Para se deleitarem em perfeição com as palavras colectivas da Tertúlia dos Assassinos nada como encomendarem o seu disco/livro de estreia, intitulado
tombo primeiro (produzido e musicado por Charles Sangnoir), à editora
Necrosymphonic Entertainment: um delicioso objecto de afecto, para coleccionadores, que está mesmo a prometer esgotar - por isso, não hesitem e peçam já o vosso exemplar antes que seja tarde:
http://necrosymphonic.bandcamp.com/album/tombo-primeiro
Entretanto, no espectáculo cujo vídeo acima desvenda algumas passagens, eu interpretei uma peça intitulada
O Plutão da Pena: uma necropsia sobre Lisboa e sobre o que temos de mais precioso. Deixo-vos com esse texto (fiquem atentos, pois em breve irei desvendar uma novidade muitíssimo empolgante relacionada com ele).
O Plutão da Pena
A plúmbea antemanhã
assemelha-se ao fundo encardido de um crisol abandonado por um alquimista
inepto; a chuvarada dos seus nimbos enodoa que nem anitmonium os telhados e abstrai-se pelas áleas azafamadas como uma
lavagem que separa as partes heterogéneas da matéria-prima que é a própria
cidade.
Enquanto o aguaceiro matinal
metamorfoseia em lama o solo do terrádego do Rossio e alguns galegos cobrem com
tábuas essa papa terrenta para que as damas não sujem as solas quando forem
buscar bric-à-brac às barracas dos
negociantes, tremem os topetes dos cavalos ao som de aguçados trinados, vindos
da boca de uma criança. Depois de uma noitada de pândega, e gingando as ancas como
uma vespilheira, o garotelho atravessa a praça em direcção a casa, soltando assobios
gasólitos que embatem nas vidraças como em címbalos. É um miúdo desassossegado,
de gestos quasi-garrettianos, porém uma observação atenta desvenda que ele não
é miúdo nenhum, mas uma criatura saída do solo ensopado: um diabrete olhando de
esguelha para as gotas de chuva que lhe alfinetam o maxilar prognático.
Cambaleando entre o labirinto
formado pela multidão que, àquela hora, já compressa a cota mais abatida de
Lisboa, esta entidade diminuta, enfarpelada com uma sobrecasaca de saragoça e
um chapéu comprido de feltro, mais parece um hectograma impresso pela
precipitação na mole superfície da terra. Alguns moradores da freguesia da Pena
riem alto ao vê-lo regressar e fingem querer deitar-lhe o chapeirão ao chão:
sem perder a compostura, o leviano liliputiano devolve-lhes o troco das
truculências na forma de assobios estridentes que dá com dois dedos metidos na
boca. Assobios fortes o suficiente para deitar casas abaixo.
Que idioma sibilino é este,
que evoca El Sibo, dialecto de silvos
inventado pelos indígenas Guanches de La Gomera no arquipélago canarino? Este
linguajar é a gramática de Guayota, senhor infernal do vulcão Echeyde, o intróito
sulfúrico de um mundo inferior feito de tórridas torrentes de lava onde habitam
os Tibicenas: diabólicos anões cinocéfalos com corpos cobertos de lanugem negra.
A linguagem trinada é hipocáustica – lausperénica: autêntico pleroma do qual
emanam os entes elementares deste plutónico meristema. Enroupado de lã preta, o
Anão dos Assobios da paróquia da Pena é um hodierno e cinocefálico Tibicena que
sopra arcanos por Lisboa naquilo a que os comerciantes ingleses chamam de
“assobios-de-lobo”: estrídulas gaitadas produzidas com os dedos enfiados na
boca.
Quem são estes anões cuspidos
pelo ventre da terra?
Para que participações
plexiformes foram projectados?
Amoldados na forja de Hefesto,
vejam-nos emergir desse estrato plutoniano em períodos de pestilência e guerra.
Os assobios deles mimam os esguichos gasosos solfejados por extrusivas
salpinges vulcânicas: a língua de animais com ferro na alma, pois estas
criaturas fenocristalóides assenhoreiam a arte de extrair metais dos minérios –
o magistério metalogénico.
Na mitologia, os anões, seres
sapudos que povoam as partes privadas das serranias, apresentam-se como mestres
metalúrgicos; tropo transmitido até aos nossos dias pelo mago suíço Paracelsus que,
no século XVI, criou a – até aí inédita – figura do gnomo: elemental imaginário
que reside nas cavidades intestinas e é capaz de passar por paredes de pedra.
Segundo Paracelsus, os gnomos, cuja etimologia por ele inventada significa habitantes da terra, evitavam a
companhia dos homens, mas nas Eddas, escritas
pelo historiador islandês Snorri Sturlson, os homens são criados, justamente,
pelos anões: o homem e a mulher originais – Ask e Embla –, feitos de terra e casca
de árvore. Os gnomos paracelsianos são os ínfimos humanóides que, nas histórias
infantis, se encovam no mundo quotidiano. Há magia velha por trás dos rodapés,
por baixo dos tapetes e entre as ervas mais altas dos jardins – existem
espíritos milenares entre as nossas almas bebés: e quando finalmente perecem,
cansados de carregarem tanta sabedoria, convertem-se em árvores.
De acordo com a dendrolatria
pré-diluviana, já tivemos corpos vegetais: existem ecos da jornada de preguiçosa
vida vegetal para impetuosa vida animal no espantoso livro Hypnerotomachia Poliphili do dominicano italiano Francesco Collona;
existem ecos desta ligação dendrológica nas mitocôndrias que residem nas nossas
células e na hemoglobina que, pasme-se!, pode encontrar-se nos caules mais
carnudos das plantas. Existe ferro nos veios das montanhas e nas nossas veias…
Não é a toa que, nas lendas de outrora, os anões fruam já formados das fragas:
eles e nós somos descendentes da prole goblinesca dos Telamones: titãs
condenados a serem cariátides das estruturas mais densas do planeta e que, com
o inexorável avançar do tempo, se integraram em definitivo na própria rocha. De
pedra a planta e de planta a bicho. De Pedra Bruta a Pedra Cúbica. Os ritmos da
selecção natural e os da matéria amalgamada no fundo do crisol são
sempre os mesmos: inícios morosos que dão lugar a cadências cada vez mais
aceleradas. Caminhando pelas bulhentas ruas da freguesia da Pena com a ajuda de
uma bengala – tirso recheado de fogo prometeico –, o desfigurado e fedentino
Anão dos Assobios é um mercurial mensageiro metassomático: é um anão que nos
lembra uma idade em que andavam gigantes sobre a terra – uma alegoria viva do princípio
ctónico que é transformado pelo elemento fogo em substância humana.
Esta é que é a verdadeira
riqueza guardada pelos míticos anões mineralomórficos nas furnas mais fundas da
terra: o talento de transmutar a pedra em carne e a carne em imaginação.
Quantos tolos perderam a razão
e a vida em vã obsessão pelo ouro, em traiçoeiros enleios de territórios
subterrâneos, sem encontrarem uma única pepita? Porém, o raro e valiosíssimo
ouro, metal tão notável que só pode ser dissolvido pela nobre água-régia, é,
afinal de contas, alienígena: não é proveniente deste planeta e só foi aqui
derramado há cerca de 4 mil milhões de anos por desapiedadas tempestades de
meteoritos. Nessa altura, o caroço de ferro e fogo já cá estava: o ouro extraterreno
é apenas a auréola dourada que a circula.
Mas existe ouro dentro de nós.
Existe ouro nas estátuas que
esculpimos, nos quadros que pintamos e nos livros que escrevemos – e a arte,
como o ouro, é impossível de falsificar. Aquilo que produzimos de mais precioso
é, como o ouro, raríssimo. Sim, há minério dentro de nós: fundações de ferro e
pedra, vigas de faia e pinheiro, mas sem o nimbo refulgente que nos coroa nada disso
faria sentido, por mais bem arquitectado que fosse, por mais belíssimo que se
apresentasse ou por mais perdurável que provasse ser. Existe ouro dentro de nós:
não somos derrelictos. Não fomos lançados no mundo sem outra perspectiva além
da morte, porque através da arte – do ouro – podemos transcendê-la. Todos
somos, bem vistas as coisas, Anões dos Assobios: mestres metalurgistas daquele
que é o metal mais magnífico que temos, o metal mais brilhante de todos.
Quasi-ressumbrante, como se
fosse feito de gelo, o esqueleto do Anão dos Assobios foi apresentado no acabado
Museu de Anatomia do Hospital de São José, onde faleceu em meados do século XIX,
condizentemente ao período em que a Companhia Lisbonense de Iluminação a Gás
instalou os primeiros vinte e oito candeeiros públicos em Lisboa – luzes que a
gente intimidada logo intitulou de “luciferinas”, sem compreender o quanto essa
alcunha era adequada do ponto de vista etimológico. Diminuto, o esqueleto do
Anão dos Assobios foi o Plutão desse acervo de anormais ossaturas humanas.
Plutão é a caliginosa
divindade da profundez que benzeu com o seu nome aquele que já foi o mais
pequeno planeta do sistema solar, entretanto destituído dessa categoria por
culpa da falta de volume: somente seis pontos decimais do da Terra – ainda mais
pequeno que a Lua. Que maravilhoso magnetismo afluíu na Cintura de Kuiper, a
mais de oito mil milhões de quilómetros de distância do Sol, para desovar tão
grandiosa miudeza? Que sigilos guarda a crosta gelada de Plutão, a não ser
gaitadas feitas de metano, nitrogénio e monóxido de carbono – atmosfera tão
hadesiana quanto a do mitológico podredouro vigiado por Cérbero?
Existe ferro, aqui, no negro
calcinatório do cosmos; e existe ouro, também, mais perto de nós, para lá de
Mercúrio – e entre estes dois ventos, entre o fervescente Siroco solar e a
glacial Nortada plutónica, estamos nós, milagrosa matéria viva: o único
verdadeiro grande milagre do universo, pois que outro nome se poderá dar ao acidente
em que proteínas anarquizadas deram origem a genes civilizados? Ou será que
foram os genes a dar origem às proteínas? A verdade é que uns não podem existir
sem os outros, por isso… Quem nasceu
primeiro? O caos ou a ordem? O ovo ou a galinha? Esta cósmica diprosopia é
que é o verdadeiro Inferno: aquele em que o poeta florentino Dante pôs Plutão a
roer as unhas. Paráfises da História; tão filamentosas e indiferentes quanto
caudas de cometas.
Na paróquia da Pena
perderam-se os restos mortais de Camões, a uma pedrada de distância do local
onde se perderam os do Anão dos Assobios. Este sorvedouro de mártires da pátria
é a Cintura de Kuiper de Lisboa. Aqui, a gravidade é tão rarefacta que nada
persiste, nada tem hipótese de perdurar. Nem sequer o matadouro que aí fizeram
no século XVI, nem sequer o manicómio oitocentista de Rilhafoles, mais tarde Hospital
Miguel Bombarda, com o seu panóptico também em forma de sorvedouro. Aqui, nesta
terra negra onde apenas corpúsculos são capazes de desforrar-se, de medrar, todas
as hipóteses são fúteis fosforescências.
Faíscam em lentíssimas órbitas
plutónicas, como serenas moedas no fundo de um poço. Tremeluzem tibiamente,
como resíduos no fundo encardido de um crisol abandonado por um alquimista
inepto.
Como chuva escorrendo pelos
telhados numa manhã sem luz.
Ruínas tornadas invisíveis pela corrosão da fantasia.