevada, os caminhos calcetados costumavam ser cobertos com areia para que as ferraduras das bestiúnculas não deslizassem nas lajes de pedra.
O barulho era ininterrupto: sinos e chocalhos vascolejantes, guinchos das rodas de carroças e carretas, cerca de quarenta mil pessoas a conversar, a berrar e a rir. Baratas saltavam de frinchas. Cães bebiam os próprios reflexos em poças de água choca. Homens agarravam em copos de vinho.
Um ogre, de pele tisnada, vendia arroz frito de lagostins na rua e o cheiro das ervas aromáticas e do marisco não era diferente daquele que saía das fracturas do subsolo. Cheiros puros – sons puros. «Libertate carens.» Como lâminas afiadas.
Quando Nuno descera do barco e entrara em Lisboa pela Porta da Ribeira, junto da Pedreira ao bairro de Alfama, não se deixara impressionar pela adarga decorativa que se encontrava suspensa sobre o arco perfeito, como dois enormes rins de pedra; porém, desde essa altura, viera a conhecer melhor a cidade e concluiu que não se tratava de nenhuma aldeia grande como lhe disseram: era muito, mas mesmo muito maior do que alguma vez teria sido capaz de imaginar.»

(Foto de Gisela Monteiro.)

Sessão de autógrafos em Coimbra

No próximo Sábado, às 15H30, estarei na loja de banda desenhada Dr. Kartoon, em Coimbra, para uma sessão de autógrafos, em conjunto com Rui Lacas, Ricardo Cabral e Filipe Andrade.
Será, sem dúvida, uma boa oportunidade para falar com os leitores conimbricences, tanto os de banda desenhada como os de prosa.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Poemas de Alfred Tennyson

O livro Poemas de Alfred Tennyson, publicado pelas Edições Saída de Emergência, é apresentado hoje, às 18H30, na Câmara de Comércio Luso-Britânica, em Lisboa (Rua da Estrela, nº8).
A apresentação, realizada pelo orador convidado Dr. Paulo Lowndes Marques, da British Historical Society, contará com as presenças do editor e do tradutor Octávio dos Santos (também responsável pela selecção dos poemas).

Trata-se de uma excelente iniciativa: Tennyson é um dos poetas ingleses que mais aprecio e este livro vem dar aos leitores portugueses a oportunidade de conhecer o seu imaginário, permeado por referências e elementos da cultura ocidental que fazem parte do universo da literatura fantástica.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Crítica a "Mucha" na revista "LER"

Na edição deste mês da revista LER, podem encontrar uma excelente crítica ao álbum de banda desenhada Mucha (Kingpin Books, 2009), escrita por Sara Figueiredo Costa.
Transcrevo um excerto:

«Hábil na criação de uma escalada de sufoco, o imaginário de David Soares encontra no traço expressionista de Medina e nas finalizações de Freitas um preto-e-branco perfeitamente harmonioso com a narrativa e fortemente marcado pelas influências das clássicas bandas-desenhadas de horror (...) quanto à ameaça que a epígrafe de Sófocles, na Antígona, lança na página que antecede a narrativa: «Estas coisas são de um futuro próximo.» Mais do que o zumbido contínuo das moscas, são essas palavras que ecoam em cada prancha de Mucha.»

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Vencedor do passatempo "Brinca Comigo!"

Já apurei o vencedor do passatempo Brinca Comigo!
Quem deu a resposta certa mais rápida foi a leitora Cristina Correia. Parabéns!

A resposta certa era: Teddy Bear.

De acordo com o Brewer's Dictionary of Phrase & Fable (Weidenfeld & Nicolson, 2005): «A child's toy bear, named after Theodore (Teddy) Roosevelt (1858-1919), who was fond of bear-hunting. Roosevelt was shown sparing the life of a bear-cub in a cartoon drawn by C. K. Berryman in 1902 as a spoof on the president's role as an ardent conservasionist. In 1906 the New York Times published a humurous poem about the adventures of two bears named Teddy B and Teddy G in his honour. These names were then given to two bears newly presented to the Bronx Zoo, and manufacturers seized on the event to put toy bears called Teddy Bears on the market» (pg. 1362).

(O cartoon original desenhado por Clifford K. Berryman.)

Agradeço a todos os participantes.
Fiquem atentos, porque os passatempos vieram para ficar nos Cadernos de Daath.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Passatempo "Brinca Comigo!"

Ofereço um exemplar de Brinca Comigo! e outras estórias fantásticas com brinquedos (Escrit'orio, 2009) ao primeiro leitor dos Cadernos de Daath que responder correctamente à seguite pergunta:

- Qual o nome do famoso brinquedo que é uma criação inspirada num incidente que envolveu um ilustre presidente norte-americano?

Enviem a resposta para o email: passatempo.brincacomigo (at) gmail.com.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Brincadeiras perigosas

O Fantástico está de volta: Brinca Comigo! e outras estórias fantásticas com brinquedos (Escrit´orio, 2009) estará disponível nas livrarias, a partir da próxima semana. Uma edição que promete dar que falar nos sapatinhos dos jovens leitores, neste Natal que aí se apressa. (A Escrit´orio consiste na nova casa das Edições Chimpanzé Intelectual; designação que, a partir desta edição, passa a ser o nome da colecção de literatura fantástica da editora supracitada.)

Trata-se de uma antologia composta por quatro contos, nos quais o elemento comum são os brinquedos; são, pois, histórias fantásticas com brinquedos, algumas bem negras, escritas por João Barreiros, João Ventura, Luís Filipe Silva e por mim: quatro histórias, quatro autores, quatro formas diferentes de olhar a literatura fantástica. Quatro boas razões para nunca mais passar a olhar para brinquedos da mesma maneira.

Brinca Comigo! teve o condão de fazer com que os seus autores regressassem aos tempos de infância para se lembrarem dos primeiros sustos que apanharam. Nessa óptica, as fotos que acompanham as biografias dos quatro cavaleiros do apocalipse são imagens deles enquanto petizes... A minha é esta:

Fãs de literatura fantástica, de horror ou, simplesmente, gente com curiosidade de ver como é que os autores eram, antes de crescer... a antologia Brinca Comigo! é para vocês.

O meu conto (com brinquedos e com vampiros) intitula-se Um Erro do Sol. Deixo-vos um excerto:

«Encontravam-se cercados por formações rochosas, matizadas de diversos tons de antracite; algumas camadas de rocha abriam-se em leque e exibiam nervuras e manchas que lhes emprestavam um aspecto de cauda de pavão. Sobre elas, altiva e acolchoada de neve, erguia-se a Crista. Não havia nada sobre a areia: nem detritos, nem pegadas de homens ou animais. Martin achou que a praia até parecia alcatroada. Tirando os óculos escuros, Surtr aproximou-se dele e perguntou:
‘O que é que quer fazer?’
O homem viu que os filhos tinham tirado as luvas e estavam a brincar com a areia. Karen vigiava-os.
‘Não sei’, respondeu Martin. Tirou os óculos escuros e inspirou fundo. ‘O que é que existe por trás disto?’, perguntou, apontando para os penhascos.
‘Pedras’, disse Surtr, pondo os óculos. ‘É igual a isto em todo o lado.’
‘Não existem… caminhos?’ Martin deu um passo em frente, olhando para as rochas como se quisesse ver através delas. ‘Uma estrada, talvez?’
‘Não há nada’, disse Surtr. ‘Mais valia estarmos na Lua.’
‘Na Lua?...’ Martin mordeu o lábio inferior. Foi ter com Karen e perguntou-lhe o que é que ela achava.
‘Agora que estou aqui, gosto’, disse ela, acenando com a cabeça. ‘Não é tão assustador como pensava.’
‘Sim, mas o que é que achas daquilo que o empregado da loja disse?’, perguntou Martin. ‘Achas que mora aqui alguém?’
‘Não sei, Martin’, respondeu a mulher, encolhendo os ombros. ‘Não parece um sítio habitável, mas sabe-se lá o que é que existe atrás disso.’
‘Olha, mãe’, disse Caroline em voz alta, apontando para o outro extremo da praia. ‘Focas.’
Karen virou-se e, ao longe, viu duas focas pretas a deslizar para dentro de água.
‘São duas foquinhas, amor’, disse ela, pondo-se de cócoras para ficar ao nível da filha.
‘Não’, disse Surtr, aproximando-se. ‘Duas, não.’ Fez uma pausa e acrescentou: ‘Dezenas.’
Martin pôs os óculos escuros graduados e, semicerrando os olhos, percebeu que naquele sítio a praia estava cheia de focas, mas como elas eram da cor da areia não tinha dado por elas. Não faziam barulho e mal se moviam.»

Nas livrarias a partir da próxima semana. (Em breve, divulgarei mais detalhes.)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Conversas Imaginárias

No próximo sábado vai ter lugar a primeira sessão do evento Conversas Imaginárias, organizado por Rogério Ribeiro, um dos criadores e organizadores do evento Fórum Fantástico que tem dado a conhecer aos leitores portugueses alguns dos mais relevantes autores de literatura fantástica em actividade, tanto estrangeiros como portugueses. É, pois, nessa óptica de divulgação - e de enriquecimento - que Conversas Imaginárias se apresentará aos leitores e apreciadores do Fantástico nas artes; nos dias 21 e 28 de Novembro, na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro, em Telheiras (Lisboa).

O programa é variado e conta com as participações de diversos autores portugueses de literatura fantástica, como António de Macedo, João Seixas, Luís Filipe Silva, João Barreiros e eu.
Consultem com regularidade o weblog do evento para ficarem a par de todas as novidades. Entretanto, o programa é o seguinte:

Sábado 21 de Novembro
(auditório da Bibloteca Municipal Orlando Ribeiro)

16:00-17:15Mesa-redonda: Concept artists nacionais.
Com Andreas Rocha, Gonçalo Sousa e Filipe Teixeira.

17:15-17:45Intervalo.

17:45-19:15Exibição de curtas-metragens e Mesa-redonda "Cinema Fantástico Português".
Com Rita Palma (moderação), Paulo Prazeres, António de Macedo, Filipe Melo e Pedro Florêncio.
Com a exibição de FRUNC, Papá Wrestling e I’ll See You In My Dreams.

Sábado 28 de Novembro
(auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro)

Feira do Livro Fantástico (em confirmação - no átrio).

15:00-15:45Mesa-redonda “Auto-edição em Portugal: oportunidades e problemas”.
Com Pedro Ventura (moderação), Paulo Fonseca e Rafael Loureiro (+ convidado a confirmar).

15:45-16:15Sugestões de Leitura.
Com João Barreiros, Nuno Fonseca e Cristina Alves.

16:15-16:45Intervalo.

16:45-17:45Mesa-redonda "Novidades em Banda-Desenhada".
Com Ricardo Venâncio, Rui Ramos, David Soares e Filipe Melo.

17:45-18:30Mesa-redonda “Novas aventuras do Fantástico Português”.
Com Telmo Marçal, Fábio Ventura, Bruno Martins, Ana Vicente Ferreira.

18:30-19:15Mesa-redonda "A Literatura Fantástica Portuguesa: Passado e Presente".
Com Maria do Rosário Monteiro (moderação), Safaa Dib e João Seixas (+convidados a confirmar).

Mistério

Quem será que está nesta imagem, que parece ter sido retirada de um canhenho de outrora? E como é que este enigma se relaciona com a literatura fantástica portuguesa?
Darei as respostas, em breve. Fiquem atentos.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"Mucha" no Porto: as fotos.

No sábado passado, eu, Osvaldo Medina e Mário Freitas deslocámo-nos até à loja Mundo Fantasma, no Porto, para apresentar Mucha, o nosso álbum de banda desenhada. Em paralelo, inaugurou-se nesse dia, na galeria de arte da loja, uma exposição de pranchas originais dos álbuns Mucha e de A Fórmula da Felicidade (este com argumento de Nuno Duarte): ambos os títulos têm arte de Medina e são editados pela Kingpin Books. Agradeço aos meus colegas Mário e Osvaldo pela cumplicidade, ao Júlio Moreira e pessoal da Mundo Fantasma pela simpatia com que nos receberam e, claro, aos amigos que apareceram e tornaram o evento ainda mais especial com as suas presenças.
Nota: visitem a exposição das pranchas originais com a arte de Osvaldo Medina e Mário Freitas. Estará aberta até 11 de Dezembro.

Durante a viagem até ao Porto, o nosso carro deu boleia às groupies dípteras que passarão a acompanhar-nos em todos os eventos relacionados com o álbum Mucha.

Na galeria da loja portuense de banda desenhada Mundo Fantasma.

Apresentação do álbum Mucha e inauguração da exposição Moscas & Fórmulas com as pranchas originais desenhadas por Osvaldo Medina (Mucha e A Fórmula da Felicidade).

Osvaldo Medina, eu e Mário Freitas.

Carla Seixas, João Seixas e eu.

Eu, Mário Freitas e Rui Baptista.

Osvaldo Medina.

Mário Freitas.

Nuno Duarte e Osvaldo Medina.

Júlio Moreira (responsável pela galeria), Nuno Duarte, Osvaldo Medina, eu e Mário Freitas.

Osvaldo Medina e eu.

Osvaldo Medina, eu e Mário Freitas.

Nuno Duarte, Osvaldo Medina, eu e Mário Freitas.

Eu.

Mário Freitas e eu.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

"Mucha" voa até ao Porto

No próximo Sábado, às 16H00, os três autores do álbum de banda desenhada miiófila Mucha deslocam-se à loja Mundo Fantasma (Shopping Center Brasília, Avenida da Boavista, 267, 1º andar) para apresentar esse trabalho aos leitores do Norte e personalizar exemplares. Em paralelo será inaugurada a exposição das pranchas originais de Mucha, com arte de Osvaldo Medina (desenho) e Mário Freitas (arte-final), e também das pranchas originais do álbum A Fórmula da Felicidade vol.1 de Nuno Duarte (argumento) e Osvaldo Medina (arte). Nuno Duarte também estará presente na sessão de autógrafos, para falar com os leitores e personalizar exemplares do seu álbum, cuja publicação do segundo volume está agendada para breve. Ambos os títulos (Mucha e A Fórmula da Felicidade) são edições Kingpin Books.

Os Senhores das Moscas

(David Soares.)

(Osvaldo Medina.)

(Mário Freitas.)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

"Mucha" no FIBDA: a Entrevista

Uma entrevista comigo, realizada no lançamento de Mucha, nesta edição do FIBDA.

A peça contém algumas inexactidões, mesmo assim. Por exemplo: apesar de desenhar, e ter estudado ilustração no Ar.Co, não me considero nenhum ilustrador. O meu novo romance também não é sobre vampiros nem tem vampiros nenhuns. A confusão adveio do facto de eu ter dito no lançamento que estava a escrever uma história com eles para uma antologia de contos de horror que vai sair este Natal pela Chimpanzé Intelectual.

Em breve darei notícias sobre esse livro, e outros em que vou participar, assim como desvendarei pormenores sobre o meu novo romance.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Lizbona Triumfujaca

A revista polaca Lampa, dedicada à divulgação cultural, lançou um número especial sobre literatura portuguesa; a tónica é colocada na prosa editada depois do 25 de Abril de 1974. Entre excertos de obras de autores como Mário de Carvalho, Lídia Jorge ou José Saramago, encontra-se um do meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), numa tradução realizada por Jakub Jankowski.

Esta edição da Lampa apresenta, ainda, uma amostra de banda desenhada portuguesa, na qual se encontram trabalhos de José Carlos Fernandes, Luís Henriques, João Mascarenhas, Pedro Burgos e João Paulo Cotrim.

Uma edição com o apoio do Instituto Camões de Varsóvia.

Invisualidade sonora

Foi com pena que li que o programa Invisual de Marcos Farrajota, na mítica Rádio Zero, vai de férias durante um tempo indeterminado. Fui lá duas vezes, nas quais me diverti bastante, e até cheguei a levar uns pastéis de Belém para eu e o Marcos comermos enquanto ouvíamos as músicas mais delirantes. Ficam as recordações de uns momentos bem passados.
O Marcos disponibilizou a lista de podcasts para que possam fazer download dos vossos programas preferidos. Deixo-vos os links para as minhas duas entrevistas: a primeira sobre A Conspiração dos Antepassados e a segunda sobre o Lisboa Triunfante, mas, com efeito, ambas acabam por ser sobre várias coisas. (A minha voz ouve-se um pouco mal na segunda, por culpa de um problema inesperado com o microfone, mas nada que um ouvido atento não dê resposta.)

Da minha parte, cá fico à espera que o programa regresse o mais depressa possível.

domingo, 25 de outubro de 2009

"Mucha" no FIBDA








quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Debate sobre literatura fantástica na SPA

No âmbito do ciclo Com Todas as Letras: Livros, Autores e Editores em Debate, uma iniciativa organizada pela revista Os Meus Livros e pela Sociedade Portuguesa de Autores, vai ter lugar no Auditório Maestro Frederico de Freitas (Avenida Duque de Loulé, nº31) o debate FC e Literatura Fantástica: O Reinado da Imaginação. É na próxima terça-feira, às 18H30.

De acordo com o press release, a conversa versará temas como «os universos paralelos, as pontes com a realidade, o mercado crescente, o regresso dos vampiros, a escassez de autores nacionais e outras questões não menos pertinentes. Na mesa, editores, a voz da crítica e quem escreve».

Na mesa estarão João Seixas (editor da Livros de Areia e colaborador da revista Os Meus Livros), Luís Corte-Real (editor da Saída de Emergência), Pedro Reisinho (editor da Gailivro) e eu na qualidade de autor de literatura fantástica.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

MUCHA - Sessões de autógrafos no FIBDA

Os Miiológos:

Dr. David Soares, Dr. Osvaldo Medina, Dr. Mário Freitas.

Estes três académicos, especializados em miiologia por paixão e vocação quasi-religiosa, privaram-se de uma carreira notável na Universidade ao abraçarem a infame linguagem da banda desenhada (coisa que qualquer pessoa séria reconhece como sendo o vício dos iliteratos) para publicarem uma inacreditável tese de doutoramento, desprovida de qualquer qualidade científica, sobre um aterrorizante fenómeno que envolveu moscas, nazis e paganismo polaco, nos finais da década de trinta do século XX. Embora nunca tenham recuperado o prestígio junto da Academia, esperam, no mínimo, que a sua descoberta chegue ao conhecimento dos jovens leitores e, para o efeito, convenceram as boas almas do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora a deixá-los marcar umas sessões de autógrafos, de modo a alertar o público insuspeito e autentificar exemplares de Mucha; publicado pela Kingpin Books, editora orientada para este tipo de material sensacionalista.

Os dias e os horários exclusivos em que estes partiari desesperados estarão presentes no FIBDA são os seguintes:

- Dia 24: das 17H00 às 18H00.
-Dia 25: das 17H00 às 18H00.
- Dia 31: das 15H00 às 17H00.
- Dia 1: às 18H00
- Dia 7: das 17H00 às 18H00
- Dia 8: das 17H00 às 18H00.

Da minha parte, aviso que só irei estar presente no primeiro e no último fim de semana do festival, mas o Osvaldo Medina e o Mário Freitas estarão à espera de quem aparecer no segundo fim de semana, claro.


sábado, 17 de outubro de 2009

A burocratização do Mal

«O horror inventado pode ser avassalador», escreveu Susan Sontag em Regarding the Pain of Others.
Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, filme realizado por Pier Paolo Pasolini, é uma obra dessa estirpe.

A natureza da arte é criar beleza; e o cinema, como a fotografia, fá-lo de um modo descomplexado, inclusive quando a matéria apresentada prima por um insustentável grau de violência (Witkin, Peckimpah, Verhoeven). Quer se trate de instantâneos capturados no campo de batalha ou cenas gravadas numa cela escura de uma instituição punitiva existe sempre uma composição vestigial mecanizada pelo fotógrafo ou pelo cineasta, uma certa direcção artística. Mas em Salò não existe nenhuma beleza; no mínimo, beleza envernizada. As imagens do filme são baças e estáticas. Sobretudo não indicam um juízo de valor e isso é confuso o suficiente, pois essa nudez quasi-documental faz do espectador um cúmplice.

Num pequeno documentário que integra os extras da edição em DVD da Costa do Castelo Filmes, a realizadora de Romance, Catherine Breilat, diz que Salò é uma obra cinematográfica que oferece uma experiência impossível de ser alcançada ou ultrapassada pela leitura. Sinto-me inclinado a concordar, pois considero que a imaginação individual é, por vezes, demasiado pobre em experiências alarmantes para fabricar imagens que consigam evocar sentimentos semelhantes aqueles que assolam o espírito e o corpo diante de obras como Salò.
Não obstante, discordo, de igual modo, de Breilat, porque o filme de Pasolini é, na sua máxima espessura, uma obra literária.

O realizador da Trilogia da Vida é, acima de tudo, um escritor e os filmes que nos deixou, mais que imagens sobre enredos, são contos ilustrados por imagens animadas. Esta desventura que nos conta a história de quatro italianos, pertencentes à elite fascista, que decidem acabar os seus dias numa propriedade isolada de modo a dedicarem-se a ininterruptos exercícios de crueldade é toda contada em pequenos episódios, seja pelas prostitutas incumbidas de abrir as sessões orgiásticas com relatos titilantes ou por farrapos que parecem ter caído de um caderno de apontamentos como são exemplo os diálogos delirantes entre os velhos pederastas. É uma espécie de A Grande Farra às avessas.

Acredito que as alacridades perpetradas pelos carcereiros são comentários aos contos das prostitutas: a personagem interpretada por Umberto Paolo Quintavalle, ele próprio um escritor sem experiência de representação e convidado por Pasolini em virtude da compleição doentia, interrompe o relato da primeira prostituta e exige que ela seja pródiga em pormenores. Só dessa forma, explica, pode ele, e os colegas, retirar o combustível necessário às diabruras.

«É aceite entre os verdadeiros libertinos que as sensações comunicadas pelo ouvido são as mais vivas.»(1)

O conto de prostíbulo é a primeira obra e a sevícia imaginada em seguimento é, dessa forma, o comentário - o segundo texto. O homem que corrompe o corpo do adolescente que escolheu para vítima é, apenas, um crítico, um teórico que intenta complemetar o opúsculo original e explorar as possibilidades gramaticais que este deixou em aberto.

Acentuei gramaticais e não semânticas, pois as brincadeiras ofensivas não visam a pessoalidade da vítima nem a intimidade que poderia ter-se desenvolvido entre ela e o carrasco. A violência dirige-se ao corpo; e ao corpo enquanto aparelho composto de peças (mãos, boca, órgãos genitais) que podem ser substituídas por outras se manifestarem defeito. Um bom exemplo dessa lógica industrialista é uma cena iniciática na qual um dos fascistas recusa uma rapariga durante uma mostra porque lhe descobre um dente cariado. Não existe qualquer desejo em Salò e nenhum ódio. Existe burocracia.

Uma vontade de parar o tempo histórico exterior aos muros da propriedade tornada campo de concentração e que anuncia a capitulação do fascismo que protege a República de Salò criada por Mussolini. O que os quatro fascistas tentam fazer é cristalizar o fluxo; ou melhor, fazê-lo circular como o tempo vivido pelas sociedades primitivas. Justifica-se, assim, a escolha do calendário dantesco (os Círculos das Manias, da Merda e do Sangue) que orienta os dias deles de volta ao primeiro instante - à inauguração: a esse momento recheado de novas possibilidades e novos corpos prontos a ser abraçados. Os fascistas de Salò não temem o tédio, pois sabem que tudo irá recomeçar: o tempo é o seu palimpsesto.

«Belo e certo céu, vê-me a ser diferente! Após tanto orgulho, tanto e estranho ócio, carregado embora de estranhos poderes, faço a minha entrega ao espaço brilhante, sobre o lar dos mortos corre a minha sombra (…)»(2)

O Mal que respira em Salò - e argumentar que conceitos de Bem e de Mal não se aplicam a este filme é falacioso - é um terror despersonalizado; no sentido da não-encarnação. É um ectoplasma indistinto que voga sobre os indivíduos, moldando-lhes o comportamento, como o clima. É o mesmo tipo de mal que encontro nos aparelhos punitivos das histórias de Kafka e nas figuras intersticiais dos Ringwraiths de O Senhor dos Anéis, de Tolkien: uma presença que mais que testemunhada é sentida.
A burocratização do mal, epígona da metade do século XX, não é fruto da hierarquia que se instaura no interior da propriedade, e que rege tanto o escritório como o excretório, mas, possivelmente, contingência de um fenómeno mais antigo: o advento do Iluminismo e a cessação das meta-narrativas (mitos) de ordem religiosa.
Com efeito, a imagem analógica do campo de concentração endémico do período da Segunda Grande Guerra é o Inferno.

«Tem-se falado muito da solidão e da desorientação do homem desde a época em que o Paraíso deixou de ser objecto de uma crença activa. Conhecemos o vazio neutro dos céus e o seu terror. Mas talvez a perda do Inferno tenha sido mais devastadora ainda. Talvez a transformação do Inferno em pura metáfora tenha deixado uma lacuna formidável nas coordenadas do reconhecimento espacial e psicológico do espírito do Ocidente. A ausência dos condenados familiares escavou um vórtice que o Estado totalitário contemporâneo terá vindo preencher. Não temos Paraíso nem Inferno é ficarmos intoleravelmente despojados e sós num mundo sem espessura. Dos dois reinos perdidos, verificou-se que era o Inferno o mais fácil de recriar. (As suas descrições tinham desde sempre sido mais precisas.)»(3)

A casa de Salò é um Inferno miniaturizado e as quatro personagens que a governam são embaixadores dos poderes institucionais: temos um juiz, um bispo, um duque e um político. Todos eles casados com as filhas uns dos outros, como que para sublinhar o pacto - a consanguinidade - entre os departamentos. A fenomenologia da hierarquia é a dominância, claro, mas mais que o simples jugo dos indivíduos, sob graus de exigências, é a domesticação do desconhecido. Numa hierarquia cada um tem o seu lugar cativo e as relações entre constituintes cumprem-se pela correspondência. Ora, o Homem hierarquizou o Inferno - em círculos, em diversos níveis de torturas para os pecados mais exóticos, regidos por castas demoníacas de diferentes importâncias - para o conhecer: para negociar com o Inominável.
O Diabo que atende o sacrifício do nobre é superior ao Familiar que auxilia a bruxa, e assim cada qual controla o seu medo do desconhecido com um sistema de correspondências que não assusta ninguém pois reproduz o modelo feudal terreno. A perda de todo esse sistema deixou, com toda a certeza, cicatrizes profundas no nosso tecido cultural. A transcrição de George Steiner aponta um efeito dessa queda, mas haverá outros.

Baseado no livro homónimo escrito pelo Marquês de Sade, Salò suplanta esse trabalho literário e apresenta-se como um objecto mais lúcido: o humor do filme é sempre acidental, inversamente ao humor de Sade que procura ser constante. Pasolini cita Pierre Klossowsky, irmão de Balthus Klossowsky, e o seu Sade, Mon Prochain (título que evoca S. Bento Labre que comia as lombrigas expulsas nas próprias fezes), Roland Barthes e Sade, Fourier e Loyola, entre outros autores. Curiosamente, olvidou, intencionalmente ou não, o ensaio de Bataille em La Littérature et le Mal. O enredo de Salò pode ser entendido como uma sátira (grotesca) à erotização da relação que se estabelece entre professor e aluno. Como se os assassinos procurassem discípulos dignos entre as vítimas e as torturas fossem uma correspondência desproporcional com os ritos de passagem arquetípicos que os neófitos precisam cumprir para ganharem a confiança dos Mestres e garantir o treino intelectual ou físico. A ir por esse caminho, também ele legítimo, encontro nesta transcrição de Yukio Mishima o exemplo perfeito dessa premissa:

«Ele é o homem mais livre do mundo... Ele acumula o Mal e ergue-se sobre ele. Se quisesse, poderia tocar a Eternidade com as pontas dos dedos levantados. Ele que fez santidade da imundice.»(4)

Os celerados de Salò afundam-se na bebida e em acesas discussões filosóficas sobre a natureza do Mal. É preciso não esquecer que são eles a elite do seu país: aqueles que lêem e têm acesso à cultura estrangeira alvo da censura imposta pelo regime. Assistimos à aniquilação da civilidade do Homem de Cultura, pois ele não previne a barbárie e acaba, enfim, por se perder em prejuízo de rituais sem sentido que têm como objectivo iluminar o seu espírito sobre um conhecimento mais elevado, mais transcendental. Sob a égide de que nada deve ser proibido se for excessivo, os fascistas de Salò almejam a ascese, mas o próprio movimento circular em que estão imersos regurgita-os sempre à ignorância. O Homem Clássico foi, em certa medida, um felizardo, pois nunca travou conhecimento com a face mais desumana do seu descendente.

Salò pertence a uma escola de cinema que se extinguiu. O casting de Pasolini é correctíssimo: as composições dos quatro fascistas são verdadeiramente repulsivas. Neste filme tudo é feio – até atonal.
No cinema, o texto literário é, cada vez mais, somente uma legenda para a imagem projectada. Em Salò as imagens ferem, é certo, mas quem deixa marcas é a palavra.
Mandatório. Nem que seja visto só uma vez.

(1) Marquês de Sade, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma.
(2) Paul Valéry, O Cemitério Marinho.
(3) George Steiner, No Castelo do Barba Azul: Algumas Notas Para a Redefinição da Cultura.
(4) Yukio Mishima, Madame de Sade.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Vencedores do passatempo "Mucha"

Afinal já estão apurados os vencedores do passatempo Mucha.

Foram vinte e três participações e só três pessoas deram a resposta certa. As duas mais rápidas foram enviadas pelas leitoras Raquel Pais e Paula Robalo. Ambas ganharam um exemplar de Mucha, assinado por todos os autores. Parabéns!

A resposta certa era: miiófobo.
A fobia por moscas chama-se miiofobia.

Obrigado a todos os que participaram.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Passatempo "Mucha"

Dois exemplares de Mucha (assinados por mim, por Osvaldo Medina e por Mário Freitas) estão à espera dos leitores dos Cadernos de Daath que responderem de modo correcto a esta questão: que nome se dá a quem tem fobia por moscas?

Até ao final desta semana enviem um email com a resposta certa, mais os vossos nomes, para o seguinte endereço: passatempo.mucha(at)gmail.com. Os mais rápidos ganham.

Para a semana, divulgo os nomes dos vencedores. Boa sorte!

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

"Mr. Burroughs" em livro de ensaios sobre BD

O meu álbum de banda desenhada Mr. Burroughs, desenhado por Pedro Nora e editado há nove anos pela minha (entretanto extinta) chancela pessoal Círculo de Abuso, é um dos livros escolhidos pelo académico Bart Beaty para figurar no seu ensaio sobre banda desenhada intitulado Unpopular Culture (Universtity of Toronto Press, 2006).
Diz Beaty que Mr. Burroughs é uma «surrealist, nightmarish reconceptualization (...) flattering to the comics form, seen as it is by many as a cross between literature and the visual» (pg. 101).

É sempre bom ver quando o nosso trabalho é reconhecido lá fora, sobretudo a nível académico.
Mr. Burroughs foi publicado em francês pela editora franco-belga Frémok (2002).

(Eu, numa loja de BD em Paris, com a edição francesa de Mr. Burroughs.)