Faz hoje 102 anos que Gavrilo Princip espoletou a Primeira Guerra Mundial. Nem uma única alma poderia imaginar o que aí viria: Princip foi, bem avaliadas as coisas, a verdadeira, a autêntica, parteira do século XX. Um século tem sempre dois inícios: o inscrito no calendário, iniciado no primeiro ano de cada nova centúria; e outro, orgânico, que se relaciona com mudanças intensas, estruturais, que o transfiguram e, impelindo-o a abandonar a casca, o obrigam a um inexorável caminho às cegas. Às vezes, os dias em que isso acontece são reconhecíveis, mas na maioria das vezes nem se dá por isso, suave que é a maturação das eras - como trombas de água bebés, ainda mansas sob a imperturbável cútis oceânica. George III de Inglaterra terá deixado passar em branco um momento assim, quando a 4 de Julho de 1776 redigiu no seu diário «hoje não aconteceu nada importante». Dá que pensar o facto de que, hoje, com a disponibilidade veloz de informação que possuímos, andamos tão às cegas quanto George III e quanto os europeus de 1914. A história não tem um tufo de cabelos na testa em jaez igual à fortuna: ela passa e não se deixa agarrar. Só é possível ver o rasto da roda vincado na terra e esse é frio, mudo e críptico, tremendamente.
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terça-feira, 28 de junho de 2016
sexta-feira, 24 de junho de 2016
No tempo dos minotauros
Neste momento, em que escrevo este apontamento, não se sabe, não sei, qual será ou já é o resultado sobre o referendo sobre a permanência da Inglaterra na União Europeia. Este instante de incerteza demonstra o quanto é instável a maioria daquilo que consideramos garantido: nada o é - em principal, aquilo que é recente. Ora, a Europa é velha, mas a União Europeia apareceu ontem, de um ponto de vista cronológico mais alargado. Nada garantia ou garante que continuará connosco por mais ou menos tempo e elevo a toada cassândrica deste argumento por culpa da provável saída da Inglaterra da União Europeia, que se cifrará num acto, mais do que simbólico (que o será), análogo ao da queda da primeira peça de dominó que precipitará a das mais próximas. Assim, há que amadurecer o pensamento político e ético e aceitar sem falsas justificações o facto de que a burocraticamente labiríntica União Europeia tem criado monstros de diversos feitios - chamemos-lhes minotauros. Esses monstros têm obstaculizado a soberania dos estados-membros e, se não na prática em espírito, a dignidade dos indivíduos. Alguma espécie de retribuição, justa ou não-justa, instrumentalizada ou não-instrumentalizada, seria sempre de esperar. Fomos todos ingénuos? É provável. No entanto, tal como foi fácil ignorar os monstros do labirinto europeu também é fácil ignorar aquilo que de melhor e mais luminoso saiu desse labirinto: porque num labirinto não há somente treva, há, às vezes mais que uma, saída para a luz. Assim, é fundamental, além da manutenção do espírito crítico, a preservação das resplandecentes conquistas que a União Europeia nos tem proporcionado: todo esse capital humanitário, social e cultural que fez da Europa o melhor continente do mundo para se viver tem de ser conservado preciosamente, sob o perigo de, em caso de alienação, em situação-limite de 'tabula rasa', sermos forçados a recomeçar do zero, do desolador nádir do barbarismo mais aviltante. Seria, de facto, constrangedor que toda a experiência acumulada nas últimas décadas se fossilizasse em vida, que nem um desgraçado celacanto, que ainda nada, mas num mundo que não lhe reconhece lugar; ou, pior, se transformasse numa relíquia, como a representação de Europa e seu touro, aqui reproduzida em anexo: em suma, num tóteme de puro balastro mítico, apenas valorizado por um punhado de indivíduos que, vá lá saber-se como, ainda detêm memórias vestigiais de um período em que o seu valor era absoluto. Novos tempos exigem sempre novos valores. Já temos um pé no Tempo dos Minotauros. Esperemos que ainda se vá a tempo de o retirar.
Adenda: já se sabe que a Brexit ganhou, por uma percentagem aproximada de 52%. Infelizmente, neste caso, o meu texto tornou-se ainda mais relevante.
quinta-feira, 16 de junho de 2016
Sobre bruxas – e sobre o primeiro caçador de bruxas lisboeta
Em relação à publicação anterior, publico umas breves notas sobre o fenómeno da feitiçaria – e uma curiosidade sobre o primeiro caçador de bruxas lisboeta. Ora, escrever sobre satanismo e feitiçaria é
escrever sobre uma tradição heterogénea de contracultura ocidental, apreendendo
que a cultura dominante face à qual ambas manifestações se unem em antagonismo
é a cristã, quaisquer que sejam as denominações.
Do ponto de vista teológico, o satanismo é
uma religião que professa ódio ao cristianismo e no qual se idolatra uma mónade
construída a partir de alusões sobre o Diabo que se encontram nos evangelhos do
Novo Testamento. Não existe Diabo nos livros do Velho Testamento: existe,
apenas, Jeová, capaz de fazer o Bem e o Mal – mesmo quando escolhe
aleatoriamente um anjo para ser agente do Mal. Em oposição, o agente malquisto que
surge nos evangelhos do Novo Testamento parece possuir traços de personagem independente;
um Príncipe das Trevas em potência, ainda ambíguo e muitíssimo indistinto. O
Novo Testamento é pródigo em contos de possessões demoníacas, testemunhos da
existência de demónios e relatos sobre como Cristo ganhava a vida como
exorcista, agarrando vigorosamente os endemoninhados para lhes cuspir para a
boca e para os ouvidos de maneira a escorraçar os entes diabrinos. O satanismo
estandardizado é uma invenção moderna, cujas primeiras representações datam do
século XVII, desde as ditas missas negras de Catherine La Voisin (sentenciada
pelo fogo em 1680), inventadas para entreter os enfadados nobres da corte de
Versailles.
Nunca existiu um culto europeu organizado
em volta de práticas de feitiçaria ou idolatração do Diabo, como acreditaram os
inquisidores dominicanos quatrocentistas Jacob Sprenger e Heinrich Kramer. O
mesmo erro foi pugnado pela académica inglesa Margaret Murray, cujas teses se
encontram desacreditadas. Existem porosidades entre a feitiçaria e o satanismo;
e a oposição do Diabo a Cristo (e a Deus) projecta-se na dos feiticeiros ao
clero. A feitiçaria é, em essência, o controlo de forças sobrenaturais para maléficos
fins anti-sociais; na maioria das vezes por intermédio de demónios e até do
próprio Diabo. O mundo da feitiçaria maleficente não é o mesmo da magia tout court e encontra-se correlacionado
directamente com o mundo cristão; tanto que a feitiçaria foi considerada, a
princípio, uma heresia e é aqui que reside a chave da sua interpretação como
contracultura, porque a heresia é sempre um desvio da ortodoxia: nesse sentido,
Roma julgou que as feiticeiras conspiravam para criar uma nova fé presidida
pelo Diabo e que a feitiçaria seria uma ferramenta para a sua edificação,
enquanto elo cultural aglutinador dessa comunidade de hereges. Esta noção antagónica
persistiu até ao século XVIII: o nosso filólogo Rafael Bluteau, por exemplo, ainda
escreveu que «os que negam a magia
caminham para o ateísmo. Por não confessarem que há demónios dizem que não há
magos; e para porem em dúvida a existência de Deus negam tudo o que se atribui
ao poder do demónio».
Pensa-se que algumas feiticeiras se
empeçonhavam com substâncias alucinatórias, de modo a experimentarem sensações
extracorporais de voo: esses narcóticos não eram fumados, mas tomados por via
tópica pelas mucosas; em especial, as genitais – e aí com a colaboração de
godemichés de madeira, o que contribuiu para a criação da lenda das feiticeiras
montarem vassouras.
O primeiro caçador de bruxas oficial de
Lisboa, vera magistratura criada a 3 de Novembro de 1385, por carta régia de D.
João I, muito antes de iniciar-se pela Europa a infame febre purgatória antifeitiçaria,
o que é extremamente curioso, foi o juiz executor Gonçalo Lourenço – sendo que aqui
o adjectivo executor (ou eyxecutor, como também aparecia grafado
na época) não tem o significado de carrasco,
mas de aquele que opera, que «põe por
obra alguma coisa». Esta magistratura continuou, evidentemente, e os reis
posteriores trataram do assunto com a maior diligência, como se pode ler deste
extracto das Ordenações Manuelinas:
«(…) qualquer pessoa, que em circulo, ou fora d'elle, ou em encruzilhada, invocar espíritos diabólicos, ou der a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa, para querer bem ou mal a outrem, ou outrem a elle, morra por isso morte natural. Porem em estes dous casos, primeiro que se faça execução, nolo farão saber, para vermos a qualidade da pessoa, e modo em que se taes cousas fizeram (…)».
Enquanto a igreja cristã foi dominante, os
imaginários do satanismo e da feitiçaria permearam de um modo palpável a psique
pública, mas, para o padrão que afecta a este artigo, a preponderância desses
modelos surgiu sincreticamente. Os tipos de satanismo e de feitiçaria que, a
partir dos anos cinquenta do século passado, fizeram-se pesar na indústria
artística e na de entretenimento já se mostravam como sendo misturas kitsch de desusadas crenças (volvidas
inofensivas pela distância temporal e pela perda de relevância do cristianismo)
com coordenadas oriundas do estranhíssimo mundo do esoterismo ocidental,
consubstanciado a partir de meados do século XIX. Nomes como os do mago inglês
Aleister Crowley (que não foi satanista, mas agnóstico) e do escritor inglês
Dennis Wheatley (que inovou nos seus livros o estilo que definiria o das influentes
produções cinematográficas de horror dos estúdios britânicos Hammer) são dos
mais predominantes nesse caldo popular de referências em que o ingrediente
principal é a imagem dramática do Diabo enquanto anti-herói, patrono dos
marginais, dos boémios e dos livres-pensadores, cunhada por John Milton no
livro Paradise Lost, obra inauguradora
de, no mínimo, dois conceitos revolucionários: criou o adjectivo satânico e vinculou pela primeira vez o
nome Lúcifer à personagem do Diabo – nome que, até à data, era apenas um dos
dois epítetos do planeta Vénus, que aparece duas vezes por dia no céu (Lúcifer
era o nome matutino e Vésper era o nome vespertino). Este inicial Lúcifer
miltoniano é, por conseguinte, o vero protótipo do Diabo novecentista; transcolado,
entre outros, pelos escritores franceses Charles Baudelaire, Joris-Karl
Huysmans e Jules Michelet, mas também pelos russos Mikhail Lermontov e Fiódor
Dostoiévski e pelo irlandês Charles Maturin.
Imagem: bruxa montada numa vassoura em Le champion des dames, de Martin Le France (1451).
Imagem: bruxa montada numa vassoura em Le champion des dames, de Martin Le France (1451).
Ele há bruxas
A perclara severidade da ambiência sóbria - dir-se-ia desapossada -
de The VVitch (2015) deve muitíssimo à fotografia de Jarin Blaschke,
director de fotografia deste filme de estreia do realizador
norte-americano Roger Eggers, sobre uma família de colonos puritanos
seiscentistas que é banida da plantação em que residia e tem de começar
sozinha a sobreviver nas fímbrias de uma floresta que, de imediato, se
mostra madastra.
Filmado quase em exclusivo com recurso a luz natural
e servido por uma conceptualização cenográfica muito realista, The
VVitch é um passo enorme na direcção de um novo tipo de filme de
horror: totalmente livre da fagia auto-referencial e apologia
humorística que assinalaram grande parte da produção cinematográfica
deste campo, realizada nos últimos vinte ou vinte e cinco anos, e
dirigido ao que de melhor marcou os títulos mais significativos e
subversivos da segunda metade dos anos setenta e primeira metade dos
anos oitenta do século passado. De facto, desde as primeiras imagens, The VVitch apresenta-se, logo, com um inesperado e indiscutível
carácter intemporal, o que significa que, dificilmente, se deixará
datar; o que é notável, considerando que o seu realismo, diga-se assim, é
conseguido sem o recurso aos truques de pacotilha do
falso-documentário. Nada em The VVitch é documental: tudo concorre
para um efeito de autenticidade, mas que recusa, liminarmente, o registo
documental.
A história, do
próprio Eggers, é, aparentemente, sustentada por textos seiscentistas
sobre casos de bruxaria; ou seja, determinados diálogos e certas
situações serão decalcados textualmente, verbatim, desse material de
época, embora a concretização nunca se torne, por culpa disso, num
pasticho, conservando inviolável a sua raison d'être.
Na minha opinião, o filme só é prejudicado, não por um desequilíbrio, mas por uma desproporção de perspectivas. No filme existem duas perspectivas sobre as ocorrências de que padecem as personagens, sendo que um desses pontos de vista é, sem timidez, demonstrado no início ao espectador como sendo o correcto, o fidedigno. Por conseguinte, na gestão que faz do medo e da ansiedade, The VVitch oscila sem necessidade entre duas perspectivas, depauperando o resultado final de alguma força anímica que, sente-se, está ali contida que nem lava à espera de jorrar, de rebentar. Por um triz não o consegue, nos negríssimos, niilistas e quase-perturbantes últimos vinte ou quinze minutos de duração, que contêm algumas das melhores cenas jamais vistas em filmes do género. Em suma, The VVitch não é um clássico, mas é um excelente começo e um filme que, decididamente, está muitíssimo acima da média. Aliás, é provável que espectadores mais sensíveis do que eu o achem determinantemente apavorante.
Na minha opinião, o filme só é prejudicado, não por um desequilíbrio, mas por uma desproporção de perspectivas. No filme existem duas perspectivas sobre as ocorrências de que padecem as personagens, sendo que um desses pontos de vista é, sem timidez, demonstrado no início ao espectador como sendo o correcto, o fidedigno. Por conseguinte, na gestão que faz do medo e da ansiedade, The VVitch oscila sem necessidade entre duas perspectivas, depauperando o resultado final de alguma força anímica que, sente-se, está ali contida que nem lava à espera de jorrar, de rebentar. Por um triz não o consegue, nos negríssimos, niilistas e quase-perturbantes últimos vinte ou quinze minutos de duração, que contêm algumas das melhores cenas jamais vistas em filmes do género. Em suma, The VVitch não é um clássico, mas é um excelente começo e um filme que, decididamente, está muitíssimo acima da média. Aliás, é provável que espectadores mais sensíveis do que eu o achem determinantemente apavorante.
segunda-feira, 13 de junho de 2016
Sobre Santo António no dia de sua morte
Foi a partir do reinado de D. Afonso III que as espécies monetárias começaram a figurar no pagamento do salário dos trabalhadores, que, dessa forma, passou a ser misto: em dinheiro e em géneros (nos quais se contava o vestuário). Espoletou-se, pois, uma economia baseada no dinheiro e não na troca mais ou menos equivalente de produtos e de serviços. De igual modo, foi com esse rei que a circulação da libra se vulgarizou, abrindo o sistema monetário português ao resto da Europa; facto que ditou a extinção lenta, mas inexorável, do morabitino (ou maravedi: moeda exclusivamente peninsular). O sistema de contagem em libras, soldos e dinheiros perdurou até D. Afonso V iniciar o seu reinado; período em que a libra foi substituída pelo real. No reinado dionisino, uma libra valia vinte soldos e um soldo equivalia a doze dinheiros. Estes eram cunhados numa liga metálica de prata e cobre, na qual a percentagem da primeira era muito baixa: essa liga chamava-se bolhão – nome que se transformou em sinónimo dos dinheiros e nome que se relaciona directamente com o cerne do nosso assunto.
Seria engraçado que esse nome estivesse na origem do suposto apelido Bulhões do jovem Santo António (nascido a dois passos de distância da Sé, por alturas de 1190, segundo a tradição), cujo nome de baptismo seria Fernando Martins. Uma tradição oral do século XIV foi estabelecendo na memória popular que os seus pais foram Martinho e Teresa de Bulhões, mas não existe nenhuma fonte histórica que o corrobore, assim como os primeiros cronistas da vida de Santo António nunca mencionaram sequer o apelido Bulhões. Em suma: dizer-se que Santo António se chamava Fernando de Bulhões, e que foi filho de Martinho e de Teresa, será, em última análise, uma ficção. No entanto, a tradição oral supracitada também refere que o pai de Santo António trabalhava para a câmara de Lisboa. Ora, se trabalhasse como cobrador, até pode conjecturar-se, como puro exercício especulativo, se o apelido Bulhões não fosse, em vez disso, uma alcunha derivada do nome das moedas que ele cobrava: os bolhões. Nesse caso é fácil imaginar que o tal Martinho pudesse ter sido conhecido pelos populares como “Martinho dos Bolhões”: ou seja, como o “homem que vem buscar os bolhões”. Por culpa disso, o filho ganharia a alcunha de “Fernando do Bolhões”: ou seja, o “Fernando que é filho do Bolhões”.
Então, como é que Fernando – Martins ou Bulhões – deu lugar a António? A resposta é simples: o nome António, de aristocrática origem romana, cuja etimologia incerta talvez possa estar relacionada com a palavra grega para flor (anthos), foi um nom de plume adoptado pelo santo quando esteve na Itália, por razões que, hoje, não são claras. No entanto, o que é claro é que o nome masculino de António se generalizou muitíssimo após o prestígio granjeado pelo santo; e, ao contrário do que se possa pensar, a sua manutenção fez-se por via culta, em oposição à coexistente degenerescência na redução Antão ou Anto, verificada em contextos populares (o poeta António Nobre usou durante algum tempo o hipocorístico Anto).
À parte das enturbadas origens do nome de Santo António, outros aspectos da vida deste santo permanecem desconhecidos do público. À cabeça, lembro-me de uma curiosidade interessantíssima que tem andado algo esquecida: a tradição estabelece que foi o rex inutilis D. Afonso VI (quando ainda era Príncipe do Brasil) que, em 1655, durante o período da guerra com Castela pela independência do reino de Portugal, tornou Santo António o protector do exército português, ordenando que este assentasse praça como soldado e lhe fosse pago soldo por esse serviço. Assim, Militar, inversamente a Casamenteiro, consiste no mais ignoto atributo antonino.
Imagem: Santo António de Meinedo (séc. XV). Encontrada na freguesia de Meinedo, concelho de Lousada, esta imagem é uma das mais antigas representações de Santo António com o Menino Jesus ao Colo.
sábado, 11 de junho de 2016
Evocação dos santos gémeos de Lisboa em período das Festas dos Santos Populares
Neste período festivo devotado ao culto folclórico dos Santos Populares de Lisboa é fácil esquecer que outras sacralizadas figuras houve que, em tempos de antanho, foram idolatradas em vez de Santo António, São João ou São Pedro. Já falei aqui várias vezes dos irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia, os três santos mártires de Lisboa (nos quais a antiga freguesia lisboeta de Santos-o-Velho – integrada na nova freguesia da Estrela, desde 2012 – guindou o seu nome); porém, também antigos, são os nomes de São Crispim e São Crispiniano: os dois santos gémeos de Lisboa, cuja importância nos primeiros tempos da reconquista da cidade tem sido esquecida. Vale a pena recordá-los, evocando-os a partir da sua representação mais significativa: a que se encontra plasmada na tela seiscentista de autor anónimo conservada no Museu de Lisboa (e cuja imagem aqui reproduzo).
Com dois metros e meio de altura e três
metros de largura, este quadro argumenta connosco sobre como
poderá ter sido a conquista de Al-Uxbuna, por D. Afonso Henriques, em 1147.
Escrevi “argumenta”, porque a sua imponência é impositiva: esta tela, que
preenche todo o campo de visão, não serve tanto para retratar a conquista da
cidade, como para celebrar a dedicação desta aos santos mártires São Crispim e
São Crispiniano. Segundo o hagiológio, estes irmãos romanos foram martirizados
em finais do século III, no período das perseguições imperiais ao cristianismo,
na cidade de Soissons onde trabalhavam com peles, estando ainda por decidir se
foram peliteiros, surradores, sapateiros ou correeiros – a dúvida é
prerrogativa dos homens, mas, por vezes, também beneficia os santos, porque em
vez de remetê-los para um canto nublado da hagiografia, esta indefinição tornou
estes gémeos os padroeiros de todos os ofícios que têm o couro como
matéria-prima. Podemos vê-los no canto superior esquerdo da tela, sentados no
regaço das nuvens e agarrando as palmas – símbolos de martírio –, enquanto
olham com entusiasta aprovação para o abalroamento das portas da cidade pelas
milícias cristãs, compostas por cavaleiros portugueses e cruzados
norte-europeus arrebanhados na cidade do Porto, no âmbito da (fracassada)
Segunda Cruzada, instigada pelo papa cisterciense Eugénio III para recuperar o condado
de Edessa (criado durante a Primeira Cruzada).
O quadro é uma quimera plena de romantismo. «Toda
a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar», escreveu Álvaro de Campos, «todos os lugares são o mesmo lugar, todas
as terras são a mesma». Al-Uxbuna é Lisboa, a nossa, com o Atlântico a
magnetizar-nos o olhar – ontem como hoje – e esta tenebrina tela, cujas armas
nacionais que podem ver-se em primeiro plano são como o tal «coração que tem que pulsar através da vigília
e do sono», quase nos faz esquecer o caos e o horror que uma guerra sempre
confina. Nem de propósito, falando em caos, ao ler-se a crónica de Osberno
fica-se com a ideia de que o desfecho foi mais rendimento do improviso que de
estratégia bem esboçada. Na verdade, a páginas tantas, D. Afonso Henriques tem
mais dificuldade em gerir as intrigas particulares das várias facções que o
acompanham – em principal a flamenga, liderada pelo conde Arnoldo de Aarschot:
personagem que parece obcecada em rapinar a égua do governante almóada da
cidade.
A data de 25 de Outubro é, de maneira
geral, indicada como sendo a da conquista da cidade, somente porque foi nesse
dia que D. Afonso Henriques passou triunfante pelos seus portões: nessa manhã
já começara o êxodo dos muçulmanos, mas à tarde, na alcáçova, na comparência do
rei, clérigos e cruzados, ergueu-se uma cruz na torre mais alta e celebrou-se o
êxito da expugnação com um Te Deum. É
nesta coincidência que reside a chave para decifrar-se o enigma da presença dos
santos gémeos Crispim e Crispiniano no quadro que nos relata esta história,
pintado para celebrar o quinto centenário da conquista de Lisboa, em 1647 –
data tornada ainda mais especial em virtude da restauração da independência a 1
de Dezembro de 1640. É que (no calendário litúrgico) o dia 25 de Outubro é o de
São Crispim e São Crispiniano. Merecem ser evocadas as palavras de Oliveira
Martins: «Lisboa, mais do que a capital
do reino, era a razão de ser da sua independência».
Comprova-se a existência da antiga
veneração prestada pela cidade a estes santos e que, mais tarde, a dinastia de
Avis – ela própria devendo tanto a Lisboa – recuperou numa altura em que os
nomes Crispim e Crispiniano começavam a ser deslembrados pelo povo: reis como
D. João II e D. Sebastião foram fervorosos adeptos do culto destes dois santos
e escreveram à câmara de Lisboa para que não descuidasse a procissão anual em
sua honra. Na carta escrita por D. Sebastião a 24 de Outubro de 1575, por
exemplo, pode ler-se: «E sendo esta
procissão e festa de tamanha obrigação e tão devida a estes santos mártires
pela mercê que Nosso Senhor fez à Cidade e a este Reino em seu dia e
por sua intercessão, o tempo foi gastando a lembrança e conhecimento dela (…) Pelo que vos encomendo muito e mando que
daqui em diante ordenais e façais esta procissão no dia destes santos mártires
a qual irá da Sé a São Vicente de Fora como sempre foi (…) para que vá em crescimento a lembrança e
devoção de tão grandes santos e da mercê e benefício que a Cidade recebeu em
seu dia». São Crispim e São Crispiniano foram interpretados como sendo os
símbolos efectivos da vitória da fé cristã sobre o credo muçulmano. É sedutor
observar que, cerca de cem anos depois do Concílio de Trento, este quadro, que
na sua umbrosidade e densidade pode ser definido como sendo protobarroco ou
prototenebrista (ao estilo do pintor lisboeta Gregório Antunes), agarra nas
premissas estipuladas nesse sínodo sobre a representação dos santos e eleva-as
a uma singular categoria.
É que a religião cristã nunca foi anicónica e a
iconografia hagiológica cumpre o papel de reforçar na imaginação dos crentes a
missão dos santos como seus intercessores diante de Deus. Na veneração dos
santos está, pois, implícito o próprio louvor a Deus, mas intermediado pelos
Seus eleitos: escolhidos pela santidade que demonstraram. Mas essa santidade
define-se pela marca de moralidade religiosa que detêm: é uma concepção que nos
diz que não nascemos “santos”, mas que poderemos sê-los se nos colocarmos ao
serviço de Deus, praticando a virtude num elevado grau de perfeição. O próprio
Cristo é referido como sendo o santo de Deus – e os cristãos também são
chamados de santos por pertencerem a Cristo (Romanos 1:7). Mesmo assim, os santos devem ser venerados (ou seja,
respeitados), mas não devem ser adorados. Nesse sentido, o culto dos santos não
traz a salvação, porque eles, apesar de todos os seus atributos, não são
divinos.
Porém, estes São Crispim e São Crispiniano
foram pintados num feitio inequivocamente divino – mais do que isso, parecem
genuinamente divertidos com a estultice espraiada em baixo, ao estilo de
deidades greco-romanas. O culto dos santos nasceu da perpetuação da memória dos
primeiros mártires cristãos, sendo que, em grego, a palavra mártir significa testemunha: os martirizados são-no, porque através do seu
sofrimento testemunham a Paixão de Cristo. Tal como os dois santos gémeos são
testemunhas da conquista de Al-Uxbuna. Em relação a este quadro, não deixa de
ser verdade que estamos longe da comum arte religiosa, mas também não pode
dizer-se que se trata de uma simples reconstituição histórica; o que é
espantoso, posto que é um quadro evocador da história pintado para estar
exposto numa igreja.