quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Mitos e verdades


Inversamente às narrativas contemporâneas, sustentadas pelo vápido e pelo transitório, os mitos, filtrados pela peneira do tempo, são, quase em exclusivo, verdade — verdade sobre a condição humana. A verdade é que, passados milhares de anos, a natureza humana ainda é a mesma.

Uma das verdades que mais serviria de guia e aviso para a jornada contemporânea, caso a maioria estivesse com atenção, é a de que facilmente nos podemos transformar em algo que desgostamos; na verdade, metamorfose e temeridade são cognatas na mentalidade clássica. Confronto, más escolhas, transferência e transformação. Ovídio escreveu um livro inteiro sobre esses temas.

A matriz humana é plástica, proteica, instável. Nunca se sabe o que poderá advir de encontros improváveis com matérias desconhecidas. Porém, na actualidade, neste período assinalado por uma espécie de neo-cientismo devedor dos piores tiques do original oitocentista, os mitos são desdenhados, porque não consistem em correctas interpretações da realidade, pressupondo que se pode com facilidade concordar sobre aquilo que é a realidade e, também, sobre o quão objectiva pode ser uma interpretação. Mas o objectivo dos mitos nunca foi o de explicar a realidade, mas o de dimensionar significado. Os antigos não acreditavam na literalidade dos seus mitos — e, em harmonia com essa velhíssima, mas prudente precaução, seria cauteloso que não nos precipitássemos a crer na literalidade dos nossos. De facto, continuamos a criar mitos, mas insistimos em não querer vê-los dessa forma. O impacto desse comportamento será sempre o da transformação indesejada em algo que se detestaria ser, mas que, como as infelizes vítimas dos mitos antigos, se é impotente para impedir.

Talvez não seja arbitrário que a incessante procura contemporânea por identidades se relacione com um angustiante sentimento de vazio face a um mundo que se considera submetido a inéditas transformações, mas um exame histórico demonstra que nada é inédito, verdadeiramente — e é por essa razão que os mitos continuam a significar. A volta do Milénio, como seria de esperar, não trouxe nenhuma das transformações profetizadas pelos prognosticadores: nenhuma utopia se concretizou e isso é assustador para quem lhes dirigiu a fé. Nestes tempos turvos de confusão e ludíbrio, em que nem cultura nem contracultura estão de boa saúde, infestadas pela praga dos pregões, das ideias feitas e do policiamento da imaginação, seria uma boa ideia voltar a olhar para os mitos do passado para compreendermos que 1) não estamos sozinhos nas nossas indefinições e que 2) a falta de discernimento é a mais rápida forma de nos transformarmos naquilo que não gostamos.

(Imagem: Jóia quinhentista, representando a transformação de Dafne em loureiro, usando coral para o efeito.)