Neste período festivo devotado ao culto folclórico dos Santos Populares de Lisboa é fácil esquecer que outras sacralizadas figuras houve que, em tempos de antanho, foram idolatradas em vez de Santo António, São João ou São Pedro. Já falei aqui várias vezes dos irmãos Veríssimo, Máxima e Júlia, os três santos mártires de Lisboa (nos quais a antiga freguesia lisboeta de Santos-o-Velho – integrada na nova freguesia da Estrela, desde 2012 – guindou o seu nome); porém, também antigos, são os nomes de São Crispim e São Crispiniano: os dois santos gémeos de Lisboa, cuja importância nos primeiros tempos da reconquista da cidade tem sido esquecida. Vale a pena recordá-los, evocando-os a partir da sua representação mais significativa: a que se encontra plasmada na tela seiscentista de autor anónimo conservada no Museu de Lisboa (e cuja imagem aqui reproduzo).
Com dois metros e meio de altura e três
metros de largura, este quadro argumenta connosco sobre como
poderá ter sido a conquista de Al-Uxbuna, por D. Afonso Henriques, em 1147.
Escrevi “argumenta”, porque a sua imponência é impositiva: esta tela, que
preenche todo o campo de visão, não serve tanto para retratar a conquista da
cidade, como para celebrar a dedicação desta aos santos mártires São Crispim e
São Crispiniano. Segundo o hagiológio, estes irmãos romanos foram martirizados
em finais do século III, no período das perseguições imperiais ao cristianismo,
na cidade de Soissons onde trabalhavam com peles, estando ainda por decidir se
foram peliteiros, surradores, sapateiros ou correeiros – a dúvida é
prerrogativa dos homens, mas, por vezes, também beneficia os santos, porque em
vez de remetê-los para um canto nublado da hagiografia, esta indefinição tornou
estes gémeos os padroeiros de todos os ofícios que têm o couro como
matéria-prima. Podemos vê-los no canto superior esquerdo da tela, sentados no
regaço das nuvens e agarrando as palmas – símbolos de martírio –, enquanto
olham com entusiasta aprovação para o abalroamento das portas da cidade pelas
milícias cristãs, compostas por cavaleiros portugueses e cruzados
norte-europeus arrebanhados na cidade do Porto, no âmbito da (fracassada)
Segunda Cruzada, instigada pelo papa cisterciense Eugénio III para recuperar o condado
de Edessa (criado durante a Primeira Cruzada).
O quadro é uma quimera plena de romantismo. «Toda
a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar», escreveu Álvaro de Campos, «todos os lugares são o mesmo lugar, todas
as terras são a mesma». Al-Uxbuna é Lisboa, a nossa, com o Atlântico a
magnetizar-nos o olhar – ontem como hoje – e esta tenebrina tela, cujas armas
nacionais que podem ver-se em primeiro plano são como o tal «coração que tem que pulsar através da vigília
e do sono», quase nos faz esquecer o caos e o horror que uma guerra sempre
confina. Nem de propósito, falando em caos, ao ler-se a crónica de Osberno
fica-se com a ideia de que o desfecho foi mais rendimento do improviso que de
estratégia bem esboçada. Na verdade, a páginas tantas, D. Afonso Henriques tem
mais dificuldade em gerir as intrigas particulares das várias facções que o
acompanham – em principal a flamenga, liderada pelo conde Arnoldo de Aarschot:
personagem que parece obcecada em rapinar a égua do governante almóada da
cidade.
A data de 25 de Outubro é, de maneira
geral, indicada como sendo a da conquista da cidade, somente porque foi nesse
dia que D. Afonso Henriques passou triunfante pelos seus portões: nessa manhã
já começara o êxodo dos muçulmanos, mas à tarde, na alcáçova, na comparência do
rei, clérigos e cruzados, ergueu-se uma cruz na torre mais alta e celebrou-se o
êxito da expugnação com um Te Deum. É
nesta coincidência que reside a chave para decifrar-se o enigma da presença dos
santos gémeos Crispim e Crispiniano no quadro que nos relata esta história,
pintado para celebrar o quinto centenário da conquista de Lisboa, em 1647 –
data tornada ainda mais especial em virtude da restauração da independência a 1
de Dezembro de 1640. É que (no calendário litúrgico) o dia 25 de Outubro é o de
São Crispim e São Crispiniano. Merecem ser evocadas as palavras de Oliveira
Martins: «Lisboa, mais do que a capital
do reino, era a razão de ser da sua independência».
Comprova-se a existência da antiga
veneração prestada pela cidade a estes santos e que, mais tarde, a dinastia de
Avis – ela própria devendo tanto a Lisboa – recuperou numa altura em que os
nomes Crispim e Crispiniano começavam a ser deslembrados pelo povo: reis como
D. João II e D. Sebastião foram fervorosos adeptos do culto destes dois santos
e escreveram à câmara de Lisboa para que não descuidasse a procissão anual em
sua honra. Na carta escrita por D. Sebastião a 24 de Outubro de 1575, por
exemplo, pode ler-se: «E sendo esta
procissão e festa de tamanha obrigação e tão devida a estes santos mártires
pela mercê que Nosso Senhor fez à Cidade e a este Reino em seu dia e
por sua intercessão, o tempo foi gastando a lembrança e conhecimento dela (…) Pelo que vos encomendo muito e mando que
daqui em diante ordenais e façais esta procissão no dia destes santos mártires
a qual irá da Sé a São Vicente de Fora como sempre foi (…) para que vá em crescimento a lembrança e
devoção de tão grandes santos e da mercê e benefício que a Cidade recebeu em
seu dia». São Crispim e São Crispiniano foram interpretados como sendo os
símbolos efectivos da vitória da fé cristã sobre o credo muçulmano. É sedutor
observar que, cerca de cem anos depois do Concílio de Trento, este quadro, que
na sua umbrosidade e densidade pode ser definido como sendo protobarroco ou
prototenebrista (ao estilo do pintor lisboeta Gregório Antunes), agarra nas
premissas estipuladas nesse sínodo sobre a representação dos santos e eleva-as
a uma singular categoria.
É que a religião cristã nunca foi anicónica e a
iconografia hagiológica cumpre o papel de reforçar na imaginação dos crentes a
missão dos santos como seus intercessores diante de Deus. Na veneração dos
santos está, pois, implícito o próprio louvor a Deus, mas intermediado pelos
Seus eleitos: escolhidos pela santidade que demonstraram. Mas essa santidade
define-se pela marca de moralidade religiosa que detêm: é uma concepção que nos
diz que não nascemos “santos”, mas que poderemos sê-los se nos colocarmos ao
serviço de Deus, praticando a virtude num elevado grau de perfeição. O próprio
Cristo é referido como sendo o santo de Deus – e os cristãos também são
chamados de santos por pertencerem a Cristo (Romanos 1:7). Mesmo assim, os santos devem ser venerados (ou seja,
respeitados), mas não devem ser adorados. Nesse sentido, o culto dos santos não
traz a salvação, porque eles, apesar de todos os seus atributos, não são
divinos.
Porém, estes São Crispim e São Crispiniano
foram pintados num feitio inequivocamente divino – mais do que isso, parecem
genuinamente divertidos com a estultice espraiada em baixo, ao estilo de
deidades greco-romanas. O culto dos santos nasceu da perpetuação da memória dos
primeiros mártires cristãos, sendo que, em grego, a palavra mártir significa testemunha: os martirizados são-no, porque através do seu
sofrimento testemunham a Paixão de Cristo. Tal como os dois santos gémeos são
testemunhas da conquista de Al-Uxbuna. Em relação a este quadro, não deixa de
ser verdade que estamos longe da comum arte religiosa, mas também não pode
dizer-se que se trata de uma simples reconstituição histórica; o que é
espantoso, posto que é um quadro evocador da história pintado para estar
exposto numa igreja.