Ao abrigo da temática tortural, iniciada com a
publicação anterior, abro um pequeno intermezzo tragicómico para
comentar o nádir em que, mais uma vez, se escava a cultura popular, qual
escaravelho coprófago, em busca de húmus ainda mais fétido;
desta feita, com a estreia anunciada para breve (Fevereiro de 2015) do
filme sadomasoquista 50 Shades of Grey, adaptação cinematográfica do
pasquim pseudoporno cozinhado sem gosto e sem requinte pela maître de
cuisine inglesa Erika Leonard James: originalmente uma receita que
consistia numa fanfiction da tetralogia Twilight de Stephenie Meyer.
O trailer já disponibilizado é uma explosão de cabotinice como há muito não se via, pelo simples facto de se querer levar totalmente a sério. O filme erótico será sempre, por natureza, um produto saloio: o
género pornográfico é mais honesto e, às vezes, um barro esteticamente
mais interessante para se moldar (as experiências cinematográficas de
Catherine Breillat, Lars Von Trier, entre outros, vêm à memória), embora
também se esgote em si mesmo nas suas evidentes limitações. No entanto,
aquilo que provoca maior estupefacção em objectos da estirpe de 50
Shades of Grey é um certo discurso invisível que transmitem, segundo o
qual vêm quebrar com pompa e circunstância todos os tabus erguidos
diante da sexualidade por uma sociedade bafienta e timorata.
Apresentam-se como campeões da liberdade (e da libertinagem). Ora, isto
não podia estar mais longe da verdade: filmes e livros como 50 Shades
of Grey não só se inserem na esteira de uma longa tradição de obras
populares pornográficas, como, ainda por cima, perdem na comparação com
estas no que concerne à malandrice e à perversidade.
Nem sequer vale a pena ir buscar os exemplos mais conhecidos - e mais escabrosos. Recupero umas transcrições de um curioso opúsculo que, infelizmente ou felizmente, tem andado um bocado esquecido, autorado em 1799 pelo frade oratoriano Teodoro de Almeida e intitulado Elogio da Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Ana Xavier de Assis Mascarenhas, Baronesa de Alvito e Condessa de Oriola. Esta narrativa conta como a referida senhora «ocultava ao seu ilustre esposo as penitências que ela fazia» e que consistiam em «tomar disciplina na companhia de umas devotas mulheres», em usar «frequentemente de cilícios de ferro e nos seus tenros e ainda bem delicados membros os apertava com estranha crueldade». Mas há mais: «havendo de fazer uma jornada a cavalo levava o cilício cingido na cintura: e usava dele nas circunstâncias em que esta penitência era mais penosa...» [leia-se, quando estava grávida]. A luxúria masoquista da baronesa-condessa não ficava por aqui: «quando se lhe descobria e tirava o instrumento das frequentes disciplinas, inventava outras das quais ninguém suspeitou o ministério para que se deputavam, tomando com eles novenas de disciplinas de sangue». Embriagado de embevecimento, Teodoro de Almeida expõe ainda que a baronesa-condessa «usava de uma pequena tenaz de ferro, que com os dentes agudos prende onde a largam por causa de uma mola, que continuamente força» e ainda que havia um outro instrumento do qual ela «se valia com muita frequência, buscando de propósito partes onde a sensação fosse mais delicada». A nossa baronesa-condessa setecentista faz engolir em seco as personagens de 50 Shades of Grey, com a vantagem acrescida que, na sua situação, a figura de poder é ela: sozinha ou entre as tais «devotas mulheres». Ou seja: o relato do oratoriano Teodoro de Almeida consegue ser mais feminista e subversivo que as fantasias ingénuas com que sonham as Anastasias Steeles contemporâneas, desejosas de encontrar uns Christians Greys que lhes abram as portas das suas câmaras secretas das dores prazerosas (basta ver o trailer do filme para entender o que isto é).
Os únicos tabus que filmes e livros como 50 Shades of Grey vêm quebrar são os da ignorância, quando alguém (como eu fiz agora) olha para o passado e diz nihil novi ub sole.
Nem sequer vale a pena ir buscar os exemplos mais conhecidos - e mais escabrosos. Recupero umas transcrições de um curioso opúsculo que, infelizmente ou felizmente, tem andado um bocado esquecido, autorado em 1799 pelo frade oratoriano Teodoro de Almeida e intitulado Elogio da Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Ana Xavier de Assis Mascarenhas, Baronesa de Alvito e Condessa de Oriola. Esta narrativa conta como a referida senhora «ocultava ao seu ilustre esposo as penitências que ela fazia» e que consistiam em «tomar disciplina na companhia de umas devotas mulheres», em usar «frequentemente de cilícios de ferro e nos seus tenros e ainda bem delicados membros os apertava com estranha crueldade». Mas há mais: «havendo de fazer uma jornada a cavalo levava o cilício cingido na cintura: e usava dele nas circunstâncias em que esta penitência era mais penosa...» [leia-se, quando estava grávida]. A luxúria masoquista da baronesa-condessa não ficava por aqui: «quando se lhe descobria e tirava o instrumento das frequentes disciplinas, inventava outras das quais ninguém suspeitou o ministério para que se deputavam, tomando com eles novenas de disciplinas de sangue». Embriagado de embevecimento, Teodoro de Almeida expõe ainda que a baronesa-condessa «usava de uma pequena tenaz de ferro, que com os dentes agudos prende onde a largam por causa de uma mola, que continuamente força» e ainda que havia um outro instrumento do qual ela «se valia com muita frequência, buscando de propósito partes onde a sensação fosse mais delicada». A nossa baronesa-condessa setecentista faz engolir em seco as personagens de 50 Shades of Grey, com a vantagem acrescida que, na sua situação, a figura de poder é ela: sozinha ou entre as tais «devotas mulheres». Ou seja: o relato do oratoriano Teodoro de Almeida consegue ser mais feminista e subversivo que as fantasias ingénuas com que sonham as Anastasias Steeles contemporâneas, desejosas de encontrar uns Christians Greys que lhes abram as portas das suas câmaras secretas das dores prazerosas (basta ver o trailer do filme para entender o que isto é).
Os únicos tabus que filmes e livros como 50 Shades of Grey vêm quebrar são os da ignorância, quando alguém (como eu fiz agora) olha para o passado e diz nihil novi ub sole.