sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Anormais reais: o Geek e o Xexé


Hoje, a palavra norte-americana geek (sem tradução directa para língua portuguesa, mas cujo sentido se contígua ao transmitido pela palavra anormal) é, quase em exclusivo, utilizada para designar o arquétipo do adolescente tímido, "caixa de óculos" e sem competências sociais, que é obcecado por tecnologia e banda desenhada, mas, em outros tempos, principalmente na transição do século XIX para o XX, o nome geek era dado aos artistas dos circos e feiras ambulantes que, nos seus espectáculos, comiam cabeças de galinhas, cobras e ratazanas vivas.
Na imagem acima, fotografada no ano de 1938 na cidade norte-americana de Donaldsonville, no estado do Louisiana, pode ver-se um geek autêntico a trincar a cabeça de uma serpente para gáudio da assistência. De maneira geral, estes artistas eram indivíduos simplórios ou padecentes de doenças mentais que aceitavam ou eram obrigados a participar em desafios de natureza aberrante, como os de comer insectos e cabeças de répteis e roedores. O New International Dictionary of the English Language (1954) oferece esta definição de geek: «um "homem selvagem" circense que comia as cabeças de cobras e galinhas vivas nos seus espectáculos». É uma designação que provém de geck, quinhentista palavra inglesa que significava louco ou imbecil e que, por sua vez, teve origem no nome holandês gek, que possuía o mesmo sentido.

A lamentável figura do geek das feiras itinerantes foi popularizada junto do grande público pelo filme Nightmare Alley, realizado em 1947 pelo cineasta inglês Edmund Goulding, que estreou dois anos depois em Portugal com o título O Beco das Almas Perdidas: neste filme, que adapta o romance homónimo do escritor norte-americano William Lindsay Gresham, publicado em 1946, o actor norte-americano Tyronne Power interpreta a personagem Stan Carlisle, vigarista que, a dada altura, por culpa de um reverso de fortuna, se vê obrigado a fazer de geek numa feira para ganhar a vida. No início da década de oitenta do século passado (no ano de 1981), o músico inglês Ozzy Osbourne também fez de geek, mas acidentalmente, quando, embriagado, comeu a cabeça de uma pomba viva durante uma reunião de trabalho com executivos da distribuidora discográfica Columbia Records. Não deixa de ser interessante que essa empresa tenha ido buscar o seu nome à personagem Columbia: a personificação feminina e republicana (com barrete frígio e tudo) dos Estados Unidos (que, entretanto, perdeu popularidade em relação à simbologia romântica oferecida pela Estátua da Liberdade) e cujo nome é uma variação do apelido do navegador genovês Cristovão Colombo, o descobridor oficial do Novo Mundo - em latim, columbus significa pombo).

 Se a primeira mudança de sentido da palavra geek, de imbecil para anormal de feira, é, mais ou menos, linear, não é clara a sua transformação em adolescente, embora se possa especular com segurança que a popularização desse significado ocorreu a partir de 1984 com a estreia do filme Sixteen Candles (Dezasseis Primaveras), a primeira longa-metragem do cineasta norte-americano John Hughes, no qual a personagem intepretada pelo actor norte-americano Anthony Michael Hall é conhecida como Geek.

Contemporânea do geek de feira norte-americano, outra personagem grotesca - avatar (praticamente esquecido) da psique popular - que dava pelo nome de Xexé, foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados da década de trinta do século passado, quando esta personificação do Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os dias.
    
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de "cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da primeira metade do século XVIII e a que D. José tentou dar o fim com uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes) perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita, pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo de ruptura.

 O nome Xexé, cuja grafia deixa uma suspeição de proveniência galega, poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome gagá, que retém um sentido parecido. Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que xexé possa derivar de xixi, relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo para a resolução deste enigma.

Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé - tão descabelado quanto um geek de feira - foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas e das celebrações turísticas dos santos populares.