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quarta-feira, 31 de março de 2010
sexta-feira, 26 de março de 2010
Entrevista para o programa "Livraria Ideal" online
A entrevista que dei para o programa Livraria Ideal, de João Paulo Sacadura (TVI24), já está disponível online: uma conversa sobre o meu trabalho, literatura fantástica, horror, história e muito mais.
Quem não viu a transmissão televisiva a 25 de Março pode ver a entrevista nesta ligação.
Quem não viu a transmissão televisiva a 25 de Março pode ver a entrevista nesta ligação.
quinta-feira, 25 de março de 2010
Hoje: entrevista no programa "Livraria Ideal"
Hoje, às 20H30, no canal TVI24, serei o convidado do programa sobre literatura Livraria Ideal, de João Paulo Sacadura: uma conversa sobre literatura fantástica, horror, história e muito mais.
Antes de ficar disponível para visualização no site da TVI24, o programa repete nos seguintes horários: esta noite às 01H30 e às 04H30; na madrugada de sexta feira às 03H40; e Domingo, às 08H30.
Antes de ficar disponível para visualização no site da TVI24, o programa repete nos seguintes horários: esta noite às 01H30 e às 04H30; na madrugada de sexta feira às 03H40; e Domingo, às 08H30.
quarta-feira, 24 de março de 2010
Dez anos a escrever livros
Este ano faço dez anos de carreira, como autor publicado - e sempre apresentando um livro novo por ano. Já são doze livros, de banda desenhada e prosa; sem contar com os títulos em que participo regularmente, como escritor convidado.
Foi em Abril de 2000 que editei o álbum de banda desenhada Cidade-Túmulo, adaptação de uma história de horror que publiquei na antologia de contos Mostra-me a Tua Espinha (2001). Dez anos depois é com muita satisfação que vejo O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência), que é o meu terceiro romance, ter críticas tão efusivas, tanto na imprensa especializada, como nos weblogs dos leitores.
Obrigado a quem me acompanha desde que o pequeno álbum de BD a preto e branco, cuja capa reproduzo acima, foi para as livrarias: daqui a dez anos voltamos a comemorar.
Foi em Abril de 2000 que editei o álbum de banda desenhada Cidade-Túmulo, adaptação de uma história de horror que publiquei na antologia de contos Mostra-me a Tua Espinha (2001). Dez anos depois é com muita satisfação que vejo O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência), que é o meu terceiro romance, ter críticas tão efusivas, tanto na imprensa especializada, como nos weblogs dos leitores.
Obrigado a quem me acompanha desde que o pequeno álbum de BD a preto e branco, cuja capa reproduzo acima, foi para as livrarias: daqui a dez anos voltamos a comemorar.
terça-feira, 23 de março de 2010
Duas críticas sobre "O Evangelho do Enforcado"
Podem ler duas excelentes críticas a O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência) nos weblogs Esmiuçar Os Livros e Páginas Desfolhadas.
A conferir aqui: http://esmiucaroslivros.blogspot.com/2010/03/o-evangelho-do-enforcado-david-soares.html.
E aqui: http://paginasdesfolhadas.blogspot.com/2010/03/o-evangelho-do-enforcado.html.
A conferir aqui: http://esmiucaroslivros.blogspot.com/2010/03/o-evangelho-do-enforcado-david-soares.html.
E aqui: http://paginasdesfolhadas.blogspot.com/2010/03/o-evangelho-do-enforcado.html.
segunda-feira, 22 de março de 2010
Entrevista para o "Livros Com Rum" em podcast
A minha entrevista sobre O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência) para o programa Livros Com Rum (da Rádio Universitária do Minho) já está disponível em podcast nesta ligação.
Uma entrevista conduzida pelo académico e jornalista António Ferreira.
Uma entrevista conduzida pelo académico e jornalista António Ferreira.
sábado, 20 de março de 2010
A Ode ao Negro
Os pintores chamados impressionistas, do final do século dezanove, não acreditavam que o preto fosse uma cor, porque sabiam, com razão, que essa pigmentação não reflecte nem emite qualquer tipo de luz visível ou invisível. Apodados pelo crítico de arte Louis Leroy com base no título do quadro Impression, Soleil Levant, de Claude Monet, artista que, tal como um verdadeiro vampiro, era capaz de ver os comprimentos de onda da luz ultravioleta (o que, à distância, serve de explicação para a excentricidade da sua paleta), eles nunca poderiam relacionar-se com a cor negra do mesmo modo que se comportavam junto do púrpura, do azul ou do vermelho. Simpatia pelo laranja, sim. Amizade pelo amarelo, também. Talvez, num final de tarde chuvoso, e se o almoço tivesse caído bem, pudessem perceber a delicadeza da cor da madeira e das nuvens cor de ferrugem; mas nunca, nem em momentos luminosos como estes, poderiam sentir senão desdém pela profundeza preta, acromática, que aos seus olhos parecia roubar-lhes a luz, à guisa de cegueira.
Vivemos num mundo de luz e, por conseguinte, de cores. Somos capazes de ver algumas, enquanto que outras escapam, de modo cabal, ao nosso escrutínio. Este mundo de cores, azul de madrugada, dourado ao meio-dia e púrpura ao crepúsculo, é antigo, com cerca de catorze mil milhões de anos de idade. Na verdade, é um palimpsesto, sobre o qual o velho é rasurado para se escrevinhar o novo; um pedaço curvo de papel com, mais ou menos, noventa e quatro mil milhões de anos-luz de diâmetro: mais do que suficiente para fragilizar qualquer candidato a demiurgo; aterrorizante o bastante para provocar um infinito bloqueio de escritor. Flutuante no fluido espácio-temporal, como uma página arrancada a uma sebenta, esta quase imensurável vastidão branca não poderia valer de muito vazia e, depois de um primevo período de impedância, alguém, alguma coisa, percebeu o potencial do suporte e, sem que ninguém ou nada o impedisse, começou… a escrever!
«No princípio era o Verbo.»
Verbo ou palavra, mas não falada porque nenhuma boca existia ainda. Uma palavra escrita. E escrita a preto. Criação em formato de alto contraste: preto sobre o branco. Formas delineadas com verve sobre a desapaixonada vagueza albugínea.
O preto é a cor do universo. É a cor da primeira tinta criada pelo homem, em imitação imperfeita do autor oculto que lhe ortografou as origens. Desde a alvorada da história que o homem cria narrativas, pintadas com pigmentos puros em paredes de pedra – poesia primordial, petroglifos sequenciais, esboçados com partículas carboníferas provenientes de pedaços de ossos queimados. Quem foram estes neófitos neolíticos? Que inspiração primeva lhes lembrou de agarrar nas cinzas? Estes Ads Reinhardts primitivos, estes Wassilys Kandiskys das grutas, munidos com mais nada a não ser carbono e imaginação, deram-nos pistas pretas para pintar o porvir – para envolver os nossos próprios assuntos na abissal gramática do cosmos. Estrelas de rocha orbitam estas galáxias subterrâneas (tão pungentes quanto apaixonantes) de figuras toscas que ilustram os tectos eritematosos das cavernas: um Zodíaco de animais e homens extintos, signos sagrados que atenderam ao nascimento da fantasia.
O preto é, de maneira geral, a cor do pessimismo, da tristeza e da angústia. Costuma estar associado, na psique popular, à bruxaria e aos malefícios, mas o preto também é a cor do mistério e dos desígnios sobrenaturais. Judas é representado na iconografia cristã como tendo uma aura preta e Cristo traja paramentos pretos nas passagens em que é tentado pelo Diabo, personagem que é conhecida por Príncipe das Trevas. Em certas regiões rurais europeias ainda é praticado o invulgar jejum da galinha preta, no qual um suspeito de um crime é obrigado a jejuar durante nove dias: se ele não confessar, passado esse período, morre. Compreende-se com facilidade que o propósito da chamada Magia Negra é instrumentalizar o poder sobrenatural, na maioria das vezes sob diligência do Diabo, para desencadear danos. O mesmo Diabo que é representado num mosaico bizantino do século XIII, na catedral italiana de Torcelo, como sendo um velho de pele de antracite que tem o Anticristo ao colo. Do mesmo jaez, os diabretes da famosa Imagem da Escada do Paraíso de São João Clímaco, que puxam as pernas das almas ascendentes, para arrastá-las para o Inferno, são todos pretos. É a indicação de que se tratam de seres unidos ao mundo inferior ctoniano. Quando querem diabolizar personagens de ficção, ou dar a entender que elas são agentes do mal, os criadores têm o hábito de vesti-las de preto, como os vilões dos filmes mudos e os cavaleiros negros das canções de gesta, ou dar-lhes pele preta, como o autor belga de banda desenhada Peyo fez aos estrumpfes negros.
Mais do que qualquer outra cor, o preto emite um desafio que quase invoca as palavras que Cristo ressuscitado dirigiu a Maria Madalena: noli me tangere. O preto é uma cor austera, isenta e elegante. É uma cor inconformista, incomprometida e incompreendida. As variedades mais mansas de espécies consideradas perigosas costumam ser as melasmáticas, como o urso preto, o leopardo preto, o escorpião preto, o touro preto e o rinoceronte preto. Nem sequer o gato preto é tão tempestuoso quanto o siamês.
Serão ecos da melainacholé associada à cor negra?
Será por culpa disso que a cultura gótica tem fama de ser depressiva?
«A poesia é tanto dos túmulos!», disse o poeta Mendes Leal, melancólico autor de Os Dois Renegados, o primeiro “dramalhão” à portuguesa. E lúgubre é o Locus Horrendus luso, permeado por púrpuras pedaços de prosa, como «horror misterioso», «roxo cadáver», «ossos mirrados», «fétidas carnes», «espectros que volteiam», «pávidas sombras» e, uma das minhas preferidas, «lúcidos fantasmas», que, verdade seja dita, é um excelente nome para uma banda. Entre nós, sobretudo na literatura de folhetim da primeira metade do século XIX, encontramos um tema continuado: o do desenterramento do defunto e o resgate da sua caveira como símbolo de uma vida miserável, terminada tragicamente. Literatura de cemitério é certo, como A Caveira de Camilo Castelo Branco, mas, em primeiro lugar, uma literatura de meditação – de realce dos flagícios da alma. Baladas românticas estes contos tristes não são: sem préstimo para entreter, nem indicados para quem tem bom gosto. Contém um coração negro; um invencível pulsar nocturno e melancólico que os consubstancia. Mas melancolia não é horror… Na nossa literatura mais negra encontravam-se contos tristonhos de naufrágios, casos de amor infrutíferos, trovas saudosistas, às vezes um ou outro relato de feitiçaria ou uma partida pregada pelo Diabo, mas nenhum verdadeiro horror.
Porém, o que é a melancolia senão o «carácter da mortalidade», como expressou Burton no seu magnífico tratado? Não é ela o pomo da actuação morbígera da bílis negra em demasia, que é um dos quatro humores e torna os homens cismáticos, irritadiços e inquietos? Muitas criaturas das trevas têm sangue preto. Mesmo assim, há outros melancólicos que, sem serem vilões, vêem um arco-íris e querem pintá-lo de preto, como fizeram os Rolling Stones em 1966. Em referência aos humores negros, não é curioso que, quase trinta anos depois, a banda sueca Deranged, que fez uma cover dessa música, tenha editado outra, no mesmo disco, intitulada Vingança do Sémen Preto? Noutras latitudes, o compositor finlandês Jean Sibelius compôs o opus O Cisne de Tuonela, sobre o cisne negro que Lemminkäinen, o herói do poema épico Kalevala, é incumbido de matar, antes de ser assassinado por uma seta envenenada. Vale a pena especular sobre a coincidência de Sibelius ter sido maçon, e composto música ritualística maçónica, quando a descrição de Lemminkäinen morto pela seta é análoga à exposição do corpo inerte de Hiram Abiff na imagética do terceiro grau simbólico da Franco-Maçonaria, que, anda por cima, tem como paramento um avental preto? Por outro lado, quando penso na cor preta, a música que me lembro com maior urgência é sempre o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven: o Allegro Con Brio e o seu bombástico riff de abertura. Esta cor e a música nunca mais se dissociaram, mas é na arte que ela encontra representações mais sofisticadas.
No quadro Calúnia, de Sandro Botticelli, que representa a queixa do pintor jónico Apeles contra as calúnias inventadas pelo rival Antiphilus, a personificação do Remorso é uma velha vestida de preto, mas quando penso sobre a cor preta na arte aquilo que lembro com mais frequência é o caminhante solitário que está virado de costas para o observador na pintura Caminhante Sobre o Mar de Nevoeiro de Caspar David Friedrich: verdadeiro farol caliginoso que arromba a bruma branca, à laia de esporão de um navio. O tom mais terreal de preto talvez pertença ao quadro Dados: 1º A Queda de Água; 2º O Gás de Iluminação, de Marcel Duchamp: reclinada de pernas abertas sobre a vegetação áspera, a Mãe Universal sugere que está pronta para o coito; o seu rosto está oculto – não é necessário vê-lo, pois ela é toda vulva. Observando-a de dentro de um espaço indeterminado, que tanto pode ser uma caverna como uma velha casa abandonada, o espectador (o iniciado?) vê essa personagem cercada por uma sombria coloração preta que contrasta de modo hostil com o céu azul. Mesmo assim, existem lugares negros muito mais terríveis que a gruta de Duchamp, se bem que mais etéreos: o interior escuro do quarto que é exibido na tela O Pesadelo de Fuseli; os cárceres desconfortáveis que podemos ver nas telas de Francis Bacon; e a câmara fatídica em que o pintor Gabriel von Max colocou o seu Anatomista. Neste quadro, o anatomista titular prepara-se para desvendar o corpo alvo de uma mulher morta: arrancando-lhe com brandura um sudário que mais parece uma placenta, o homem arroga o papel de noivo numa hierogamia entre o preto e o branco: união que gera o cinzento; cor que, no espectro cromático, possui o valor central. Logo, do Homem.
A etimologia é destino: será coincidência que todas as palavras conhecidas para designar a cor negra provenham de sinónimos para o acto de queimar? Caldos calcinantes de ossos e terra em cadinhos alquímicos pré-históricos. O Sol e a sua sombra: enxofre e mercúrio; união enegrecida da matéria e do espírito numa pasta putrefacta preta. Nigredo da existência terrena – melancolia hermética; noites saturninas, fedendo a suor e madeira queimada. «A cor preta é o silêncio do corpo depois da morte », escreveu Kandisky, de maneira melancólica: «A conclusão da vida.» Pois se há algo que a cor preta evoca com mais facilidade é o conceito da morte.
A morte é um tema que nos é difícil de abordar; se não fosse, nunca usaríamos eufemismos como sono ou não diríamos que alguém falecido de fresco encontrou tranquilidade. O que fazemos nestas circunstâncias é antropomorfizar a morte, mas isso é errado: a morte não nos pertence. A morte criada pelo poeta John Milton devorava as vísceras da própria mãe, o que pode ser interpretado como sendo uma alusão grotesca à amamentação — ao elan vitale —, mas a introdução da morte nas nossas vidas é uma experiência devastadora. A definição clínica da morte é de que se trata da cessação permanente das funções vitais, mas como atestar, de modo infalível, o fim de todas as coisas?
A respiração pode manifestar-se em movimentos do diafragma tão suaves que são invisíveis a olho nu. A descida da temperatura corporal também não é um indicador seguro. Os músculos da íris continuam a reagir à luz horas depois da morte e o ritmo cardíaco pode ser influenciado a abrandar até à quase imobilidade. Diagnosticar um óbito não é fácil e o medo de ser enterrado vivo apavorou os nossos antepassados durante séculos. Com efeito, só existe uma maneira segura de confirmar a morte: a presença da putrefacção.
Só esse estádio é apanágio da matéria morta, mas nós não assistimos à decadência dos nossos entes queridos, nem testemunhamos como a sua pele enegrece e os corpos moles incham, libertando líquidos e gases fétidos cuja pressão empurra as vísceras para fora dos orifícios naturais. Nem sequer somos capazes de imaginar o luxo em que consistiu o banquete dos vermes, antes dos coveiros esvaziarem a sepultura e jogarem fora as ossadas. «A putrefacção é a parteira de muitas coisas grandiosas! Faz com que as coisas apodreçam, para que novos frutos nasçam», escreveu Paracelsus, mas outros espíritos inquietos, e mais modernos, também celebraram a beleza da decomposição: «Lembras-te, meu amor, de uma coisa que vimos / Nessa manhã de Verão, suave: / Na curva de um caminho um pútrido cadáver, / Num leito de pedras, sozinho. (…) Na podridão brilhava o Sol com a certeza / De quem parecia cozinhá-lo, / Para devolver com juros à Mãe-Natureza / Tudo o que ela um dia juntara», versejou Baudelaire que, tão famoso ficou por culpa deste poema, lhe chamaram Príncipe das Carcaças. Porém, por mais que se poetize a morte, ela não é mistério nenhum. E também não é nenhum castigo. Nós envelhecemos porque, entre outras coisas, consumimos oxigénio: ao queimá-lo no athanor que é o corpo, libertamos resíduos corrosivos que oxidam as estruturas celulares e impedem a sua duplicação. Em suma: nós morremos porque enferrujamos!... Somos criaturas aeróbias, pluricelulares e sexuadas: tanta diversão junta tinha de ter um preço.
O preto enquanto cor do luto ocidental invoca o nigredo alquímico que amalgama a matéria e o espírito; imagem fortificada pela ideia do velório, esse período em que todos os compostos se encontram em suspenso. «Quero ser como o corvo», bradavam os alquimistas de outrora, «quero ser como o corvo» e, estupefactos, verificamos que somos mesmo todos como ele quando nos reunimos em redor do caixão recheado com o cadáver. Somos verdadeiras luzes vigilantes que deixam que o defunto putrifique, no decorrer da longa noite da alma. Desse ponto de vista, a significação da cor preta como símbolo do solo fértil faz sentido: a terra que conserva as sepulturas, morada dos mortos e novo útero. «Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer dá muito fruto», diz-nos o Evangelho de São João, no capítulo alusivo à última Páscoa: festividade religiosa que agarra o conceito da destruição da matéria, para apresentá-la renascida. Regeneração e promessa – pareceres pugnados pelo décimo terceiro arcano de um baralho de Tarot: a Morte. Iniciática, esta “morte” é, somente, o prelúdio de um nascimento verdadeiro. O ameaçador esqueleto negro que agarra a gadanha introduz o consultado num novo ponto de partida – simbolismo que não deixa de reflectir-se no próprio algarismo 13 que enumera o arcano e que sucede ao 12, número da completude.
Vivemos num mundo de luz e, por conseguinte, de cores. Somos capazes de ver algumas, enquanto que outras escapam, de modo cabal, ao nosso escrutínio. Este mundo de cores, azul de madrugada, dourado ao meio-dia e púrpura ao crepúsculo, é antigo, com cerca de catorze mil milhões de anos de idade. Na verdade, é um palimpsesto, sobre o qual o velho é rasurado para se escrevinhar o novo; um pedaço curvo de papel com, mais ou menos, noventa e quatro mil milhões de anos-luz de diâmetro: mais do que suficiente para fragilizar qualquer candidato a demiurgo; aterrorizante o bastante para provocar um infinito bloqueio de escritor. Flutuante no fluido espácio-temporal, como uma página arrancada a uma sebenta, esta quase imensurável vastidão branca não poderia valer de muito vazia e, depois de um primevo período de impedância, alguém, alguma coisa, percebeu o potencial do suporte e, sem que ninguém ou nada o impedisse, começou… a escrever!
«No princípio era o Verbo.»
Verbo ou palavra, mas não falada porque nenhuma boca existia ainda. Uma palavra escrita. E escrita a preto. Criação em formato de alto contraste: preto sobre o branco. Formas delineadas com verve sobre a desapaixonada vagueza albugínea.
O preto é a cor do universo. É a cor da primeira tinta criada pelo homem, em imitação imperfeita do autor oculto que lhe ortografou as origens. Desde a alvorada da história que o homem cria narrativas, pintadas com pigmentos puros em paredes de pedra – poesia primordial, petroglifos sequenciais, esboçados com partículas carboníferas provenientes de pedaços de ossos queimados. Quem foram estes neófitos neolíticos? Que inspiração primeva lhes lembrou de agarrar nas cinzas? Estes Ads Reinhardts primitivos, estes Wassilys Kandiskys das grutas, munidos com mais nada a não ser carbono e imaginação, deram-nos pistas pretas para pintar o porvir – para envolver os nossos próprios assuntos na abissal gramática do cosmos. Estrelas de rocha orbitam estas galáxias subterrâneas (tão pungentes quanto apaixonantes) de figuras toscas que ilustram os tectos eritematosos das cavernas: um Zodíaco de animais e homens extintos, signos sagrados que atenderam ao nascimento da fantasia.
O preto é, de maneira geral, a cor do pessimismo, da tristeza e da angústia. Costuma estar associado, na psique popular, à bruxaria e aos malefícios, mas o preto também é a cor do mistério e dos desígnios sobrenaturais. Judas é representado na iconografia cristã como tendo uma aura preta e Cristo traja paramentos pretos nas passagens em que é tentado pelo Diabo, personagem que é conhecida por Príncipe das Trevas. Em certas regiões rurais europeias ainda é praticado o invulgar jejum da galinha preta, no qual um suspeito de um crime é obrigado a jejuar durante nove dias: se ele não confessar, passado esse período, morre. Compreende-se com facilidade que o propósito da chamada Magia Negra é instrumentalizar o poder sobrenatural, na maioria das vezes sob diligência do Diabo, para desencadear danos. O mesmo Diabo que é representado num mosaico bizantino do século XIII, na catedral italiana de Torcelo, como sendo um velho de pele de antracite que tem o Anticristo ao colo. Do mesmo jaez, os diabretes da famosa Imagem da Escada do Paraíso de São João Clímaco, que puxam as pernas das almas ascendentes, para arrastá-las para o Inferno, são todos pretos. É a indicação de que se tratam de seres unidos ao mundo inferior ctoniano. Quando querem diabolizar personagens de ficção, ou dar a entender que elas são agentes do mal, os criadores têm o hábito de vesti-las de preto, como os vilões dos filmes mudos e os cavaleiros negros das canções de gesta, ou dar-lhes pele preta, como o autor belga de banda desenhada Peyo fez aos estrumpfes negros.
Mais do que qualquer outra cor, o preto emite um desafio que quase invoca as palavras que Cristo ressuscitado dirigiu a Maria Madalena: noli me tangere. O preto é uma cor austera, isenta e elegante. É uma cor inconformista, incomprometida e incompreendida. As variedades mais mansas de espécies consideradas perigosas costumam ser as melasmáticas, como o urso preto, o leopardo preto, o escorpião preto, o touro preto e o rinoceronte preto. Nem sequer o gato preto é tão tempestuoso quanto o siamês.
Serão ecos da melainacholé associada à cor negra?
Será por culpa disso que a cultura gótica tem fama de ser depressiva?
«A poesia é tanto dos túmulos!», disse o poeta Mendes Leal, melancólico autor de Os Dois Renegados, o primeiro “dramalhão” à portuguesa. E lúgubre é o Locus Horrendus luso, permeado por púrpuras pedaços de prosa, como «horror misterioso», «roxo cadáver», «ossos mirrados», «fétidas carnes», «espectros que volteiam», «pávidas sombras» e, uma das minhas preferidas, «lúcidos fantasmas», que, verdade seja dita, é um excelente nome para uma banda. Entre nós, sobretudo na literatura de folhetim da primeira metade do século XIX, encontramos um tema continuado: o do desenterramento do defunto e o resgate da sua caveira como símbolo de uma vida miserável, terminada tragicamente. Literatura de cemitério é certo, como A Caveira de Camilo Castelo Branco, mas, em primeiro lugar, uma literatura de meditação – de realce dos flagícios da alma. Baladas românticas estes contos tristes não são: sem préstimo para entreter, nem indicados para quem tem bom gosto. Contém um coração negro; um invencível pulsar nocturno e melancólico que os consubstancia. Mas melancolia não é horror… Na nossa literatura mais negra encontravam-se contos tristonhos de naufrágios, casos de amor infrutíferos, trovas saudosistas, às vezes um ou outro relato de feitiçaria ou uma partida pregada pelo Diabo, mas nenhum verdadeiro horror.
Porém, o que é a melancolia senão o «carácter da mortalidade», como expressou Burton no seu magnífico tratado? Não é ela o pomo da actuação morbígera da bílis negra em demasia, que é um dos quatro humores e torna os homens cismáticos, irritadiços e inquietos? Muitas criaturas das trevas têm sangue preto. Mesmo assim, há outros melancólicos que, sem serem vilões, vêem um arco-íris e querem pintá-lo de preto, como fizeram os Rolling Stones em 1966. Em referência aos humores negros, não é curioso que, quase trinta anos depois, a banda sueca Deranged, que fez uma cover dessa música, tenha editado outra, no mesmo disco, intitulada Vingança do Sémen Preto? Noutras latitudes, o compositor finlandês Jean Sibelius compôs o opus O Cisne de Tuonela, sobre o cisne negro que Lemminkäinen, o herói do poema épico Kalevala, é incumbido de matar, antes de ser assassinado por uma seta envenenada. Vale a pena especular sobre a coincidência de Sibelius ter sido maçon, e composto música ritualística maçónica, quando a descrição de Lemminkäinen morto pela seta é análoga à exposição do corpo inerte de Hiram Abiff na imagética do terceiro grau simbólico da Franco-Maçonaria, que, anda por cima, tem como paramento um avental preto? Por outro lado, quando penso na cor preta, a música que me lembro com maior urgência é sempre o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven: o Allegro Con Brio e o seu bombástico riff de abertura. Esta cor e a música nunca mais se dissociaram, mas é na arte que ela encontra representações mais sofisticadas.
No quadro Calúnia, de Sandro Botticelli, que representa a queixa do pintor jónico Apeles contra as calúnias inventadas pelo rival Antiphilus, a personificação do Remorso é uma velha vestida de preto, mas quando penso sobre a cor preta na arte aquilo que lembro com mais frequência é o caminhante solitário que está virado de costas para o observador na pintura Caminhante Sobre o Mar de Nevoeiro de Caspar David Friedrich: verdadeiro farol caliginoso que arromba a bruma branca, à laia de esporão de um navio. O tom mais terreal de preto talvez pertença ao quadro Dados: 1º A Queda de Água; 2º O Gás de Iluminação, de Marcel Duchamp: reclinada de pernas abertas sobre a vegetação áspera, a Mãe Universal sugere que está pronta para o coito; o seu rosto está oculto – não é necessário vê-lo, pois ela é toda vulva. Observando-a de dentro de um espaço indeterminado, que tanto pode ser uma caverna como uma velha casa abandonada, o espectador (o iniciado?) vê essa personagem cercada por uma sombria coloração preta que contrasta de modo hostil com o céu azul. Mesmo assim, existem lugares negros muito mais terríveis que a gruta de Duchamp, se bem que mais etéreos: o interior escuro do quarto que é exibido na tela O Pesadelo de Fuseli; os cárceres desconfortáveis que podemos ver nas telas de Francis Bacon; e a câmara fatídica em que o pintor Gabriel von Max colocou o seu Anatomista. Neste quadro, o anatomista titular prepara-se para desvendar o corpo alvo de uma mulher morta: arrancando-lhe com brandura um sudário que mais parece uma placenta, o homem arroga o papel de noivo numa hierogamia entre o preto e o branco: união que gera o cinzento; cor que, no espectro cromático, possui o valor central. Logo, do Homem.
A etimologia é destino: será coincidência que todas as palavras conhecidas para designar a cor negra provenham de sinónimos para o acto de queimar? Caldos calcinantes de ossos e terra em cadinhos alquímicos pré-históricos. O Sol e a sua sombra: enxofre e mercúrio; união enegrecida da matéria e do espírito numa pasta putrefacta preta. Nigredo da existência terrena – melancolia hermética; noites saturninas, fedendo a suor e madeira queimada. «A cor preta é o silêncio do corpo depois da morte », escreveu Kandisky, de maneira melancólica: «A conclusão da vida.» Pois se há algo que a cor preta evoca com mais facilidade é o conceito da morte.
A morte é um tema que nos é difícil de abordar; se não fosse, nunca usaríamos eufemismos como sono ou não diríamos que alguém falecido de fresco encontrou tranquilidade. O que fazemos nestas circunstâncias é antropomorfizar a morte, mas isso é errado: a morte não nos pertence. A morte criada pelo poeta John Milton devorava as vísceras da própria mãe, o que pode ser interpretado como sendo uma alusão grotesca à amamentação — ao elan vitale —, mas a introdução da morte nas nossas vidas é uma experiência devastadora. A definição clínica da morte é de que se trata da cessação permanente das funções vitais, mas como atestar, de modo infalível, o fim de todas as coisas?
A respiração pode manifestar-se em movimentos do diafragma tão suaves que são invisíveis a olho nu. A descida da temperatura corporal também não é um indicador seguro. Os músculos da íris continuam a reagir à luz horas depois da morte e o ritmo cardíaco pode ser influenciado a abrandar até à quase imobilidade. Diagnosticar um óbito não é fácil e o medo de ser enterrado vivo apavorou os nossos antepassados durante séculos. Com efeito, só existe uma maneira segura de confirmar a morte: a presença da putrefacção.
Só esse estádio é apanágio da matéria morta, mas nós não assistimos à decadência dos nossos entes queridos, nem testemunhamos como a sua pele enegrece e os corpos moles incham, libertando líquidos e gases fétidos cuja pressão empurra as vísceras para fora dos orifícios naturais. Nem sequer somos capazes de imaginar o luxo em que consistiu o banquete dos vermes, antes dos coveiros esvaziarem a sepultura e jogarem fora as ossadas. «A putrefacção é a parteira de muitas coisas grandiosas! Faz com que as coisas apodreçam, para que novos frutos nasçam», escreveu Paracelsus, mas outros espíritos inquietos, e mais modernos, também celebraram a beleza da decomposição: «Lembras-te, meu amor, de uma coisa que vimos / Nessa manhã de Verão, suave: / Na curva de um caminho um pútrido cadáver, / Num leito de pedras, sozinho. (…) Na podridão brilhava o Sol com a certeza / De quem parecia cozinhá-lo, / Para devolver com juros à Mãe-Natureza / Tudo o que ela um dia juntara», versejou Baudelaire que, tão famoso ficou por culpa deste poema, lhe chamaram Príncipe das Carcaças. Porém, por mais que se poetize a morte, ela não é mistério nenhum. E também não é nenhum castigo. Nós envelhecemos porque, entre outras coisas, consumimos oxigénio: ao queimá-lo no athanor que é o corpo, libertamos resíduos corrosivos que oxidam as estruturas celulares e impedem a sua duplicação. Em suma: nós morremos porque enferrujamos!... Somos criaturas aeróbias, pluricelulares e sexuadas: tanta diversão junta tinha de ter um preço.
O preto enquanto cor do luto ocidental invoca o nigredo alquímico que amalgama a matéria e o espírito; imagem fortificada pela ideia do velório, esse período em que todos os compostos se encontram em suspenso. «Quero ser como o corvo», bradavam os alquimistas de outrora, «quero ser como o corvo» e, estupefactos, verificamos que somos mesmo todos como ele quando nos reunimos em redor do caixão recheado com o cadáver. Somos verdadeiras luzes vigilantes que deixam que o defunto putrifique, no decorrer da longa noite da alma. Desse ponto de vista, a significação da cor preta como símbolo do solo fértil faz sentido: a terra que conserva as sepulturas, morada dos mortos e novo útero. «Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer dá muito fruto», diz-nos o Evangelho de São João, no capítulo alusivo à última Páscoa: festividade religiosa que agarra o conceito da destruição da matéria, para apresentá-la renascida. Regeneração e promessa – pareceres pugnados pelo décimo terceiro arcano de um baralho de Tarot: a Morte. Iniciática, esta “morte” é, somente, o prelúdio de um nascimento verdadeiro. O ameaçador esqueleto negro que agarra a gadanha introduz o consultado num novo ponto de partida – simbolismo que não deixa de reflectir-se no próprio algarismo 13 que enumera o arcano e que sucede ao 12, número da completude.
sexta-feira, 19 de março de 2010
quinta-feira, 18 de março de 2010
Entrevista #2: no programa Livros Com Rum
Hoje, às 21H00, podem ouvir uma entrevista meticulosa (com cerca de uma hora de duração) sobre O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência) dada ao académico e jornalista António Ferreira para o programa Livros Com Rum, da Rádio Universitária do Minho. O Livros Com Rum é, com efeito, um dos programas de rádio sobre livros que discorre com maior profundidade e inteligência sobre os autores e as suas obras e urge ouvi-lo, semanalmente. No que diz respeito à literatura, e à cultura, de maneira geral, é essencial.
A emissão em directo do Livros Com Rum pode ser acompanhada, a partir das 21H00, nesta ligação.
A minha entrevista repete no próximo domingo às 20H00 e ficará disponível para audição em podcast.
(Foto: António Ferreira e eu durante a entrevista, no estúdio do programa Livros Com Rum.)
A emissão em directo do Livros Com Rum pode ser acompanhada, a partir das 21H00, nesta ligação.
A minha entrevista repete no próximo domingo às 20H00 e ficará disponível para audição em podcast.
(Foto: António Ferreira e eu durante a entrevista, no estúdio do programa Livros Com Rum.)
Opinião de António de Macedo...
...sobre O Evangelho do Enforcado.
O escritor e realizador de cinema António de Macedo já leu o romance. A sua opinião é a seguinte:
«A boa notícia, que pode ser um princípio de ressurreição da grande literatura "especulativa" portuguesa (a única autêntica, porque assenta autenticamente no "imaginário"), é a possibilidade de existir um livro com a mais que extraordinária qualidade de O Evangelho do Enforcado. Lê-se de um fôlego (as inevitáveis paragens ao longo da leitura são sempre acompanhadas da concomitante impaciência para prosseguir). Ainda mais do que nos livros anteriores, que já eram excelentes, neste estamos perante uma "estória" magnificamente artilhada, em que a destrinça entre o "real" e o "fantástico" se torna irrelevante perante a coerência e a beleza cruel da totalidade do objecto, peça única de arte literária da mais fina água. Um belo diamante! Não sei classificar melhor. Qualquer adjectivo ficará sempre a desluzir da verdade da coisa. (Entre parênteses, admirei, verdadeiramente fascinado, a gigantesca quantidade e qualidade de informação reunida para oferecer ao leitor um quadro super-vivo, cheio de riquíssimos pormenores, do mundo português de entre 1395 e 1450. Extraordinário!)
Aqui ficam os meus sinceros parabéns, fazendo votos para que continue a proporcionar-nos momentos de puro êxtase como este, que vem coroar de forma magistral a obra anterior.»
António de Macedo.
Março, 2010.
O escritor e realizador de cinema António de Macedo já leu o romance. A sua opinião é a seguinte:
«A boa notícia, que pode ser um princípio de ressurreição da grande literatura "especulativa" portuguesa (a única autêntica, porque assenta autenticamente no "imaginário"), é a possibilidade de existir um livro com a mais que extraordinária qualidade de O Evangelho do Enforcado. Lê-se de um fôlego (as inevitáveis paragens ao longo da leitura são sempre acompanhadas da concomitante impaciência para prosseguir). Ainda mais do que nos livros anteriores, que já eram excelentes, neste estamos perante uma "estória" magnificamente artilhada, em que a destrinça entre o "real" e o "fantástico" se torna irrelevante perante a coerência e a beleza cruel da totalidade do objecto, peça única de arte literária da mais fina água. Um belo diamante! Não sei classificar melhor. Qualquer adjectivo ficará sempre a desluzir da verdade da coisa. (Entre parênteses, admirei, verdadeiramente fascinado, a gigantesca quantidade e qualidade de informação reunida para oferecer ao leitor um quadro super-vivo, cheio de riquíssimos pormenores, do mundo português de entre 1395 e 1450. Extraordinário!)
Aqui ficam os meus sinceros parabéns, fazendo votos para que continue a proporcionar-nos momentos de puro êxtase como este, que vem coroar de forma magistral a obra anterior.»
António de Macedo.
Março, 2010.
quarta-feira, 17 de março de 2010
Ensaio na Revista BANG!
No número sete da revista BANG! podem ler, entre outros artigos muito bem escritos (Livros Míticos ou a Biblioteca (Quase) Invisível de António de Macedo e H. P. Lovecraft - Um Ícone da Cultura Ocidental Contemporânea de José Carlos Gil, por exemplo), um ensaio de minha autoria, intitulado A Companhia dos Cegos.
Consiste numa leitura paralela de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago (1995) e O Dia das Trífides de John Wyndham (1951): um texto que interroga o modo como o tema da cegueira é tratado de modo diferente em ambos os títulos - um de literatura considerada erudita e outro pertencente aos géneros do horror e da ficção científica. Deixo-vos um excerto, em jeito de primeira dose gratuita:
Consiste numa leitura paralela de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago (1995) e O Dia das Trífides de John Wyndham (1951): um texto que interroga o modo como o tema da cegueira é tratado de modo diferente em ambos os títulos - um de literatura considerada erudita e outro pertencente aos géneros do horror e da ficção científica. Deixo-vos um excerto, em jeito de primeira dose gratuita:
«A monstruosidade em Ensaio Sobre a Cegueira e O Dia das Trífides não é, com efeito, uma consequência da cegueira. Nasce, com maior autoridade, das nossas próprias noções sobre o que é normal e higiénico; da ideia que, na cultura ocidental, qualquer coisa que se distancie, pela singularidade, dos modelos afeiçoados aos cânones, se transforma numa contagiosa fonte de horrores. Quando lemos sobre um cego a apalpar as fezes dos companheiros de reclusão enquanto procura o buraco da latrina para se aliviar, não podemos fazer nada a respeito disso. E quando lemos sobre trífides a alimentarem-se de corpos em decomposição, também não. Ambas as situações são obscenas fugas à norma – acidentes de percurso: testemunhá-las deixa-nos muitíssimo vulneráveis. Uma vulnerabilidade que se mistura com o nojo, mas esse sentimento é, em última análise, de pechisbeque diante da biologia. Convido-vos a uma pequena experiência: façam uma bola de saliva dentro da boca e engulam-na; em seguida, façam outra bola de saliva, cuspam-na para dentro de um copo e engulam-na. Se não tiveram problemas em realizar a primeira operação, certamente irão recusar-se a fazer a segunda. Mas porquê? A saliva é a mesma; não adquiriu, magicamente, propriedades tóxicas ao ser vertida para o copo. A experiência mostra que o conceito que classifica o que é asqueroso nada tem a ver com a biologia, mas tem tudo a ver com a cultura. «Pode ser que o nojo tenha uma estrutura que se impõe nas nossas noções culturais?», pergunta William Ian Miller no livro The Anatomy of Disgust (Harvard University Press, 1997. Pág. 62). O livro de Miller é o melhor ensaio que conheço sobre a temática do nojo, enquanto agente formador do humano; uma das ideias que o autor avança, para interrogar como é que ele se manifesta, relaciona-se com o tema da Inconformidade: «(…) coisas que metem nojo porque falham em se encaixar nas nossas expectativas. Explica-se, desse modo, o nojo que pode provocar a pele de um homem que possua o toque das escamas de um réptil e o nojo que pode provocar as escamas de um réptil que possuam o toque da pele humana.» Nessa perspectiva, os militares e os cegos “malvados” [sic] de Saramago, mais os hooligans de Wyndham possuem uma falsa humanidade: são humanos só porque não são, morfologicamente, monstros!... Esse papel está, em exclusivo, reservado às trífides.
Em suma: nós, leitores desprevenidos, podemos sentir nojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca da cloaca, mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, que contacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez piedade. Ou ennui…»
A revista BANG! está disponível aqui.
Em suma: nós, leitores desprevenidos, podemos sentir nojo pelo médico cego que tacteia na trampa em busca da cloaca, mas imagino que uma enfermeira, por exemplo, que contacta com fezes, escarros e sangue o dia inteiro, tenha uma reacção diferente ao ler o mesmo texto. Talvez piedade. Ou ennui…»
A revista BANG! está disponível aqui.
quinta-feira, 11 de março de 2010
terça-feira, 9 de março de 2010
Pintar o sete...
...e à pistola!...
Acaba de sair o número sete da Revista BANG!, periódico publicado pelas edições Saída de Emergência, dedicado ao Fantástico na literatura. Este número sete apresenta contos, ensaios e artigos diversos sobre os mais variados temas, como é habitual, mas, por outro lado, também marca um novo período de vida da revista, com novo design e orientação co-editorial.
Outra novidade é o regresso à edição impressa. Com setenta e duas páginas, este número da Revista BANG! está disponível para compra, em exclusivo, no site das edições Saída de Emergência.
Acaba de sair o número sete da Revista BANG!, periódico publicado pelas edições Saída de Emergência, dedicado ao Fantástico na literatura. Este número sete apresenta contos, ensaios e artigos diversos sobre os mais variados temas, como é habitual, mas, por outro lado, também marca um novo período de vida da revista, com novo design e orientação co-editorial.
Outra novidade é o regresso à edição impressa. Com setenta e duas páginas, este número da Revista BANG! está disponível para compra, em exclusivo, no site das edições Saída de Emergência.
quinta-feira, 4 de março de 2010
quarta-feira, 3 de março de 2010
Crítica integral na revista "Os Meus Livros" de Março
Livro do Mês
Classificação: * * * * *
Prós: Interessante e envolvente da 1ª à última página.
Contras: Nenhuns.
Fruto de uma imaginação prodigiosa e de uma rigorosa investigação histórica, este romance centra-se nos Painéis de São Vicente e na vida do pintor Nuno Gonçalves. Passa-se na época medieval, entre 1395 e 1450, período histórico que abrange o fim do reinado de D. João, o reinado de D. Duarte e a regência de D. Pedro, e factos históricos como a conquista de Ceuta e o desaparecimento de D. Fernando em Tânger.
Nuno Gonçalves é retratado como uma personagem de personalidade disturbada por um lado negro, espinhoso e dual, que o impele para a necrofilia e o assassínio. Um psicopata que, à luz, trilha um caminho que o leva de aprendiz de pintura em Lisboa, ao estágio com o mestre flamengo Jan Van Eyck, posteriormente ascendendo ao título de Pintor da Cidade e, depois, Pintor Régio.
O autor retrata-nos uma Ínclita Geração onde destaca as figuras dos infantes Eduarte, Fernando, Pedro e Henrique de uma forma surpreendente e altamente vívida. D. Henrique surge como o mais negro dos irmãos - um homossexual conspirador com a ambição de criar um exército de homens apaixonados. D. Fernando é uma peça-sombra fundamental: o infante santo martirizado, que Soares revela como figura central e misteriosa.
Um excelente romance que urde estas e outras ideias num exercício imaginativo altamente bem conseguido. A escrita eloquente, elegante e cativante apoiada numa sólida estrutura narrativa tornam a qualidade desta peça inegável. O interesse das temáticas e a imaginação com que são abordadas tornam-na indispensável.
(Em Os Meus Livros, Março de 2010. Crítica de Mónica Maia.)
Classificação: * * * * *
Prós: Interessante e envolvente da 1ª à última página.
Contras: Nenhuns.
Fruto de uma imaginação prodigiosa e de uma rigorosa investigação histórica, este romance centra-se nos Painéis de São Vicente e na vida do pintor Nuno Gonçalves. Passa-se na época medieval, entre 1395 e 1450, período histórico que abrange o fim do reinado de D. João, o reinado de D. Duarte e a regência de D. Pedro, e factos históricos como a conquista de Ceuta e o desaparecimento de D. Fernando em Tânger.
Nuno Gonçalves é retratado como uma personagem de personalidade disturbada por um lado negro, espinhoso e dual, que o impele para a necrofilia e o assassínio. Um psicopata que, à luz, trilha um caminho que o leva de aprendiz de pintura em Lisboa, ao estágio com o mestre flamengo Jan Van Eyck, posteriormente ascendendo ao título de Pintor da Cidade e, depois, Pintor Régio.
O autor retrata-nos uma Ínclita Geração onde destaca as figuras dos infantes Eduarte, Fernando, Pedro e Henrique de uma forma surpreendente e altamente vívida. D. Henrique surge como o mais negro dos irmãos - um homossexual conspirador com a ambição de criar um exército de homens apaixonados. D. Fernando é uma peça-sombra fundamental: o infante santo martirizado, que Soares revela como figura central e misteriosa.
Um excelente romance que urde estas e outras ideias num exercício imaginativo altamente bem conseguido. A escrita eloquente, elegante e cativante apoiada numa sólida estrutura narrativa tornam a qualidade desta peça inegável. O interesse das temáticas e a imaginação com que são abordadas tornam-na indispensável.
(Em Os Meus Livros, Março de 2010. Crítica de Mónica Maia.)
terça-feira, 2 de março de 2010
Entrevista e crítica na "Os Meus Livros"
A revista Os Meus Livros deste mês traz uma entrevista comigo sobre a minha obra literária ou, de acordo com a própria revista «um balanço do mais importante escritor de Fantástico português da actualidade».
Na secção de crítica literária, o meu novo romance, O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência), tem a distinção de ser o "Livro do Mês", com uma classificação de cinco estrelas (de 0 a 5).
«Livro do Mês
Classificação: *****
Prós - Interessante e envolvente da 1ª à última página.
Contras - Nenhuns.
Fruto de uma imaginação prodigiosa e de uma rigorosa investigação histórica (...) escrita eloquente, elegante e cativante apoiada numa sólida estrutura narrativa tornam a qualidade desta peça inegável. O interesse das temáticas e a imaginação com que são abordadas tornam-na indispensável.»
(Excerto da crítica literária, escrita por Mónica Maia.)
Na secção de crítica literária, o meu novo romance, O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência), tem a distinção de ser o "Livro do Mês", com uma classificação de cinco estrelas (de 0 a 5).
«Livro do Mês
Classificação: *****
Prós - Interessante e envolvente da 1ª à última página.
Contras - Nenhuns.
Fruto de uma imaginação prodigiosa e de uma rigorosa investigação histórica (...) escrita eloquente, elegante e cativante apoiada numa sólida estrutura narrativa tornam a qualidade desta peça inegável. O interesse das temáticas e a imaginação com que são abordadas tornam-na indispensável.»
(Excerto da crítica literária, escrita por Mónica Maia.)
segunda-feira, 1 de março de 2010
O Mito Maçónico
No próximo dia 5 (sexta-feira), as edições Saída de Emergência vão publicar o livro O Mito Maçónico de Jay Kinney (um maçon norte-americano). É um livro bem escrito, sobre a Franco-Maçonaria, que evita o discurso de estirpe sensacionalista para investir num registo esclarecedor e documentado. A tradução é minha.