segunda-feira, 29 de abril de 2013

Novo conto de horror na revista LOUD! de Maio


Neste Maio, a revista LOUD! traz Iron Maiden como banda de capa; grupo que serviu de ponto de partida para um desafio literário que me foi proposto: escrever um conto baseado nas temáticas do disco Seventh Son of a Seventh Son (1988). Podem lê-lo neste número: intitula-se Os Filhos Que a Lua Dá; ou, Problemas de Um Projeccionista de Pornografia e é um conto de horror em que os vários temas que fazem parte do supramencionado disco marcam presença; como as influências misteriosas do número 7 e, sobretudo, o mito irresistível do Filho da Lua. Agradeço à LOUD! este convite e espero que se sintam intrigados por Os Filhos Que a Lua Dá; ou, Problemas de Um Projeccionista de Pornografia. Deixo-vos um excerto:
«Concentrando-se no projector para não ver nem o filme, nem os espectadores, Albuquerque interrogou-se sobre qual seria a razão pela qual o onanismo não era um dos Sete Pecados Mortais, posto que Deus até assassinara um homem por culpa disso. Seria o Oitavo Pecado: uma nova venialidade, incrustada entre a luxúria, a ganância e a gula. ‘Oito pecados mortais’, pensou Albuquerque. ‘Oito caminhos para o Inferno.’ Qual seria o castigo infernal para os fricativos? Na costumeira coerência contrapassiana com que eram elaborados esses suplícios, teriam de se polir com fogo até a vergonha incendiada tornar-se tão catóptrica quanto metal lustroso. Humiliate pene vestra. O ritual masturbatório era feiticista, de facto – e, assim sendo, feiticeiresco. Que sortilégios pretenderiam os velhos operar com as efusivas esfregações? Que autoridade encoberta se revelava nas suas varinhas viris? Seria o sexo uma arte mágica, como as banais benzeduras e as venerações dos videntes? De cabeça baixa, Albuquerque apercebia-se das moções projectadas no lençol como se fossem sombras dançarinas nas paredes do seu crânio: afinal, que culto venéreo se prestava naquela praça, sob a égide do faliforme tóteme tartéssico? Seria clarividente o suficiente para descortinar se era um sonho ou o “agora”? No lençol, a mulher curvou-se para desencobrir a virilha do homem, a imagem ampliou-se e os velhos viram-se estupefactos diante de um grande olho. O espanto da assistência despertou Albuquerque das suas contemplações: achou que aquilo era estranho, mas não deu importância.»

quinta-feira, 25 de abril de 2013

O símbolo


«O símbolo é o nada que é tudo.»
Fernando Pessoa

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Alquimia + Conversa com Deus (sem AO90)

Em seguida, transcrevo um trecho do meu romance Batalha (Saída de Emergência, 2011), um livro de forte tónica iniciática e hermética, que, entre outras inquietações, interroga o fenómeno religioso do ponto de vista dos animais. Trago-o à colação para demonstrar que o AO90 é, de facto, incompatível com a liberdade dos escritores; neste caso, inconciliável com a minha voz autoral, animada por um léxico muitíssimo específico, tão arcano quanto neológico. Neste livro, cuja personagem principal é uma ratazana, como é que um "lince" iria, então, limpar as palavras que lhe parecessem inconformes com o AO90?
Não têm os autores a liberdade legítima de decidirem, eles próprios e pelas suas exclusivas razões, como devem ou não escrever? A tirania de um (des)acordo ortográfico nunca deverá servir de obstáculo ou politriz à literatura. Convido-vos, pois, à especulação de imaginarem como ficaria o texto que se segue vertido em "acordês". 

«Reunindo todas as forças, Batalha escavou o túnel mais fundo que os músculos e a dureza da terra lhe permitiram e, como quem esvurma uma ferida infectada, espremeu do crânio os vestígios da passagem pela comuna de ratos domésticos. A humidade do terriço seria o vulnerário com o qual cicatrizaria as feridas do corpo e da mente: como um danado, rolou a cabeça na terra e os torrões que se lhe grudaram no pêlo emprestaram-lhe um semblante pagão – de plutónico deus viticomado: uma potência podalírica. Esgotada a energia, estirou-se.
Sentindo o cansaço apoderar-se de si, vagueou pelo labirinto nemático feito por pensamentos prestes a tornarem-se memórias – malsorteados, eles podem revelar-se inaliáveis, inatingíveis até, mas se puderem ser ligados a lembranças seguras, em selvática sínfise semântica, passam do estado líquido para o cristalino, tornando-se sinónimos de uma vida. Sem a valiosíssima memória, o que seria dos murídeos miseráveis que, derrotados pelo desespero e pelo peso imenso da terra já percorrida, procuram a lassidão subterfluente? Perder-se-iam para sempre, essas pequenas vidas – amebas no coalho de todas as vidas e, no entanto, tão essenciais que o mundo não pôde girar sem elas. E que não pode continuar a existir sem elas.
Manipulada pelo instinto, Caldaça queria Batalha dentro dela. Queria imaginar-se no mesmo sonho seminíparo que todas as vidas, grandes e pequenas, precisam de sonhar para sobreviver, mas, embora não o conseguisse, no instante em que tentou, um sem-número de ratos e homens proctocriavam, de facto, de corpos e carácteres despidos.
Tal como a rancidez se regozija com o ar desprotegido, também a nudez vulnerável é o estado espontâneo da cópula. Nus, todos os bichos são lesáveis e a vulva é uma mitene que só cobre o pénis, deixando o resto do corpo ao capricho do contágio – neurotomias naturais que a todos deixam indefesos. A reprodução é regular, sem sobressaltos, como uma colónia de fungos rompendo a casca grossa dos carvalhos; e, em jeito de alcalóide amanitário, o amor escorre pelos troncos cerebrais abaixo, como vinho entornado: o símbolo universal da alegria, da sorte. O sal desperdiçado, símbolo universal da tristeza, do azar, somos nós todos, nos começos das nossas vidas: brutos, informes, impuros, sem o conhecimento das relações sensuais e da morte. Precisamos, por isso, de ser ungidos, purificados e diluídos com vinho – com sexo e deterioração – de modo a crescer, a amadurecer, a salinar. Só então podemos ambicionar a ser completos, adultos, mas Batalha, repudiando a oferta de Caldaça, estaria sempre perdido, como um infante anquilosado ao crisol, ao colo do útero. Conjuctio do macho e da fêmea – estado principal da Grande Obra, na qual toda a gente participa ou assiste – que gera a Luz: fetos incandescentes, sangrantes e vermelhos como o Sol, que choram e, com esse plangente anúncio, dão início à contagem do tempo – dos seus tempos, porque não existem outros.
O tempo é apanágio da matéria viva – os mortos não precisam dele.
Os mortos não precisam de nada.
E, por mais que fingisse estar morto, no interior do profundo buraco acabado de escavar, com a intenção de ser a sua sepultura, Batalha podia sentir a vida que ainda lhe pulsava no pénis turgescente, nas veias urziformes e na língua ressequida.
Do que é que precisava?
O que é que lhe fazia falta? Pensa, Batalha, pensa…

Quem falou?
Ninguém.
Tu és a minha melhor criação.
O mais esplendoroso filho.
Alguém.
Alguém falava.
Sou Deus.
Deus?
O Deus do padre. Lembras-te de mim? Castiguei os filisteus com ratos e hemorróidas. Sou o Deus dos ratos e dos homens, sou um vórtice para o qual todas as vidas vertem e, vomitivo, devolvo-as à terra, numa girândola que não tem fim nem princípio. Estas volteaduras são a vontade do mundo.
Estava desfeito o mistério das misérias da vida.
Deus caíra na rotina.
Fiz-te à minha imagem, meu Batalha. Hás de morrer e ressuscitar, numa das minhas vomições. Mas tens de acreditar em mim.
Acreditar? E se não acreditar?
Os ratos e os homens são feitos da mesma carne e dos mesmos ossos. Têm o mesmo sangue. Foi a preguiça: ad hoc fiz tudo da mesma massa.
Mas eu não pedi para ser feito, ò Deus.
Não te pedi patrocinato.
Todos os bichos são meus proletários, porque só estão na terra para procriarem e povoá-la. Valem quantos filhotes têm. Já cumpriste o teu papel? Já procriaste? Já provaste o teu valor?
Eu? Eu não valho nada.
Não tenho prole, nem proveito.
Mas tens falta de qualquer coisa.
Se calhar, tenho.
Se calhar, podes tê-la. Através de mim. Não queres a salvação?
Não sei.
É fácil de saber. Não só sou o Deus de todos os homens e de todos os ratos, como o de todos os bichos. E de todas as árvores. Todas as pedras. Até sou o Deus de mim mesmo. Na verdade, tu nem sequer existes: estou a sonhar-te. Quando acordar, deixas de existir.
Quando acordar, deixas de existir.
Quando acordar, deixas de
Quando acordar
Quand

Batalha acordou, sozinho, dentro do buraco que escavara.
Não sabia quanto tempo passara, desde que adormecera, mas percebeu de imediato que o Deus com quem falara tinha sido ele próprio.
Não existem deuses nenhuns, pensou Batalha, sacudindo os grãos de terra que lhe polvilhavam o pêlo. Não existem nenhuns pais do mundo. A não ser nas nossas cabeças. São apenas invenções de homens velhos e de ratos velhos. Só existe a carne. A carne que se gera a si mesma, repetidamente.
Só existimos nós.
Só nós.»

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Filmes de papel

Escrever é uma arte feita de liberdade absoluta, na qual, de facto, a imaginação é o limite; mesmo assim, não falta quem se sinta confortável em adstringir-se com os rudes espartilhos veiculados nos conselhos dos cesaropapistas da "escrita criativa" (haverá outra?). Um desses ensinamentos mais tóxicos - sobretudo para principiantes - é o de que se deve "mostrar em vez de contar". Ora, "mostrar em vez de contar" é um critério pescado à escrita de ficção para cinema e televisão e não deveria ser aplicado em literatura, porque escrever um texto literário é muito diferente de escrever um argumento cinematográfico ou televisivo. E, assim, por culpa deste desastrado ensinamento, as livrarias enchem-se de falsos livros, cuja única desculpa para existirem parece ser a de que consistem em meros esboços das futuras adaptações cinematográficas e televisivas que farão deles.

O espírito neo-romano que embebe a actualidade, sobrevalorizante do mais elementar carácter utilitarista das pessoas e das artes, influencia a criação de obras literárias cada vez mais homeopáticas; ou seja, obras em que o princípio activo literário está muitíssimo diluído em água - tanto que, na maioria das vezes, é inexistente. Desapareceu, pois, o discurso indirecto; desapareceu, também, a adjectivação - desapareceu, enfim, tudo aquilo que impede a personagem X de ir ter com a personagem Y no menor número possível de páginas. Os poucos romances que ainda se apresentam como herdeiros de uma tradição verdadeiramente literária, em todas as acepções dessa designação, são desconsiderados pela crítica como sendo bizantinos, no sentido pejorativo. Mas quem sabe a sério de história não esquece que foi em Bizâncio que, a partir de finais do século III, se conservaram os modos e a cultura clássicos, em oposição ao barbarismo que medrou na metade ocidental do império romano. É uma alegoria simples de entender, até por quem não sabe ler.

E, na verdade, há muitos leitores que não sabem ler: sabem ver filmes de papel. Se lhes dessem um livro autêntico para as mãos não saberiam o que fazer com ele.

domingo, 21 de abril de 2013

Contra o Novo Acordo Ortográfico: subscrição da Iniciativa Legislativa de Cidadãos


Anuncio publicamente que subscrevi a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico de 1990: fi-lo, porque não quero que o AO90, que considero absurdo, desequilibrado e, até, demencial, seja, no todo ou em partes, instituído de modo definitivo. O tempo urge (mesmo), por isso apelo a todos aqueles que estejam em desacordo com o Novo Acordo que subscrevam a Iniciativa Legislativa de Cidadãos - aquela que é a mais eficaz ferramenta de pressão para que todos possamos travar os interesses de alguns


E divulguem a ILC pelos vossos contactos: obrigado.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Novo livro no prelo: «Sepulturas dos Pais»


Além de Palmas Para o Esquilo, desenhado por Pedro Serpa, está em preparação outro livro de banda desenhada escrito por mim: intitula-se Sepulturas dos Pais e o desenhador é André Coelho, que já colaborou comigo em É de Noite Que Faço as Perguntas (Saída de Emergência, 2011). Sepulturas dos Pais, que será editado pela Kingpin Books, é uma história simultaneamente trágica e poética, passada no ambiente desolado de uma isolada vila piscatória. Como podem ver pela imagem em anexo, a arte de André Coelho evoca intensamente todo o dramatismo e maravilhamento que esta história irá transmitir.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

«A Melhor Oferta»


Estreou ontem A Melhor Oferta, de Giuseppe Tornatore, realizador de, entre outros filmes, Cinema Paraíso. Com Geoffrey Rush e Donald Sutherland, dois dos meus actores preferidos, que aqui, longe da pipoquice hollywoodiana em que pontualmente participam, compõem duas grandes personagens, plenas de intrigantes subtilezas, devedoras de teatro da melhor cepa. A Melhor Oferta é um grande filme, artístico e alegórico, cujo argumento me fez lembrar algumas inclinações temáticas dos escritores Jerome Charyn e Gerard Reve (mas sem a tónica homossexual deste). Não estamos, exactamente, no campo do chamado "realismo mágico", nem da simples alegoria, mas num mundo ficcional muito parecido com o nosso, embora permeável a elementos que, em outro contexto e apresentados com outro peso, se poderiam denominar como sendo pertencentes ao Fantástico. É, também, um filme que beneficiaria de um olhar mais gélido, mais negro, porque, com efeito, é desse território que estamos a falar. Tornatore é, ainda assim, e apesar da sua finura de esteta, capaz de criar-nos angústia: o seu filme é, pois, como um quadro tenebroso, pintado à moda clássica - impressiona pela riqueza de detalhe e pelo elevado grau de perfeição, mas não horripila, verdadeiramente. Um dos melhores filmes que poderão ver, nestes dias, em exibição - e, já, um dos melhores deste ano.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

«Palmas Para o Esquilo» para breve


Já não falta muito para poderem ler Palmas Para o Esquilo, o meu novo livro de banda desenhada, com arte de Pedro Serpa e edição pela Kingpin Books. Os fãs da minha escrita e da arte do Pedro Serpa terão, neste livro, um festim para os olhos e para a mente.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

«Macumba Stereo»: novo disco de La Chanson Noire


Macumba Stereo, o novo disco de La Chanson Noire, já está disponível. Para vossa comodidade, nesta ligação poderão escutá-lo e adquiri-lo sem saírem de casa.
A música que se apresenta na ligação anterior, intitulada Fado Mau, conta com a minha participação especial, na qual leio um texto que, infelizmente, tem tudo a ver com a Idade das Trevas que atravessamos.


Macumba Stereo é um disco negro, cativante, eloquente, truculento, vanguardista e interventivo. Ouvir Macumba Stereo, pela mão de Charles Sangnoir, que aqui regrava os seus melhores clássicos e nos apresenta belos inéditos, é como ir ao balcão do bar e segredar a senha ao empregado para pedir-lhe um copo da bebida proibida que só os verdadeiros libertinos conhecem e sabem apreciar: ou seja, é, em simultâneo, um prazer sensualista e quasi-ilícito. De inegável bom-gosto, com um requintado sentido do espectáculo, Macumba Stereo é, provavelmente, o disco mais depurado e frontal de La Chanson Noire, mas nessa honestidade desarmante cristaliza tudo aquilo que faz desta banda (de um homem só) o nome mais inteligente e imprescindível da "cena gótica" portuguesa. Caros, aqui há verdadeira emoção, verdadeiro sentimento. Em suma, aqui há verdadeira magia!


segunda-feira, 1 de abril de 2013

Tese sobre «Lisboa Triunfante»

(«Como a Morte se Tornou Perpétua», ilustração de Ana Maria Baptista para o capítulo «A Terra das Serpentes» do romance Lisboa Triunfante.) 

O ano passado fui contactado por Ana Maria Baptista, aluna do curso de Ilustração Artística promovido pelo Departamento de Artes Visuais da Universidade de Évora e pelo Departamento de Artes Gráficas do ISEC - Instituto Superior de Educação e Ciências, e por ela entrevistado sobre o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), no âmbito da realização da sua tese de mestrado de ilustração artística sobre esse livro. Fiquei muito satisfeito pelo seu interesse em escolher uma obra minha para fazer a tese de mestrado e, evidentemente, respondi às perguntas. Entretanto, a tese, intitulada O Imaginário Gótico na obra literária Lisboa Triunfante de David Soares, foi defendida e a Ana já é mestra: parabéns, Ana, pela conclusão do teu mestrado - que o olhar companheiro da Raposa siga, protector, o teu percurso!

Graças à generosidade da Ana, que me deixou partilhar convosco as perguntas que me fez, aqui fica a entrevista para vossa leitura e apreciação.

Entrevista a David Soares

Ana Maria Baptista - Se te apresentasses a alguém como escritor, mas que não tivesse conhecimento sobre a tua obra, o que dirias?

David Soares - Diria que escrevo romances meticulosamente pesquisados e complexos, que versam sobre temas históricos e ocultismo, cujo universo autoral se inclui no mundo do Fantástico, porque escrevo sobre assuntos que são invisíveis e inacessíveis para a dita realidade que vemos todos os dias. Mas não me encaixilho em nenhuns formatos de género pertencentes ao Fantástico. Eu estou no Fantástico em virtude do meu universo autoral.

AMB - Qual foi a obra que mais gostaste de escrever?

DS - Todos os livros me dão o mesmo gosto a escrever, mas, neste momento, o meu preferido é Batalha, porque encerra com elegância as minhas premissas autorais: uma narrativa complexa, com muitos níveis de leitura; linguagem luxuriante e desafiante; a influência do oculto e do hermetismo; e a busca pela transcendência. Também gosto muito de Lisboa Triunfante, porque ainda mantenho a crença de que ao escrevê-lo contactei mesmo com "algo" misterioso. Aliás, já várias vezes pensei em voltar ao universo de Lisboa Triunfante, porque ainda tenho muito que contar em relação a ele.

AMB - Qual/is o(s) livro(s) que mais gostaste de ler?

DS - O meu livro preferido - e aquele que considero o melhor livro do mundo - é Darconville's Cat de Alexander Theroux. Que um escritor seja capaz de ler Theroux, em especial este título, e ter coragem para continuar a escrever é uma grande prova de coragem e de talento, porque é um romance praticamente inultrapassável. Nos Estados Unidos, em 1981, quando foi editado, vendeu cerca de quinze mil exemplares e foi considerado um fracasso de vendas, embora tenha sido nomeado para o National Book Award. É a diferença entre o mercado norte-americano e o nosso: lá, quinze mil exemplares são um fracasso de vendas, um número residual; cá, seria como ganhar o Euromilhões. Nesse sentido, como é possível um autor português, que, em média, vende cerca de três mil exemplares, usar os seus números para impressionar um editor estrangeiro? 

AMB - Qual o teu método preferido para começares a escrever um livro?

DS - Não tenho método. As ideias, ou melhor, as premissas das ideias, surgem-me já formadas na cabeça; e quando são boas o suficiente para serem desenvolvidas, decido que, muito bem!, tenho livro. Em essência, as ideias têm origem na ruminação e no cruzamento das minhas diversas leituras: livros de história, de divulgação científica, filosofia, ensaio, etc., e, depois, vou rodando-as na cabeça, adicionando-lhes material que pode ou não ser adequado, e, em seguida, quando já tenho uma história sólida em mente, com um enredo definido, dactilografo-a. De maneira geral, a escrita de um romance passa por dois períodos: o da investigação sobre o assunto e a da escrita. A da escrita é mais rápida, porque só começo a escrever quando tenho tudo muito bem estruturado e delineado. Não gosto de improvisar, porque, na maioria das vezes, o improviso é sempre mau. De qualquer das formas, se decidir improvisar, tenho uma rede de segurança muito forte que me impede de fazer asneira. Em síntese, na fase da escrita, escrevo o dia inteiro e só paro para comer e dormir; depois, no dia seguinte, releio o que escrevi e faço cortes e mudo o que me parece mau. Os cortes que faço têm como objectivo manter íntegro o tom da história: o tom da história é muito importante para mim, porque é a alma do livro. Cada livro tem um tom diferente e enquanto se escreve o tom tem de ser constantemente corrigido para garantir que o livro mantém uma identidade própria. O tom do livro relaciona-se com a voz autoral, mas é uma coisa diferente. A voz autoral é aquilo que agarra o leitor: o leitor quer ler uma determinada voz autoral e é por isso que gosta mais de uns autores do que outros, mas o tom é diferente. O tom de Lisboa Triunfante é diferente do tom de Batalha, por exemplo, mas a voz autoral é a mesma, com as mesmas preocupações, as mesmas interrogações.

AMB - Como começou a tua inspiração para a obra Lisboa Triunfante?

DS - Lisboa Triunfante é um livro muito complexo. Tão complexo que, no início, até pensei em dividi-lo em dois volumes, mas depois achei que isso seria um disparate e percebi que a história podia ser contado num livro só. Em primeiro lugar, quis contar um épico sobre Lisboa, desde as suas origens até à contemporaneidade, e, a outro nível, quis explorar universos que se relacionam com sistemas de crença, como a religião, a política, a dicotomia entre os sexos masculino e feminino... Há capítulos mais políticos do que outros, uns mais religiosos do que outros... As figuras da Raposa e do Lagarto reflectem dois pontos de vista civilizacionais diferentes, um mais atávico, outro mais sofisticado. É um romance no qual a história de Lisboa serve de base para eu falar de muitas coisas diferentes.

AMB - Pode dizer-se que Aquilino Ribeiro é um escritor de referência para a tua obra em geral?

DS - Não. Gosto muito dos seus livros, mas não é uma referência para a minha obra. Porém, admiro muito a sua coragem literária. Lembro-me de ouvir falar dele pela primeira vez no ensino básico e da professora dizer na aula que era um escritor muito difícil, "de dicionário", e que não gostava dele; mais tarde, quando conheci a sua obra, percebi que a professora não tinha razão. Aliás, se um livro não servir para nos desafiar a enriquecer o vocabulário... Há quem prefira textos simples, com palavras que já conhece, mas eu prefiro textos complicados com vocabulário desafiante. Aliás, eu leio dicionários como quem lê romances: começo no A e acabo no Z, por isso... Para mim, são livros apaixonantes. E o Aquilino desafia... Quando se tem cerca de dez ou doze anos de idade, estarmos a ler textos com palavras como "apreensor" e "esfondílio", como A Casa Grande de Romarigães ou As Terras do Demo, isso desafia muitíssimo. De maneira que o amor pelas palavras é uma característica em comum que tenho com ele, mas não vejo isso como uma influência.

AMB - Porquê iniciar a narrativa no Hotel Ritz?

DS - As personagens que aparecem no prólogo, a Paula e o Russel, pertencem a uma classe social alta, com muito dinheiro, e achei que o bar do Hotel Ritz seria um local credível para o encontro deles nessa parte da narrativa. Ambos são coleccionadores de objectos que custam quantias muito elevadas. Conheço pessoas como eles, tanto como a Paula e como o Russel, e penso que o retrato que faço desse mundo, embora ao serviço da narrativa, não deixa de assemelhar-se com aquilo que se passa na realidade dos coleccionadores, dos leilões de livros... Conheço pessoas que, sem serem milionários, como a Paula e o Russel, vão à mesma comer e dormir a sítios muito caros e muito requintados, nem que seja uma única tarde ou uma única noite. São o que eu chamo de coleccionadores de momentos e, à conta deles, tenho ouvido falar de sítios estranhíssimos que nem fazia ideia que existiam. O bar também tem, como é evidente, um significado simbólico, mas, de maneira geral, é um local sofisticado para um encontro de personagens sofisticadas.

AMB - Preferes a Raposa ao Lagarto ou vice-versa?

DS - A Raposa preferiu-me. Desde que escrevi o romance, vejo raposas em todo o lado, todos os dias, quando menos estou à espera. Se fosse crente, diria que despertei a atenção de um arquétipo que me quer fazer seu cronista. Neste momento, escrevo e, na secretária, tenho um pin com uma raposa, que encontrei, por completo acaso, numa barraca de uma feira que visitei este Verão. A Raposa está comigo: não sei se para o bem ou para o mal, mas tive de habituar-me a isso.

AMB - O rapaz que aparece no capítulo «A Terra das Serpentes», e que é tentado pelo mensageiro do Homem Verde a vingar-se da chefe da sua tribo, tem nome?

DS - Não. Às vezes, não gosto de dar nomes às personagens, em principal às dos contos. Torna-as demasiado conspícuas. Existem coisas mais importantes nos livros que os nomes das personagens.

AMB - Quanto aos contos e lendas que introduzes em Lisboa Triunfante, por que o fizeste e onde te inspiraste para contar essas histórias?

DS - Tudo aquilo que está em Lisboa Triunfante está ao serviço da história, todas as alegorias, todos os níveis de sentido. Também há espaço para algum humor: com efeito, o romance tem imensas passagens que considero muito irónicas, como a sessão de solfejo no capítulo «O Reino do Sol». Essa passagem é um exemplo de um episódio que tem algum humor, mas que serve um propósito narrativo: reforça a ideia de loucura total que atravessava aquele período da corte joanina. Foi um período muito estranho, muito formal, muito reservado, mas, ao mesmo tempo, um tempo absolutamente descabelado, cheio de personagens excêntricas e episódios extravagantes. Essa mistura de formalismo e loucura é fascinante. Daí que a inclusão de histórias paralelas tem sempre o propósito de reforçar o tom da narrativa principal e de oferecer níveis de leitura mais complexos: são "hiperligações". Mas existem mais apontamentos humorísticos espalhados ao longo do romance, como a presença de Pokémons no rol de diabos no capítulo «Pythonomorpha Pentadactyla». É o humor vulpino, na verdade, o humor da Raposa. O humor traquinas, de pregar a partida sem que o leitor perceba.

AMB - Consideras que o lagarto pode ser entendido como o Homem e a raposa como a Mulher, num sentido simbólico?

DS - Pode ver-se essa questão por esse prisma, mas na minha cabeça o binómio Raposa/Lagarto não funciona assim. A Raposa e o Lagarto são como os degraus de uma escada: há o degrau, propriamente dito, e a face vertical que nos conduz ao degrau seguinte. Essa face vertical chama-se espelho: o degrau é o nome da superfície horizontal. Por isso, subir, ascender, faz-se de verticalidade e horizontalidade, em simultâneo: estabilidade e mudança, se lhe queremos chamar isso. O Lagarto e a Raposa são como o espelho e o degrau, embora, por vezes, durante o livro, não seja claro qual deles significa o quê. Na verdade, ambos têm agendas ocultas e o progresso e estabilidade que vão criando é, de certa maneira, instrumental a essas agendas. Às vezes é a Raposa a querer mudança, às vezes é o Lagarto. Acho que as diferenças estão no seguinte: a Raposa é mais parecida connosco; o Lagarto é mais parecido com o universo. A Raposa percebe-nos melhor, tem mais simpatia por nós, gosta de brincar connosco, de nos ludibriar. O Lagarto é uma força da natureza, como o vento: afecta-nos, mas não age connosco. A não ser em ocasiões especialíssimas, como as descritas e sugeridas no romance. Aliás, uma das angústias a que a religião tenta dar conforto é a de que o universo não nos compreende, a de que o universo não é humano e não nos liga nenhuma.

AMB - Lisboa com certeza é uma cidade com a qual tens uma grande afinidade, visto ser a tua cidade natal. Em três palavras, como a caracterizarias?

DS - A minha relação com Lisboa foi-se tornando numa relação muito mais museológica do que era. Com efeito, desde há três anos, que tenho vindo a "desapaixonar-me", entre aspas, pela cidade. Ou melhor: pela cidade em que moro, porque a Lisboa histórica, ideal, imaginal, cada vez a amo mais e mais. Dói-me muito ver a cidade a transformar-se em algo que me desagrada muitíssimo e a descaracterizar-se, a perder património. Também perdi uma pessoa que era um fortíssimo elo de ligação que me mantinha agarrado a ela e isso concorreu para que me começasse a distanciar, de imediato. Eu faço a minha vida de todos os dias na mesma Lisboa que tu, mas, de facto, vivo em outra, que construo com elementos históricos, com pedaços das minhas criações, com pedaços dos meus sonhos. Sonho quase todas as noites com uma Lisboa histórica diferente da que existe: e sonho com ela muitas vezes. É como se andasse pelo sonho com uma lanterna e, a cada noite, descobrisse mais um pedaço dela. Essa é a Lisboa que me interessa: esse é que é o meu mundo. Cada vez me sinto mais companheiro do histórico, do sonho e do passado.

AMB - Boytac foi um personagem bastante activo e reactivo no teu romance. Além do que leste em Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, onde ou em quem te inspiraste para a construção do personagem?

DS - A personagem Boytac é o arquétipo do misógino. É uma espécie de São Paulo, para quem as mulheres são a criatura mais desprezível que existe. Na minha cabeça, o Boytac é alguém que está, constantemente, a racionalizar tudo e, pior que isso, é alguém para quem os outros são como grãos de areia, porque, bem vistas as coisas, não lhe chegam aos calcanhares no que diz respeito à cultura e ao intelecto. A única pessoa capaz de se elevar à altura dele é D. Leonor, a viúva de D. João II, e ele não é capaz de suportar isso, não é capaz de suportar que a única pessoa no reino com uma cabeça tão boa como a dele seja uma mulher. Mas à parte da misoginia, a personagem Boytac tem muitas características que eu considero grandes qualidades e, de certa forma, acho que faz muita falta existirem pessoas como ele. Falámos em Aquilino: o Aquilino não tinha pudor nenhum em dar uma chapada a alguém que o ofendesse - mesmo a um amigo. Dava e, depois, a coisa esquecia-se. Hoje, sob a égide do politicamente correcto, vivemos numa sociedade inquinada pela aparência, pela tibiez. Fazem falta homens como o Aquilino e como a personagem Boytac: homens autênticos, fortes no carácter e no intelecto. O Boytac é uma relíquia como o seu mosteiro. Já não se fazem pessoas e edifícios assim.

AMB - Consideras a ilustração fantástica, mais propriamente gótica/de horror, uma boa forma de interpretar esta obra literária?

DS - Provavelmente, será. Nunca imaginei ilustrações para os meus romances, excepto no caso do Batalha que, quando nasceu na minha cabeça, já vinha a pedir para ser ilustrado, à maneira das velhas fábulas. Foi uma excepcionalidade, nesse sentido, mas penso que uma ilustração de estilo gótico, como as dos romances do século XIX, ou até à maneira dos estilos de Arthur Rackham ou de Rien Poortvliet, seria muito interessante. Ver a interpretação que outro artista faz da minha obra é sempre uma honra e uma emoção enorme.

AMB - Caso escolhesses uma banda-sonora para esta obra, qual seria?

DS - Não escolheria.

AMB - Caso escolhesses ser um personagem desta obra, qual seria?

DS - Talvez o Boytac, porque sou muito parecido com ele, excepto no que concerne à misoginia. Baseei a personalidade dele na minha e nos registos históricos que descrevem as suas atitudes. Ele é, também, o enantiomorfo do D. Nuno de Ataíde, o inquisidor-mor do capítulo anterior: ambos têm um grande ódio de estimação; no caso do Boytac são as mulheres, no caso do Ataíde são os judeus, mas o Boytac nunca se torna maníaco, porque tudo nele encerra um elevadíssimo sentido do dever. É uma personagem que, para o bem ou para o mal, é incorruptível, é totalmente obcecado pelo seu código moral e intelectual sobre como deve ser um homem. O D. Nuno, não. É um obcecado pelo poder, é um esbirro do poder, e, nesse sentido, não tem espinha, não tem carácter. Para ele, o poder é um fim em si mesmo e não uma ferramenta para chegar a algo. É isso que faz do Boytac um homem superior: ele está-se nas tintas para o poder, porque para ele o poder é apenas uma ferramenta para chegar à obra. A obra é que fica para sempre.

AMB - Que conselho darias a um escritor de fantasia?

DS - Seja de fantasia ou não, o meu conselho é sempre ler muito, porque é a única escola de escrita que existe. Ler muito e aprender bem as regras da gramática, chamemos-lhes isso. Um escritor tem de ser erudito. Se não for assim, não vale a pena escrever, porque só vai escrever obras menores. Como em qualquer arte, a personalidade criadora, a voz, vai de dentro para fora. Quando se é mesmo artista, isso rompe, mostra-se. O resto é polimento, é refinamento, é desenvolvimento. De facto, tem de ser-se, já, artista. Os artistas nunca se fazem: já o são. Um indivíduo pode matar-se a trabalhar, a aprender a ser muito bom, mas se não for, de facto, artista, isso vai notar-se sempre, vai ser sempre uma sombra que ofusca o que ele cria. Hoje, existe uma fronteira muito ténue entre o autor e o público, porque é o público que compra a obra, logo o mercado obriga a essa proximidade, mas isso é muito destrutivo porque os indivíduos acham que a arte tem de estar ao nível deles, quando são eles que têm de pôr-se ao nível da arte. Há poucas dezenas de anos, um tipo entrava numa galeria e até tinha vergonha de admitir que não percebia um fiapo de arte: hoje, pelo contrário, diz-se que a arte é má se não for compreendida à primeira olhadela. Há uma grande tirania do público que está a matar a arte. Não tenho nenhum hábito de citar Nietzsche, mas ele, no Para Além do Bem e do Mal, tem um aforismo certeiro sobre isto: «-Não gosto. - Porquê? -Porque não estou à altura. Alguma vez alguém pensou assim?» Os artistas precisam de recuperar inacessibilidade, ascetismo. Precisam de recuperar mistério, por que não?


Horror do fundo do baú


Andei a arrumar o escritório e encontrei a primeira crítica profissional, publicada na imprensa, sobre um trabalho de minha autoria: uma resenha ao meu primeiro fanzine de banda desenhada, intitulado Alimentando-se Com os Fracos (1999), publicada no jornal Blitz, a 13 de Julho de 1999. Já foi há tanto tempo - e, entretanto, já escrevi tantos livros, desde esse Verão Negro até agora. Foi uma bela surpresa encontrar este recorte: existe uma continuidade mefistofélica entre as presas do babuíno que está na capa do fanzine e o universo autoral que desenvolvo actualmente e isso preenche-me de orgulho.