sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Espectáculo de apresentação de «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense»


O espectáculo de apresentação de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense terá lugar na Biblioteca Municipal Camões, no dia 29 de Setembro (Sábado) às 17H00: com interpretação de David Soares e música de Charles Sangnoir.

A Biblioteca Municipal Camões situa-se no Largo do Calhariz (nº17, 1ºandar), em Lisboa, local pleno de significado para esta apresentação, pois foi aqui que a Estanqueira do Loreto, uma das personagens principais de Os Anormais, passou os seus últimos anos de vida.

Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense é um spoken word com textos e voz de David Soares e música de Charles Sangnoir. Uma obra erudita e negra, sobre os indivíduos deformados e excêntricos que viveram em Lisboa, na qual se une o rigor da História à poesia do Mito. Ao longo dos seus quatro capítulos (Terra Incógnita, O Plutão da Pena, A Lua do Loreto e Sol Invicto), é-se conduzido através dos volutabros imaginais de Lisboa: lugares simultaneamente trágicos e luminosos, habitados por personagens como o Anão dos Assobios e a Estanqueira do Loreto. Uma viagem inesquecível, mágica e transformadora.
Uma edição conjunta da Necrosymphonic Entertainment e da Raging Planet.


terça-feira, 28 de agosto de 2012

«Terra Incógnita», o primeiro capítulo de «Os Anormais» + Pré-venda


Terra Incógnita, o primeiro capítulo de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, já está disponível integralmente para audição no site da editora Necrosymphonic Entertainment: http://necrosymphonic.bandcamp.com/track/terra-inc-gnita

Na mesma página, também se encontra disponível a ligação para pré-encomendas do disco. Spoken word erudito com textos e voz meus e música de Charles Sangnoir (de La Chanson Noire), este título é uma viagem mágica que vai transformar as vossas almas. Atrevam-se, pois, a convidar «Os Anormais».

Uma edição conjunta Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte


Segue-se a segunda parte da entrevista extensiva e exclusiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Continua-se a desvendar os segredos (alguns) por trás da obra de Macedo, assim como a filosofar sobre muitos outros assuntos. A conversa continuará na terceira parte.


Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte

David Soares – Lá está, mas isso inscreve-se no que eu disse há pouco: de o seu experimentalismo estar ao serviço da voz autoral e do tom do filme.

António de Macedo – Como os actores começam a conversar naturalmente entre eles…

DS – Já o espectador está enlevado na narrativa…

AdM – Já está. Já foi apanhado na rede. Já não se ri, porque, entretanto, aquilo entrou “de pantufas”, ele não dá por isso. Isso é um aspecto. O segundo aspecto… Percebi, também, que os actores não podiam… Ou melhor, que eu não deveria captar o som directo, porque eles representavam como se estivessem no teatro. Representavam assim, porque os actores que a gente tinha eram de teatro. Hoje, com a proliferação das telenovelas e independentemente dos seus óbvios defeitos, surgiu uma geração de actores jovens mais desinibidos diante das câmaras, sem os tiques inerentes à teatralidade. Mas naquele tempo não era assim, o “actor de teatro” só raramente fazia cinema. Ora, o actor de teatro projecta a voz. Como dizem os próprios actores de teatro, a voz pode ser colocada na cabeça, pode ser colocada no peito ou pode ser colocada no estômago. Quando a voz é colocada na cabeça é para ser atirada para a última fila da plateia. Quando a voz é posta no estômago cria-se aquela voz íntima, não é?, que eles usam para falar ao pé uns dos outros. Isto em teatro funciona, dentro de certos limites, mas não funciona em cinema. Em cinema, a voz… a voz não é para estar na cabeça, nem no peito, nem no estômago — a voz tem de estar “no microfone”. E, então, eu dizia aos actores… até por uma questão de expressão visual… Se a pessoa fala mais alto a própria expressão visual acompanha-a, se a pessoa coloca a voz mais baixa, e fala de uma maneira íntima, a expressão visual também a acompanha. É preciso ter cuidado com isso, portanto, todos os meus filmes são dobrados. Tomei essa decisão: “vou dobrar os meus filmes todos”.

DS – Isso foi algo que, na altura, também concorreu para a tal desapreciação crítica dos seus filmes? Porque havia um certo preconceito contra…

AdM – Contra a dobragem.

DS – Uma espécie de cartilha Dogma “avant la lettre”

AdM – Exactamente.

DS – Tudo o que não fosse captado em directo era muito criticado.

AdM – Era mal visto, exactamente. Até porque depois dos bons filmes dos anos 30 com o Vasco Santana, a Beatriz Costa, o António Silva, o Ribeirinho, a Maria Matos… eram todos em som directo porque essa plêiade de actores era muito boa, e eles aguentavam a representação em som directo muito bem… mas depois vieram os “maus” filmes “sérios” dos anos 40 e 50, e até 60, com actores de menor envergadura, e esses filmes passaram a ser dobrados porque saía mais barato durante as filmagens, filmar sem a sobrecarga das aparelhagens de captação de som, mas eram muito mal dobrados, a boca dos actores mexia por um lado e o som saía por outro, e era insuportável de se ver. E eu fui em contra-corrente, decidi dobrar os meus filmes mas rodeei-me de cuidados especiais, como por exemplo ter sempre o cuidado de, durante as dobragens, colocar as vozes dos actores nos tons certos e nos sítios certos… Nas dobragens é mais fácil controlar as vozes dos actores, porque eu, quando estou a filmá-los, eles estão no cenário, estão a representar, falam e é difícil estar sempre em cima deles para controlar as vozes. Eu não estava com essa preocupação, porque dizia-lhes o seguinte: “vocês falem sempre em voz baixa”. Mas eles queriam que eu os ouvisse… Ora, eu era o realizador, estava ao pé da câmara, no limite do plateau, e eles, os actores, estavam em pleno plateau, um bocado mais longe… E eu respondia-lhes: “mas eu não vos quero ouvir”. E eles: “então, como é que sabes se a gente está a fazer bem?” E eu: “basta-me ver o vossos movimentos e já sei se estão a fazer bem ou não”. Isso fazia-lhes muita confusão à cabeça. Eles queriam representar para mim: como não tinham um público, estavam habituados à plateia e para eles, ali, a plateia era o realizador. “Sim, estou aqui longe, atrás da câmara”, dizia-lhes, “não se preocupem comigo. Vocês têm aí ao pé as pessoas com quem estão a contracenar, estão mesmo aí junto de vocês, têm de falar para elas”. O truque que eu utilizava era dizer aos meus actores: “Vocês falem da seguinte maneira, façam de conta que está aqui mesmo ao lado um bebé a dormir. Vocês têm de falar de maneira que os vossos colegas vos ouçam, mas sem acordarem o bebé.” E este truque funcionou. Eles começavam a representar de uma maneira muito mais… em “underacting”

DS – Sem caricaturar.

AdM – Sem caricaturar. Que é a tendência do actor de teatro da velha escola.

DS – No teatro tem de exagerar-se ou o público não se apercebe.

AdM – Não se apercebe, tem de ser tudo muito marcado. O próprio teatro é um exagero, tudo aquilo é convencional, por isso, aí, está tudo certo. Mas em cinema, não. Depois, quando chegava à dobragem é que eu os controlava. Punha-lhes o microfone mesmo à frente, colocava-lhes a voz mesmo onde eu queria.

DS – Para eles deve ter sido algo um bocado surrealista.

AdM – Foi um bocado surrealista, mas adaptaram-se facilmente. Curiosamente, nunca tive problemas com os meus actores. Todos eles perceberam, perfeitamente, e adaptaram-se. Até houve um actor do «Chá Forte Com Limão»

DS – O actor francês que foi dobrado por um português?

AdM – O Jean-Pierre Cassel? Não, não foi ele.

DS – Dá-me ideia que há partes em que aquilo que o Cassel está a pronunciar equivale ao texto em português. Ele representou em português?

AdM – Não. Representou em francês. Traduz-se o guião para o actor falar em francês, porque se ele falar em português, como o actor não é português, perde a naturalidade e fala um português com o ritmo todo trocado, ficam as sílabas fora dos sítios, e o resultado é muito mau. Portanto, o actor francês fala em francês. Depois, vem um especialista… Sobretudo, em França faz-se isto muito bem… Vem um especialista que vê quais são as labiais, quer dizer os pontos de contacto, porque as labiais permutam-se: o “b” de “bota, o “m” de “Mafra” e o “p” de “palhaço”, têm todos a mesma colocação labial. Por isso, torna-se fácil substituir palavras. Num texto falado em francês, o especialista procura as labiais, que são os pontos de contacto, são os vários “ganchos”, e, depois, limita-se a colocar labiais portuguesas nesses sítios, sejam elas quais forem. Repare: se ficar à frente de um espelho e articular mudo a palavra “pai” estando por cima o som da palavra “mãe” verá que os movimentos dos lábios são iguais. O “p” e o “m” são labiais e, como o são, tanto faz ouvir um como ou outro. A expressão visual é a mesma, tanto faz pôr o som de “pai” como o som de “mãe”, portanto eu, na dobragem, posso fazer a aldrabice que quiser. E é assim que se faz. Mas estava a dizer que havia um actor, que vinha do teatro e que tinha a tendência para colocar a voz na cabeça, digamos assim… E quando fomos dobrar o filme… Ele até a falar, naturalmente, é assim. Eu disse-lhe: “estás com a voz muito alta e eu não quero isso”. Expliquei-lhe como queria e ele respondeu: “Ah, já sei o que queres. Que chatice, isso agora obriga-me a uma preparação… Só te peço um favor. Vou pedir-te meia-hora. Arranja-me aí um sítio sossegado para eu fazer uma preparação de treino de voz”. Disse-lhe para ele colocar a voz no estômago, o mais abaixo possível. “Repara”, disse-lhe, “estás a fazer um papel romântico, de D. Juan apaixonado, estás a interessar-te pela rapariga… Se pões uma vozinha muito alta ninguém acredita em ti, ninguém te leva a sério”. Ele fechou-se durante meia-hora num cubículo na Nacional Filmes, lá onde ficava o estúdio de som, e, no final, apareceu com uma voz óptima, parecia mesmo a voz de um galã. E eu fiz a dobragem impecavelmente. Ou seja, isto é só para dizer que todas estas partes técnicas (desde a direcção de actores), ao serviço de um determinado tipo de intenção, tudo isso foi, realmente, conseguido ao longo de anos de experiência e sempre com a preocupação de obter o resultado mais eficaz para o ponto de vista do espectador. Aquilo que, desse ponto de vista, fosse mais eficaz para transmitir a sensibilidade que eu queria que fosse transmitida, fosse num mundo fantástico, fosse num mundo real. E isso obtém-se através da tecnologia. Foi por isso que eu tive de aprender como funcionava muita tecnologia, em termos de cinema. Daí os meus filmes terem um aspecto técnico muito apurado, tão apurado quanto possível dentro das limitações que nós temos. Sempre entendi que o som é uma componente fundamental do cinema.

DS – E uma que, na maioria dos filmes portugueses…

AdM – É desprezada.

DS – É desprezada. A maioria dos filmes tem um som miserável.

AdM – Tem um som miserável. Parece que os realizadores são surdos…

DS – Será uma consequência da hegemonia do tal som directo?

AdM – Eventualmente, será… Penso que eles serão mais visuais que auditivos. Até porque, repare…

DS – Mas o António tem formação musical, logo tem uma sensibilidade diferente.

AdM – Tenho, exactamente. Isso tem muita importância. Reconheço-o, perfeitamente. Aliás, o meu filho, o António de Sousa Dias, que é músico – formou-se em música, é musicólogo e compositor, que sempre foi a vocação dele, desde muito novo – e trabalhou comigo durante muitos anos, diz que aprendeu muito comigo, e eu, mais tarde e com o trabalho conjunto, aprendi muito com ele… Temos falado muito sobre isso. O nosso trabalho sempre foi de grande cumplicidade. Ele começou por fazer alguns filmes comigo, para a televisão, pequenos documentários, e o primeiro filme de longa-metragem que ele fez comigo foi «Os Abismos da Meia-Noite», que tem uma qualidade de som extraordinária. Ele fez a música de fundo e os efeitos sonoros que se ouvem no filme, que foi uma coisa que ele delirou em fazer, para a criatividade dele foi excelente. E isso tem a ver, exactamente, com a preocupação que eu sempre tive – e, felizmente, encontrei da parte dele uma colaboração fabulosa – sobre a importância que o som tem no cinema. Os meus colegas vêm todos de uma geração… os meus colegas do meu tempo, porque os mais jovens já têm outra visão, diferente… mas os realizadores da geração de cinquenta, sessenta, até setenta, ainda vinham com a velha escola de que o sonoro é uma deformação, uma deficiência do mudo. O cinema mudo é que era o verdadeiro cinema.

DS – Ainda estavam arreigados a essa visão?

AdM – Estavam. Havia uma frase que eles diziam: “o cinema quanto mais mudo, e mais preto e branco, melhor”. O cinema a cores era mal visto. Você não faz ideia da dificuldade que eu tive para tentar impor os meus filmes a cores aqui em Portugal. Embora já cá houvesse alguns filmes a cores… Uns documentários com uma cor muito “ranhosa”… E eu, pela primeira vez, comecei a trabalhar a cor em cinema como uma forma de arte. As filtragens que se usavam nas étalonnages dos filmes… aproveitei-as para criar novos cromatismos, alguns até aberrantes… comecei a trabalhar isso como uma forma de arte. Tive a sorte de encontrar uma colaboradora excelente, que era a Teresa Ferreira, no laboratório da Ulyssea Filme. Ela tinha formação artística, estudara na Escola António Arroio, e, então, percebeu o que eu queria fazer e entusiasmou-se. Mas, realmente, havia esse preconceito contra o som e a cor: quanto mais mudo e preto e branco, melhor. Havia até um famoso teórico francês, muito citado na altura pelos meus colegas, que dizia: “Olhemos para o fotograma. A imagem no filme, correspondente ao fotograma, tem uma certa área, a pista de som é um milímetrozinho marginal. A importância do som, num filme, deve estar em proporção”. A imagem ocupa oito ou nove décimos de um fotograma e só um décimo é que é ocupado pelo som. Eu dizia que a relação tinha de ser, no mínimo, de cinquenta para cinquenta. Tinha de haver um equilíbrio. Isto criou, naturalmente, um mal-estar. Mas eu apercebi-me que muita gente nem sequer ouvia os meus filmes… Quando eu digo “ouvia”, quero dizer que não percebia o experimentalismo acústico, sonoro, que eu estava a fazer. Quando fiz, por exemplo, o «Domingo à Tarde»… Este filme não tem música de fundo, aliás só tem uma música, na cena do cabaret, que é uma música de cena. Não é de fundo. As pessoas dançam, ouve-se a música, ela faz parte da cena… Lá está, é um filme sem música de fundo… Tive de ter um cuidado muito grande com os chamados ruídos e efeitos de som, tive de orquestrar os sons. A diferença entre a música de fundo e a música de cena é que esta ouve-se quando algo em cena está a produzi-la, uma orquestra, um gira-discos, etc., mas a de fundo é a chamada “orquestra invisível”. Ninguém sabe quem a toca, nem de onde vem… E eu decidi que não queria música de fundo no meu primeiro filme: decidi que iria orquestrar os ruídos. E toda a ambiência sonora que o filme tem, toda a sua “música de fundo”, entre aspas, são ruídos naturais, hospitalares, as máquinas dos raios-X… Todos esses ruídos são orquestrados. A partir daí, comecei a perceber que tinha de fazer partituras com os ruídos. Com a Banda de Ruídos A, a Banda de Ruídos B, a Banda de Ruídos C, a Banda de Ruídos Não-sei-quê, com os passos, as vozes, tudo tinha de estar orquestrado. Tinha de se fazer, como se dizia na rádio nessa época, uma sonoplastia. Aquilo que hoje, em cinema, se chama “sound design” e que, cá em Portugal, não se fazia a mais pequena ideia do que era. Quando realizei o «Sete Balas Para Selma», o meu segundo filme, que já tem música de fundo, digamos assim, a sonoplastia que eu fiz tinha dezassete ou dezoito bandas de som: era de tal maneira que foi dos meus filmes mais complexos em matéria de bandas de som, na mistura final tinha uma orquestração de sons diferentes que nunca mais acabava. E eu, depois de ter esse trabalho todo, pus no fim, no genérico, “montagem e sonoplastia de António de Macedo”. Você não faz ideia do que eu fui gozado! Diziam os meus colegas: “Sonoplastia? Mas que pretensioso! O que é isso? Sonoplastia é na rádio, fazem para lá uns barulhos…” Por isso, quando eu dizia “eu faço sonoplastia nos meus filmes”, era um nome que no cinema nem sequer havia em Portugal: era um termo técnico da rádio que eu fui buscar pela primeira vez para aplicar aquilo que estava a fazer em cinema. Hoje, a sonoplastia, o “sound design”, foi guindada a uma categoria extraordinária, mas antigamente ninguém lhe ligava, era uma coisa abjecta, era uma coisa menor. Eu fui insultado… não fui insultado, fui gozado: riram-se de mim. “Ah, ah, ah! Sonoplastia? Mas que pretensioso! Que disparate tão grande, isso não existe. Isso não é nada.” Nem se aperceberam da quantidade de bandas de som que esse filme tinha, que tinha uma orquestração de ruídos extraordinária. Não “ouviram”. Um filme meu, aparentemente simples, só com três actores, «As Horas de Maria», até foi o filme que mais trabalho me deu com o som, por causa da diversidade dos muitíssimos “pequenos” sons que tem, entre eles a bengala da ceguinha, da Maria. Cada vez que a bengala toca no chão, ouve-se o barulho que ela faz. Tive de colocar esses barulhos um a um: os da bengala, dos passos dela, os ruídos que ela faz quando toca nos objectos, o do vento, o do armário metálico, e tantos outros… Nesse filme todos os sons são fabricados em estúdio, não há nenhum que seja natural. É tudo posto nos sítios certos, com as intensidades próprias, com mais ou menos efeitos de eco, para criar uma musicalidade, digamos assim. É sempre essa a preocupação. Mas eu, ao longo da minha carreira, apercebi-me que nenhum crítico conseguiu “ouvir” os meus filmes. Hoje, felizmente, há uma nova geração de espectadores (e de jovens críticos) muito treinada nas tecnologias de som postas ao nosso alcance, e as pessoas compreendem a complexidade de som que há nos meus filmes, e as intenções de som que estão por ali, mas naquele tempo ninguém “ouviu”.

DS – Esse filme, «As Horas de Maria», foi polémico. Suscitou reacções bastante encaloradas. Isso faz-me pensar no seguinte: os filmes do António são sempre muito subversivos, mas a subversão é sempre introduzida por indivíduos que ocupam posições instituídas. Nesse filme temos um médico “heterodoxo”, representado pelo João D’Ávila…

AdM – Um médico descrente.

DS – …em «Os Emissários de Khalôm» temos os cientistas, os empresários… Temos o professor de história de «Os Abismos da Meia-Noite»… Ou seja, tem-se sempre a presença de figuras de “autoridade”, entre aspas, que poderiam muito bem estar ao serviço de um determinado status quo, mas que, nos seus filmes, são, afinal, as figuras que trazem a subversão.

AdM – Exacto. Isso é a malandrice.

DS – Também deve ter concorrido para haver muitas reacções encaloradas.

AdM – Algumas das críticas que me fizeram foram as de que eu queria fazer passar uma ideia de autenticidade, utilizando, precisamente, essas figuras de autoridade. De “autoridade”, entre aspas, quer dizer, de autoridade convencional, não é? Em «As Horas de Maria» o médico diz uma frase que os críticos não gostaram nada, que é a de que “eu até sou mais competente como arqueólogo do que como médico”, porque ele dedicava-se ao estudo dos manuscritos antigos. Houve até um crítico que disse que “pois, o que o Macedo quer dizer com aquilo é que aquele médico, como é mais competente como arqueólogo, está a destruir a tradição cristã com autoridade.” Com autoridade “arqueológica” e não apenas como um individuo qualquer que se lembrou de dizer o que disse. E isso vale para as outras personagens todas, no fundo. De facto, é verdade, é essa a ideia. Essa subversão é uma dupla subversão. Não é apenas a subversão do contestatário: é a subversão vinda de dentro da instituição.

DS – Nos seus filmes, mesmo nos mais próximos de um certo realismo, é inegável que há um forte substrato alegórico que, no mínimo, para a percepção do espectador, é sempre cada vez mais elevado a cada novo filme. Mas até que ponto é que não existe, também, um esoterismo subversivo, chamemos-lhe isso? Nos seus filmes é frequente aparecerem, falando numa linguagem de iniciação, “maus iniciados” e “bons profanos”. Pelo menos no meu ponto de vista. Por exemplo… «O Princípio da Sabedoria» pareceu-me ser um filme sobre "anti-iniciação". Ou sobre uma "falsa iniciação", levada a cabo pelos desejos materialistas, e pelo egoísmo mais elementar, encerrados na personagem do arquitecto, interpretada pelo Sinde Filipe. O Jardim é o local por excelência da iniciação, não é?, o adepto vai percorrendo esse local, mais ou menos concêntrico, até ser coroado pela Bem-Aventurança e partilhar do domínio dos deuses, mas no seu filme o iniciado, neste caso seria o arquitecto, “perde a coroa”, entre aspas, ou seja: vai despojando-se até acabar os seus dias como desgraçado "falso iniciado", condenado a pedinchar paliativos materiais. Quem, realmente, beneficia do Jardim são aqueles que procuram, sem segundas intenções, os objectos de suas preocupações – aqueles que, no fundo, dominam, sem terem consciência disso, sequer, a arte da percepção. Eles percepcionam que no Jardim se encontra aquilo que procuram, embora sem terem lá estado, pelo menos a maioria deles. No final, o arquitecto, em vez de ser recebido pelos deuses, é abandonado pelos serventes, naquela cena pesadelar em que ele regressa da vila, à noite – e que é um espelho invertido e irónico do ágape que lhe estaria reservado se ele tivesse tido outra arte de percepcionar. A reunião no final do filme, com todas as personagens, é, nesse sentido, simbólica, porque demonstra que nem tudo estará perdido, se houver verdadeira vontade. Vontade e arte de lá chegarem.

AdM – A sua interpretação deu-me uma visão da anti-iniciação do arquitecto – do "candidato"? – curiosamente inesperada: o Jardim como local mágico de todas as maravilhas possíveis e impossíveis, até à anti-iniciação como uma espécie de cúmplice duma entropia que finge querer negar-se a si própria, múltiplos registos se nos apresentam que, no fundo, simbolizam o infinito reservatório de todas as escolhas que temos pela frente e das quais apenas uma nos serve... e o busílis está em adivinharmos qual.

DS – Agora fiquei a pensar no conceito de "anti-iniciação", pois tudo tem o seu contrário: matéria e anti-matéria, catástrofe e eucatástrofe… Então e iniciação e anti-iniciação?
Mas, a existir, teria de ser uma "verdadeira" anti-iniciação: ou seja, algo que despoje e não algo que acrescente. Embora mestre do seu Jardim, o arquitecto parece imune, e até cego, ao maravilhoso que dele emana, preocupando-se antes com questões completamente materialistas, aquela rotina doentia – uma espécie de Usher mais enérgico, mas não menos mórbido. Ele não percorre o Jardim: deixa que outros o percorram por ele e é esse exercício que o vai tornando num anti-iniciado, até acabar despojado e abandonado no final, num reverso irónico do ágape no patamar dos deuses que seria a recompensa do iniciado perfeito.

AdM – Lembro-me, desde o tempo em que estudava René Guénon, cujos livros absorvi todos, da minha discordância do seu rígido "transcendentalismo metafísico", embora reconhecendo o seu grande contributo para uma correcta sistematização das "ciências esotéricas". Uma das coisas que me irritava era o seu conceito de anti-iniciação, que para Guénon se identificava com os métodos da psicanálise freudiana, mergulho fatal num reino de trevas (o inconsciente) e, por conseguinte, tratar-se-ia de uma "iniciação satânica", ou anti-iniciação. Ora, estou de acordo em considerar que a verdadeira iniciação é algo que acrescenta, ao passo que a anti-iniciação de Guénon não é algo que despoja, mas algo que apenas desvia – e desvia numa trivial convencionalização satânica que, verdadeiramente, não vai ao fundo das coisas, nem sequer pela inversa!

DS – Confesso que não estava a pensar no Guénon quando falei na anti-iniciação, porque ele é um autor algo distante no meu horizonte referencial, confesso, assim como o seu ponto de vista sobre este assunto, essencialmente antagónico da via ortodoxa, não se relaciona em nada com o que imaginei ao ver o seu filme. A minha ideia é mais a de uma força sorvedoura que despoja os indivíduos daquilo que eles já têm: uma espécie de travessia às avessas no Jardim. Saliento também o encontro do arquitecto com o Bom Filósofo, ou o Bom Mago, aquele que tanto recusa ser da "mão esquerda" que até chega a decepá-la. No fundo, o mundo contemporâneo é hostil à iniciação e é altamente conveniente à anti-iniciação: os indivíduos parece que caminham às avessas no Jardim, ou seja parece que começam com tudo – já coroados, não é? – e vão, aos poucos, retrocedendo e despojando-se do pouco que já eram, sem crescerem, sem frutificarem. É assustador pensar nisto, de facto, mas poderá ser um retrato não muito distante da verdade que se observa todos os dias. Por isso… Até essa sua face esotérica, chamemos-lhe isso, para simplificar, é igualmente subversiva.

AdM – É efeito do contraste. É o trabalhar por contrastes. Quero eu dizer… Como é que o ouro se revela “o ouro”? Há uma pedra de contraste que os joalheiros usam, que consegue riscar todos os metais, mas que não risca o ouro… E eu, ao trabalhar na zona do contraste, estou a tentar mostrar que o ouro é ouro. Não sei se me faço entender… Portanto, a minha preocupação ao criar essa ideia de contraste é para revelar o verdadeiro ouro. Revelado, é claro, por esse próprio contraste. Logo na Bíblia percebemos que a Luz vem das Trevas, há logo esse contraste inicial. Vamos lá a ver, quando lemos o «Génesis», esquecemo-nos de que é um livro religioso: aquelas histórias são mitologias paleo-hebraicas, da Idade das Trevas, do princípio dos tempos, de um primitivismo muito grande. A gente diz “é primitivo, é primitivo”… Não, atenção, os primitivos tinham, talvez, um outro tipo de visão, mais límpida, não sei… Nós, hoje, já temos uma visão muito contaminada por muita coisa. E quando eles dizem que das Trevas surgiu a Luz há aí qualquer coisa de profundo, nesse contraste: a Luz que nasce do coração das Trevas. E a ciência, de certa maneira, veio um bocado confirmar isso, com a teoria do "Big Bang", quando diz que do Caos, portanto do Ponto Zero, surgiram as primeiras partículas que foram os fotões! Ora, como é que o raio de um tipo que escreveu a Bíblia sabia que os fotões apareceram primeiro? E, mais ainda, quando ele começa a descrever, também na Bíblia… e não é por ser na Bíblia, porque eu esqueço-me que aquilo é um livro religioso… eu admiro-me é como num livro que podia ser sumério ou asteca, escrito há milhares de anos, houve alguém que escreveu aquilo, alguém que teve a luminosidade de perceber que no primeiro dia surgiu a luz, foi logo no primeiro dia que a divindade disse “Faça-se a luz”, e só no segundo e no terceiro dias é que foram surgindo isto e aquilo, mas o Sol só surgiu no quarto dia! Ora, para aquela gente… um raciocino à “cientista” actual… para aquela gente, o Sol é que era a única fonte de luz, por isso como é que este estúpido disse que a luz surgiu no primeiro dia e, depois, colocou o Sol a surgir no quarto dia? Isto não é um disparate completo? Bom, se nós virmos a cronologia cosmológica dada pela ciência contemporânea e se dividirmos os sete dias em milhões de anos, digamos assim…

DS – São dias alegóricos. Simbólicos.

AdM – São dias alegóricos. E, aí, descobrimos que a nossa galáxia só surgiu no “quarto dia”, entre aspas. Não sei se me faço entender… Os primitivos não lhes chamavam fotões, nem eles sabiam nada disso, mas tinham conhecimento de qualquer coisa, e isso é extremamente interessante. Realmente, é essa ideia de que não há Luz sem Trevas… De que sempre que há luz há sombra… a própria luz provoca sombra… Se não houver o Mal eu não sei o que é o Bem e se não houver o Bem eu não sei o que é o Mal e assim sucessivamente. Começamos a ficar inquietos, porque percebemos que para apreciarmos o Bem tem de haver o Mal – então, isso é horrível. Olhamos à nossa volta e vemos coisas horríveis, guerras, morticínios, genocídios, crimes de todas as ordens, das mais horrorosas. E, depois, a seguir, vemos as flores, os passarinhos, a Primavera, a beleza, um sorriso de criança… Mas será possível que para eu apreciar um sorriso de criança tenho de, a seguir, ver um espectáculo horrível de outras crianças a serem espetadas com baionetas por soldados? Isto é muito esquisito: estas Trevas de um lado e a Luz do outro. Como é que é possível? Mas isso co-existe e eu interrogo-me. É a interrogação dos meus filmes – esse tal esoterismo, que é revelado nesse tal contraste, é, de facto, uma pergunta. No fundo, repare, todos os meus filmes terminam em forma de ponto de interrogação. Eu não faço afirmações dogmáticas. Mesmo quando parece que o filme acaba, e acaba bem, fica sempre uma pergunta. Em «As Horas de Maria», no final, a freira vai-se embora…

DS – A Maria é a alma humana, atrofiada pela Igreja.

AdM – Pela Igreja. E pelo médico… Pelo dois! Pelos dois dogmatismos fanáticos, o religioso e o materialista… Mas pela Igreja, sobretudo. A freira é que a mata, não é? Reza-lhe a extrema-unção e ela morre. Mas morre banhada em luz. Não sei se se vê nesta cópia que foi usada… que a luz aumenta.

DS – Sim.

AdM – Mas termina em ponto de interrogação… Todos os meus filmes terminam dessa forma. Há um em que isso é descarado, é o «Nojo aos Cães», em que no final a palavra FIM aparece mesmo com um ponto de interrogação: “FIM?”. Em «Os Abismos da Meia-Noite», que termina em apoteose, o Grande Contemplador vira-se para o Magister, que estava à espera de ser promovido, e diz-lhe “agora vamos esperar mais uns séculos até ver” e o outro fica com um ar… “Então, espera lá? E, agora, a seguir a isto?... E a próxima rosa?... Terá mais sorte que esta?” Todos os meus filmes terminam com uma pergunta. No fundo, o meu problema é esse: é a Pergunta. Aliás, já o Almada-Negreiros dizia… Cito isso no meu filme sobre o Almada, aquela frase dele, do livro «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro», em que, no fim, o Anjo da Guarda diz que a tua pergunta está tão bem perguntada, que se pensares mais um bocadinho tens já a resposta a seguir”. A própria resposta está contida na pergunta bem perguntada: o problema não está em responder, o problema está em bem perguntar. E a minha preocupação, nos meus filmes, é bem perguntar. Como é que se faz a pergunta? Pode-se fazer a pergunta malfeita – e se eu fizer a pergunta malfeita obtenho uma resposta estúpida. Ou melhor, uma resposta correcta em relação à pergunta feita, mas acaba por me levar pelo caminho errado. Estou-me a lembrar de um exemplo disso, que aconteceu com o meu filme «A Promessa», que é um exercício de sociologia aplicada… Eu parto da peça do Bernardo Santareno, mas reformulei e reinterpretei a peça e eu próprio fui para o local… fui para os Palheiros da Tocha e para os Palheiros de Mira, aquelas zonas em que me dava jeito que a história se passasse, porque a peça… acho que se passa na Nazaré ou na Póvoa do Varzim… mas eu achei que isso não era suficientemente interessante e decidi mudar a história para os Palheiros da Tocha, para os Palheiros de Mira – que já não existem como se vêem no filme. «A Promessa», hoje, é um filme arqueológico, aliás é um filme precioso: não pelo filme, em si, mas pelo aspecto histórico-documental que apresenta. E eu fui para lá, para aquela região, com o António Casimiro, que era o cenógrafo e o figurinista, mais o director de fotografia, o Elso Roque. Fomos uns meses antes de começar a rodagem e eu levei um gravador e comecei a entrevistar aquela gente para saber como eles agiam e se comportavam. Descobri que havia certas queixas que eles tinham contra o padre… havia várias situações interessantes e eu ia gravando tudo e, ao mesmo tempo, ia observando como é que aquela gente falava, como se vestia, como funcionava. Recolhemos todos uma série de dados, de informações, com as nossas perguntas todas… O António Casimiro, também, para fazer os cenários, porque «A Promessa» tem cenários exteriores, naturais, mas, depois, há muita coisa feita em estúdio. O exterior da casa das personagens principais é uma das casotas da aldeia, mas o interior é feito em estúdio. O moinho, a mesma coisa: a gente construiu lá um moinho, o exterior do moinho, num morro, mas o interior foi feito em estúdio. Isto a propósito da pergunta bem ou mal perguntada… Começámos a preparar tudo, os guarda-roupas todos… Quando chegou a altura de começarmos a filmar voltámos para lá, para os Palheiros da Tocha… Instalámo-nos num hotel na Figueira da Foz, que era, digamos, o hotel mais próximo. Nós tínhamos de ir de carro, todos os dias, da Figueira da Foz para os Palheiros da Tocha. Não era muito longe, cerca de vinte quilómetros, fazia-se bem de carro num quarto de hora, mais ou menos. Logo nos primeiros dias havia uma cena, com a Guida Maria, que fazia de Maria do Mar, a mulher do sacristão, que era também pescador, e na qual ela vinha pela praia fora e ia para casa… Tinha ido buscar água, vinha com uma bilha de água, e subia os degrauzinhos até chegar a casa, que aquelas casas estavam todas assentes em grandes estacas de madeira por causa das marés… E ali ao pé estavam umas figurantes, umas mulheres da aldeia que nós tínhamos contratado. Aliás, a produção já tinha falado com aquela gente toda da aldeia para arranjar figurantes e eles tinham alinhado, eles e elas, todos contentes. Eram pessoas autênticas, que viviam ali, e davam uma figuração realista. Em dado momento, no intervalo da filmagem, quando eu estava a falar com a equipa, põem-se umas velhotas, umas três ou quatro figurantes, a falar umas com as outras e eu comecei a ouvi-las. Estavam a contar a história do filme. Dizia uma para a outra “pois, esta é uma menina que vem de Lisboa, que faz isto assim e encontra não-sei-quem”, enfim, uma história que não tinha nada a ver com o filme. Achei muita graça àquilo: “que ignorantes que são, coitadas também não leram o guião…” Aproximei-me e expliquei-lhes: “Estão muito enganadas. Esta é uma menina cá da aldeia, casada com o sacristão, que é também pescador e vai para o mar…” “Não”, disseram elas, “é uma menina de Lisboa, vê-se perfeitamente. Com uma saia de pregas? Nem pensar. Uma menina da aldeia tem de ter uma saia assim, com um avental… Se ela for solteira, o avental é para cima. Se for casada, tem o avental para baixo e se ela for casada com filhos tem o avental não-sei-quê. O lenço, posto na cabeça, se for solteira, casada, etc. Se o marido estiver fora, já não pode usar o lenço assim, tem de amarrá-lo assado…” E nós começámos a mudar de cor, porque o filme estava todo errado, de uma ponta à outra. E eu disse: “alto, pára já a filmagem toda, pára que estou-me a aperceber que há aqui qualquer coisa que não está bem”. Parou a filmagem. Nesse dia já não filmámos mais. O que é se passava? Fomos ter com uma actriz do teatro amador que era natural da terra e vivia lá, e já tinha colaborado com informações, já era nossa conhecida… Chamámo-la e eu contei-lhe a história. “Como é que vocês fizeram isto?”, pergunta ela. “Então, o António Casimiro esteve cá, fez umas perguntas, informou-se e a roupa que mandámos fazer…” “Não, isto está tudo malfeito, as velhotas é que têm razão.” O avental, o lenço, não-sei-que-mais… O xaile, que se põe por trás dos ombros, tem um significado: se for posto de determinada maneira é porque o marido dela não-sei-quê… Ou ela é viúva ou ela é solteira… Quer dizer…Era uma colecção de códigos que não lhe passa pela cabeça. E nós, aí, percebemos que, naqueles meses de pesquisa antes da rodagem do filme começar, tínhamos feito as perguntas erradas! Quer dizer, tínhamos recebido respostas certas para uma série de perguntas erradas. Repare que isto é extraordinário. E eu disse para comigo “perguntar é mais importante que responder”. No saber perguntar é que está o segredo. Conclusão: não filmámos naquele dia… Perdeu-se o dinheiro todo, porque uma equipa parada está a ganhar… Foi uma noite inteira sem dormir, porque a senhora, simpaticamente, resolveu ir connosco bater às portas da gente toda daquela vizinhança, na aldeia e arredores, a pedir roupas emprestadas para os actores e as actrizes vestirem. E ela explicou-nos os códigos certos, em relação ao argumento do filme. Portanto, perderam-se dois dias de filmagem… tive de refilmar tudo aquilo que já tinha filmado, mas como devia de ser… E as velhotas, quando viram de novo, já disseram: “ah, esta sim, é, realmente, uma menina cá da aldeia que é casada com o sacristão, que está quase a ir para a pesca”… É espantoso que, quando se faz sociologia no local, tem de fazer-se trabalho de campo. Normalmente, cá, faz-se sociologia “de livro”, vai-se consultar os livros dos sociólogos anteriores e continua-se a repetir o que eles já escreveram. O Moisés Espírito Santo sempre me ensinou que para se fazer boa sociologia tem de se fazer trabalho de campo: é preciso sair e ir aos locais, fotografar, e fazer entrevistas e saber fazer as perguntas certas. E eu percebi isso com a rodagem de «A Promessa», é espantoso. Muito antes de cursar sociologia, o que só fiz recentemente.

DS – O antropólogo escocês James George Frazer, autor do «The Golden Bough», orgulhava-se de nunca na vida ter visitado um único dos países sobre os quais escreveu nos seus livros.

AdM – Correu um risco muito grande, mas o problema era dele… Isto é interessante, porque estávamos a falar sobre o esoterismo dos meus filmes… Eles acabam sempre com uma pergunta e a minha grande preocupação – e dúvida – é se fiz as perguntas certas, porque as respostas não sou eu que dou. Alguém as dará. Todo o meu esoterismo, no cinema e na ficção literária que escrevo, é um esoterismo interrogante. Como dizia o Anjo da Guarda do Almada-Negreiros. Esse texto, que ele escreveu em 1924, o «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro» é muito interessante. A pergunta bem feita é o grande mistério.

DS – E as suas mensagens, as mensagens dos seus filmes, poderiam existir, ser transmitidas, sem o componente esotérico?

AdM – Não, de maneira nenhuma. O esoterismo não está ao serviço da ficção, faz parte da ficção. É um esoterismo intrínseco, independentemente de se acreditar nele ou não. Isso é secundário, até porque a ficção, ela própria, não é para ser acreditada.

DS – Qualquer pessoa pode ver um filme do António, o seu cinema é para todos, e qualquer espectador é livre de fazer a sua interpretação. Porém, não será erróneo dizer que aquilo que o António, de facto, quer transmitir deverá ser perceptível para um número reduzido de pessoas?

AdM – É verdade, tenho consciência disso. Mas é um problema meu, que não sei ultrapassar.

DS – Haverá espectadores que serão atraídos aos filmes do António pelo seu lado fantástico, porque gostam de Fantástico. Haverá outros que, de maneira geral, se interessam por cinema português e é isso que procuram. E haverá outros que, de facto, vão ao encontro da mensagem especial que o António quer transmitir.

AdM – Eventualmente, espero bem que sim. Pelo menos, que haja alguns.

DS – Voltando a obra para o mainstream… Acha que ela sofreu por ter elementos que só alguns indivíduos, pela sua cultura, pela sua sensibilidade, conseguem captar? Ou que, por terem um contacto mais próximo com esses elementos, chegam a eles com mais facilidade?

AdM – Sofre sempre. É evidente que só uma faixa limitada é que compreenderá, não gosto da palavra “compreender”, neste sentido… Há, de facto, do ponto de vista esotérico, uma mensagem, ou uma pergunta, como dizia há pouco, e penso que essa pergunta tem de repercutir no espectador para que este se sinta motivado a responder. É curioso, porque uma das críticas que costumava ser feita aos meus filmes era a de que eu fazia “piscadelas de olho” ao público: isto é, fazia um tipo de cinema que, aparentemente, era “divertido”, entre aspas, para o grande público. Nem que fosse um drama, como o «Domingo à Tarde», ou um filme como o «Chá Forte Com Limão», era visto como um cinema apetecível para o grande público. Como se isso fosse um crime… que não é, porque… Lá está!, o grande público… há do grande público quem seja atraído pela fantasia, outros são atraídos por outra coisa qualquer… Mas, provavelmente, só pouquíssimos é que irão perceber os filmes: isto é, assimilar, aceitar ou entender, mais ou menos, aonde eu quero chegar. Mas, seja como for, aquilo que eu quero dizer está lá e mesmo a faixa maior do público que vai assistir só pelo divertimento – “olha que engraçado, tem aqui um fantasma, que divertido que isto é” – mesmo para esses há qualquer coisa que fica. A ideia é esta: “vamos pôr isto de uma forma o mais acessível possível”, embora incorrendo na ira dos tais críticos que dizem que eu faço piscadelas de olho ao grande público, como se o grande público fosse uma coisa horrível, mas, enfim... O que eu quero dizer está lá. Mais ou menos escondido ou não-escondido… ou não-aparente para um determinado tipo de pessoas e mais aparente para uma faixa mais reduzida… mas o que eu quero dizer – ou perguntar – está lá e fica semeado em todos: mesmo naqueles que vão assistir só para se divertirem um bocado. E as coisas, quando são semeadas, germinam – mais tarde ou mais cedo. Provavelmente, em alguns, poucos, germinarão mais cedo; em outros, poderão germinar mais tarde – ou até nunca germinar. Essa é que é a minha preocupação. Não estou muito preocupado com o tipo de receptividade que se possa vir a ter, porque sei que se acabará por ter, mais tarde ou mais cedo. Aliás, como está a haver, curiosamente, quarenta, trinta anos depois! Na altura foi um descalabro completo. Quarenta ou trinta anos depois, está-se a ver agora um certo tipo de público a aderir… Não sei se está a aderir pelo melhor lado ou pelo pior lado… não me preocupo…

DS – Vão ao caminho.

AdM – Vão ao caminho. Ou seja, aparentemente, eu tinha razão.

(Continua.)                                                                  

sábado, 25 de agosto de 2012

Trailer de «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense»


Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, spoken word com textos e voz meus e música de Charles Sangnoir (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet) chegará às lojas a partir de dia 1 de Setembro, mas, até lá, podem ver o trailer: atrevam-se a visitar os volutabros imaginais de Lisboa. Nunca mais os esquecerão. Uma viagem erudita, simultaneamente tenebrosa e luminosa, cheia de personagens reais e fascinantes, como o Anão dos Assobios e a Estanqueira do Loreto. 


quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Pré-venda de "Os Anormais" + vencedor do passatempo


Obrigado a todos os participantes no passatempo que promovi, aqui nos Cadernos de Daath, no qual podiam ganhar um exemplar de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense: spoken word com textos e voz meus e música de Charles Sangnoir, de La Chanson Noire (uma edição conjunta da Necrosymphonic Entertainment e da Raging Planet).
As respostas certas às perguntas são, respectivamente, 1) Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes e 2) Cabaret Portugal. A vencedora do passatempo foi a leitora Susana Borges: parabéns!

Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense chegará às lojas a partir do dia 1 de Setembro, mas encontra-se, a partir de hoje, disponível para pré-venda. Quem desejar pré-encomendar um exemplar pode fazê-lo, por exemplo, a partir desta página das edições Saída de Emergência: http://www.saidadeemergencia.com/produto/-o-202434/os-anormais-necropsia-de-um-cosmos-olisiponense/

sábado, 18 de agosto de 2012

Passatempo "Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense"


Tenho para oferta um exemplar do disco Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word erudito, com textos e voz meus e música de Charles Sangnoir de La Chanson Noire, sobre os indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa através dos séculos. 

Para se habilitarem a ganhar este exemplar só têm de responder correctamente a estas duas perguntas:

1 - Qual o título do meu livro mais recente?
2 - Qual o título do disco mais recente de La Chanson Noire?

Enviem as vossas respostas até ao final da próxima quarta-feira, dia 22, para o seguinte endereço de email: cadernosdedaath [at] gmail.com  

As respostas certas serão sorteadas e o vencedor será anunciado no final dessa semana, aqui nos Cadernos de Daath. Boa sorte!


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Entrevista com António de Macedo: 1ª Parte


Eis a primeira parte de uma entrevista exclusiva e extensiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Uma conversa diferente, de autor para autor, de amigo para amigo, na qual se fala da obra cinematográfica, literária e ensaística de Macedo, além de muitos outros temas, de ordem histórica, esotérica e filosófica, sempre em jeito de puro desafio intelectual, pura descoberta, puro deleite. Meu e do António, obviamente, e, a partir de agora, também vosso. Desfrutem.


Entrevista com António de Macedo – 1ª Parte
 
David Soares – O António diz que o cinema deve servir para filmar aquilo que o olho não vê. Outro cineasta, também dedicado ao universo do Fantástico, o David Cronenberg, disse no início da carreira dele que queria filmar o infilmável…

António de Macedo – É curioso. Eu não conhecia essa frase do Cronenberg, mas, de facto, de certa maneira…

DS – A minha pergunta é a seguinte: eu acho que tanto uma intenção como a outra caminham no mesmo sentido…

AdM – Sim, senhor…

DS – …ou seja, filmar algo que não se vê todos os dias…

AdM – Algo que não é facilmente captável pelo quotidiano, exactamente.

DS – Filmar o infilmável e o invisível…

AdM – Exacto.

DS – É curioso, porque a abordagem de cada um é completamente diferente. O Cronenberg é um ateu confesso, não acredita no sobrenatural, não acredita em Deus nem na alma, e, pela obra do António, eu intuo que consigo passa-se o contrário. O António não é ateu…

AdM – Não, não sou ateu. Eu costumo dizer que sou um céptico místico. Ou seja… A minha crença não é uma crença cega, é uma crença crítica. Portanto, sou um céptico místico e por uma razão muito simples, até por simples ignorância… Ou seja, existe um certo número de coisas que a ciência vai descobrindo, a pouco e pouco, e isso é bem visível. Vai desvendando coisas que não eram desvendáveis e que, antes de não serem desvendáveis, eram consideradas como magia ou sobrenaturais, e que, a pouco e pouco, vão deixando de o ser. Mas nunca deixam de ser: isso é que é interessante. Há sempre um resíduo e é esse resíduo que me faz ser um místico, mas, por outro lado, sou um céptico, precisamente devido à minha formação científica, de arquitectura, de matemática… No tempo em que estudei arquitectura tive de estudar matemática a sério, como se dizia na altura, matemática superior… cálculo infinitesimal, matrizes, cálculo integral e diferencial… derivadas e integrais… menos, claro, as matemáticas que surgiram depois, a teoria do caos, por exemplo, que no meu tempo ainda não se dava. Portanto, tenho uma formação matemática e científica que, de certa maneira, me leva ao cepticismo, mas, por outro lado, reconheço que há um resíduo… Vai ficando sempre um resíduo… E é esse resíduo que, para mim, é o mistério. Portanto, não posso ser ateu, porque o ateu é um crente, isto é: acredita que Deus não existe. Eu não acredito que Deus não existe e também não acredito que Deus existe, porque, sendo posições de crença, para mim não significam nada. Isto é: ou consigo demonstrar ou não consigo. Se consigo demonstrar, perfeito, está demonstrado. Se não consigo demonstrar ou se a própria ciência, no estado a que chegou, não consegue demonstrar… ou, como querem os mais cépticos, “ainda” não consegue demonstrar… é porque estamos num terreno “de crença” que só compromete o próprio que por ele envereda ou que o adopta. Eu não discuto essa diferença subtil… Isso significa que continua a haver um resíduo. Até que ponto é que esse resíduo se vai estreitando, até eventualmente desaparecer um dia, é muito difícil de dizer. É como aquelas curvas matemáticas e geométricas representáveis em coordenadas cartesianas, as assimptotas, que se aproximam infinitamente uma da outra mas que nunca se chegam a tocar, porque há sempre um resíduo de intocabilidade. Portanto, é esse resíduo de intocabilidade que, para mim, é o mistério. É isso que o meu cinema, e não só, a minha literatura, os meus estudos e investigações, procuram penetrar… Nesse impenetrável interstício, nesse mistério. Daí eu dizer que não sou, exactamente, ateu… Acabo por não saber bem o que é que isso quer dizer, porque ser ateu é uma coisa definida. Pronto, uma pessoa diz “sou ateu”, que confortável… Eu não sou ateu nem “teu”, nem “desateu”.

DS – Mas também não é um céptico no sentido pirrónico?

AdM – Não, no sentido pirrónico, não.

DS – Não?

AdM - De maneira nenhuma. O céptico pirrónico é aquele que…

DS – Que é um relativista, que diz que não é possível saber nada.

AdM – Não, pode-se sempre e a prova disso é que a ciência vai progredindo. As assimptotas vão-se aproximando uma da outra. Mas nunca se tocam ou tocam-se no infinito, como se diz em linguagem matemática, mas o tocar-se no infinito, para nós, que sentido terá? Nós não vivemos infinitamente. Serão triliões de anos? Não sei… E é esse resíduo, esse misterioso resíduo intersticial, que eu acho que é fascinante explorar, seja em cinema, seja na literatura, seja nos ensaios.

DS – A minha pergunta ia nesse sentido: como é que tanto uma postura como a outra influi na criação dos universos invisíveis, nos universos fantásticos? Ou seja, o que é que têm essas posturas, de crente e não-crente, em relação à criação de um universo que é, por si próprio…

AdM – Incaptável…

DS – Sim. Ou fantástico ou maravilhoso…

AdM – Exactamente.

DS – Era nesse sentido, mas já percebi, pela resposta que deu, como é que isso se processa.

AdM – Como se processa em relação a mim. Em relação ao Cronenberg não sei. O tipo de abordagem que eu faço… Cá está, a zona de investigação quer dele, quer minha, será semelhante, as nossas abordagens é que serão diferentes, eventualmente. E a minha abordagem é sempre no sentido de deixar uma porta aberta para um certo optimismo, apesar de tudo.

DS – Então, o António, apesar de não ser um não-crente, ou de ser um céptico místico, não descura a ciência e daí, nas suas abordagens à ficção científica, ter uma base científica rigorosa..

AdM – Absolutamente. Até porque a ciência é fundamental e ainda bem que existe ciência que investiga e vai cada vez mais longe. Provavelmente, nunca chegará lá ao… Nunca chegará a Deus, suponho, seja lá o que isso queira dizer. Não sei, nem me preocupo… Mas isso é fundamental. Realmente, a própria natureza do ser humano é investigar e descobrir.

DS – Até que ponto é que os seus filmes, que têm um universo muito próprio, intenções muito pessoais… Eu considero o cinema do António como sendo cinema de autor, independentemente dos filmes, isoladamente, se poderem inscrever na ficção científica, no policial ou até no chamado “cinema novo”, mas… Até que ponto é que os críticos estão errados no seu preconceito contra a chamada ficção de género, quando assumem que, por ser ficção de género, as obras têm de seguir uma fórmula fixa, o que não é verdade…

AdM – Não é verdade.

DS – …porque pouquíssimos autores, autores com “A” grande, que trabalham naquilo que é suposto convencionar-se como sendo ficções de género, seguem fórmulas. Eles criam universos autorais, por mérito próprio.

AdM – Absolutamente. Estou perfeitamente de acordo.

DS – Como é que o António lidou com o facto de estar a construir um cinema autoral, com imagens próprias, que depois vai explorando nos seus filmes, e com a postura da nossa crítica que desdenha da chamada ficção de género? Como é que se consegue chegar a estas pessoas, como é que se consegue transmitir a mensagem?

AdM – Não se consegue. Não se consegue, até porque há um preconceito, da parte desses críticos, chamemos-lhe assim, que é um preconceito que os cega. Há uma cegueira, há uma incapacidade de ver, ou de querer ver… E não é, vamos lá a ver, não é fácil fazer chegar essa mensagem. Não é fácil… Provavelmente, nem será desejável, não sei… Em dado momento, ao principio, quando era cineasta jovem, isto é, no meu primeiro filme, o «Domingo à Tarde», no segundo, no terceiro…

DS – Que já contém alguns elementos que, na minha opinião, irão reverberar na sua obra mais à frente…

AdM – Absolutamente, absolutamente. O «Sete Balas Para Selma», que é um filme policial, “policiário”, como diria o Fernando Pessoa, já tem ficção científica lá pelo meio, também, pronto, há umas passagens… Mas eu ainda me preocupava com aquilo que os críticos diziam… E diziam sempre muito mal, curiosamente, por qualquer razão misteriosa, os críticos cinematográficos dessa época, na sua maioria, sempre me tiveram uma raiva muito grande. Eu suspeito que tenha a ver com isso, com o facto de eu nunca esconder o que penso e dizer sempre claramente o que eu achava… Por exemplo, da tal nouvelle vague, muito prezada pelos tais críticos, e que para mim era um movimento mais cosmético do que de conteúdos, que se servia duma estética muito interessante para escamotear um gigantesco vazio de ideias… embora os meus primeiros filmes, ao principio, se pudessem, de certa maneira… confundir-se com algumas propostas visuais da nouvelle vague, mas não era bem inserirem-se na nouvelle vague, era mais num outro tipo de “cinema novo”.

DS – Quanto muito, tinham uma personalidade “nouvelle vaguesca”, se calhar…

AdM – Vagamente… Era, vagamente, uma estética que existia naquela altura, mas contra a qual eu lutei e, apesar de tudo, procurei… Embora, em alguns dos filmes, como o «Domingo à Tarde», possa dar essa aparência… Mas não completamente, porque eu, recordo-me, até disse numa entrevista, já não me lembro onde… Por exemplo, o Elso Roque, director de fotografia do «Domingo à Tarde», teve grande parte da sua formação profissional na escola estilística do Raoul Coutard, de quem foi assistente, e o estilo do Coutard, um dos grande nomes da fotografia cinematográfica dessa época, que fotografou filmes do Truffaut, do Godard, do Jacques Demy… o estilo nouvelle vague do Coutard, dizia eu, era fazer uma fotografia em preto e branco com uns cinzentos luminosos, muito algodoada e delicodoce, ou de cores muito simples e muito suaves, e o meu cinema era do tipo germânico, como eu costumava dizer na altura… Era mais a tonalidade telúrica do Fritz Lang, do Murnau, do Wegener… ou as óperas do Wagner, que não era cineasta nem expressionista mas já trazia a semente… Eram os Nibelungos… Depois o Bergman, e também o Sjöström, aquele cinema… A «Carroça Fantasma»… Felizmente o Elso Roque compreendeu e aceitou muito bem a diferença e o «Domingo à Tarde» ficou como eu queria, mais germânico do que francês… Todo aquele universo nórdico ou germânico, lunar, embora eu reconhecesse que a minha, como é que eu hei de dizer?, a minha postura, até de pesquisa, era mais solar. Que é a tal história… Nós vivemos aqui numa zona que é solar e daí as dificuldades em haver um fantástico português, como há o fantástico germânico, o inglês, francês, o expressionismo e até o gótico. Em Portugal, o gótico pegou mal, tem pegado mal, embora eu próprio tenha feito coisas, os contos neo-góticos, por exemplo, mas, realmente, há essa diferença. Mas lidar com os críticos, era a pergunta…

DS – Não tanto com os críticos como com a crítica, em geral.

AdM – Esse tipo de pensamento, digamos assim, estava subjacente. Embora os meus primeiros filmes já prenunciassem um universo fantástico, evidentemente, eu, com a crítica, comecei a aprender, ao longo dos anos… Fiz cinema desde os anos sessenta, e até aos anos noventas e tais foram trinta e muitos anos a fazer cinema, portanto tive muitas críticas… Sempre filmei o que eu queria e não o que os críticos gostariam que eu filmasse, e isso irritava-os… Algumas críticas — poucas — até diziam bem, curiosamente, de vez em quando lá vinha uma… E eu comecei a perceber que havia um fenómeno que era interessante e que era o seguinte: às vezes o mesmo filme (e quem diz filme diz livro, diz uma peça, um objecto artístico qualquer) suscita críticas até bastante opostas. Como é que é possível o mesmo objecto suscitar reacções tão diferentes? E então veio-me à ideia uma coisa… Quando estava a estudar o curso de arquitectura, como nessa época já havia desemprego, como se diz agora… Já nos anos quarenta ou cinquenta, quando eu fiz o curso, havia desemprego e um jovem arquitecto acabado de se formar tinha muita dificuldade em arranjar emprego. Eu consegui arranjar emprego na Câmara [Municipal de Lisboa], mas era difícil, geralmente arranjava-se emprego como professor, e nesse tempo, em que o Salazar ainda estava vivinho da costa, ele obrigava a que, para se poder ser professor, tinha de se tirar um curso de Ciências Pedagógicas, chamava-se assim. Era um curso de dois anos, que era dado na Faculdade de Letras. E eu tirei esse curso. Portanto, em paralelo com o curso de arquitectura, fui para a Faculdade de Letras, frequentei lá aquilo… Não concluí, mas frequentei o curso. Não era uma licenciatura de quatro anos ou cinco, como eram as outras, era de dois anos e tínhamos de ter esse diploma para sermos professores. Além do diploma da especialidade, engenheiro, arquitecto, médico, não importa o quê… Letras, matemática… Tinha de ter o diploma do curso de ciências pedagógicas para exercer pedagogicamente a actividade, para se ser professor. E esse curso ensinou-me muita coisa porque tive professores excelentes, na Faculdade de Letras, como por exemplo o filósofo e investigador Delfim Santos, o Artur Moreira de Sá, professor de filosofia e de psicologia aplicada, o Edmundo Curvelo, professor de Lógica moderna… Era o mais avançado da lógica booleana e daquela lógica moderna que havia na altura… um dos grandes nomes do pensamento português… E outros professores, nomes que, depois, se tornaram conhecidos na ensaística… E uma das cadeiras que nós tínhamos chamava-se Psicotécnica, que ensinava a estudar as reacções psicológicas das pessoas, dos alunos, e isso ensinou-me muita coisa, curiosamente… Foi aí que aprendi o famoso Teste de Szondi, para se descobrir a verdadeira personalidade de uma pessoa. Esse Teste de Szondi é muito interessante: tira-se uma fotografia a uma pessoa, de frente; depois pega-se nessa fotografia e corta-se ao meio; depois pega-se na metade direita e duplica-se, invertendo-a, como num espelho, e forma-se uma cara inteira feita com as duas metades simétricas “direitas”. Em seguida repete-se o processo com a metade esquerda e obtém-se uma nova cara feita com as duas metades simétricas “esquerdas”. Obtêm-se assim duas fotografias da mesma cara completamente diferentes, e quando olhamos para elas… ficamos horrorizados porque vemos numa delas o Dr. Jekyll e na outra o Mr. Hyde! Todas as pessoas têm isso. Ficamos a ver o lado bom e o lado mau da pessoa. É horrível, horrivelmente fascinante… Nós ainda aprendemos uma série de coisas, além de outros testes… Um outro foi o famoso Teste de Rorschach, o das manchas de tinta… O Teste de Rorschach é fascinante e é composto por dez manchas… O que é estranho é que a gente mostra uma mancha de Rorschach a uma pessoa… “O que é que isto lhe parece?”. Uma diz: “Isto parece uma borboleta.” Depois mostra-se a mesma mancha a outra pessoa e ela diz: “Isto parece uma caveira.” Isto fazia-me confusão à cabeça… Interessante como uma olha para a mancha e diz que lhe parece uma borboleta e outra olha para a mesma mancha e diz que lhe parece uma caveira… De repente, fez-se luz no meu espírito: “espera lá, já percebi o segredo da crítica, sobretudo da crítica portuguesa…” A tal crítica que é impressionista, não da crítica estrangeira que é mais científica. Não se presta a isto que vou dizer agora. A crítica portuguesa, de livros, de filmes, do que quiser, é impressionista, vive mais de impressões fugazes do que de critérios, e, então, o que é que verificamos? O que é que eu descobri? Por que é que há umas críticas, em relação ao mesmo filme ou ao mesmo livro, em que uma diz maravilhas e outra diz horrores?  Porque é assim… A crítica em Portugal não faz a análise do objecto criticado: faz a psicanálise do crítico. Repare bem na diferença. Você começa a ler as críticas que se escrevem aí e consegue fazer a psicanálise de quem escreveu a crítica. A crítica portuguesa, na maior parte dos casos, age por impressões e não por análise objectiva. Fazer uma análise objectiva de uma obra de arte poderá ser um contra-senso, reconheço isso. Há sempre uma carga de subjectividade na crítica, por muito científica que seja, é evidente. Agora… Há certas regras e certos critérios que já vêm de longe, e que começaram por ser estabelecidos no século XVI pelo dominicano português Frei Francisco Foreiro, com as suas famosas dez regras de exame e avaliação de livros, para uso dos censores da Inquisição, e que o papa ordenou que fossem de norma para toda a Igreja… Como eu costumo dizer, a crítica portuguesa aproveitou do Foreiro o seu pior lado, que é o lado censório, e esqueceu do Foreiro o seu melhor lado, que é o lado científico.

DS – Aproveitou só as metades esquerdas do Foreiro.

AdM – Ora exactamente. A partir daí, fiquei descansado: está bem, os críticos podem dizer o que quiserem. No fundo, o que escrevem é sobre eles próprios e não sobre o que eu fiz, não há problema nenhum. O que eu fiz é apenas uma mancha de Rorschach. É um pretexto… Eles agora olham e vêem uma borboleta ou vêem uma caveira, mas o problema é deles, não é meu.

DS – Há pouco falávamos que em Portugal… E esta é uma temática que nós, enfim, discutimos muitas vezes… A de que Portugal é um país em que o Fantástico, nas suas mais variadas vertentes, não medra… Haverá várias circunstâncias para que isso aconteça, mas, por outro lado, tenho intuído… E este é um raciocínio que tenho formulado algumas vezes… Até que ponto é que Portugal não é um falso país meridional? No sentido em que é muito mais atlântico e, talvez, até muito mais setentrional do que Espanha ou do que Itália…

AdM – Os países mediterrânicos, exactamente.

DS – Acho que nós… Não sei se será em virtude do modo como o país foi formado no século XII, por elites vindas do Norte da Europa, é sempre um pouco abstracto fazer estas análises, mas até que ponto é que Portugal, apesar de ser um país que ainda sofre muito por ter tido um peso inquisitorial muito forte, uma disciplina católica muito rígida, ao fim e ao cabo, não tem, também, a contradição de ser um falso país meridional? Porque não vejo aqui a mesma matriz que vejo, por exemplo, em Espanha…

AdM – Isso é profundamente verdade.

DS – Não é contrasensual que, assim sendo, e ao mesmo tempo, o Fantástico não tenha medrado? Aqui?

AdM – Isso é interessantíssimo, o que acaba de dizer, porque põe o dedo na ferida. Repare, Portugal deve ser, provavelmente, de todos os países mediterrânicos, entre aspas… Portugal é um país atlântico, mas ainda tem uns eflúvios mediterrânicos… É um país que sofreu, não podemos esquecer, duas grandes invasões… Para além das etnias que já cá existiam quando chegaram os Romanos… Os Cempsos, os Cynetes, os Sepes, os Lusis, ou Lusitanos, toda uma série de etnias que existiam por cá, de origem celta que se instalaram na Ibéria e passaram a chamar-se celtiberos, povos indo-europeus que vieram de outras zonas e se instalaram por aqui e os Lusitanos eram um deles… Os Sepes, por exemplo, tinham como símbolo a serpente… Há uma série deles, ainda há vestígios arqueológicos disso. Depois vieram os Romanos, que se instalaram aqui, mas não foram os Romanos no sentido “romano” do termo, o que é interessante… Quem se instalou aqui foi a soldadesca e foram os comerciantes, portanto o português é uma língua que vem da soldadesca e dos comerciantes, não é o latim falado pelas elites, enfim, se calhar por isso é que o português tem estes problemas todos que a gente sabe.

DS – Parte desses colonos eram romanizados e não “verdadeiros” romanos, eram etnias que foram sendo romanizadas e integradas no exército.

AdM – E que depois aprenderam a língua e ficaram a falá-la. Acontece que, em dado momento, houve aqui duas grandes invasões que, de facto, marcaram muito este país. A primeira foi a chamada invasão dos bárbaros, a partir do século V, do século VI, que entraram por aqui adentro. Os suevos…

DS – Os visigodos, os vândalos…

AdM – Os vândalos…

DS - …que, depois, foram para o Norte de África.

AdM – Sobretudo, os suevos, de origem germânica, que ficaram com toda aquela zona do Norte, o actual Minho, digamos assim, a região a Norte do Douro, a Galiza… E, a seguir, os visigodos, os “godos do oeste”, que expulsaram os suevos… Na verdade não expulsaram os suevos, eles acabaram por ser assimilados e desapareceram, ficando aqui apenas os visigodos que eram germânicos, o que é extremamente interessante. A gente lê o «Eurico, o Presbítero» do Alexandre Herculano e os nomes são de origem germano-goda… Aliás, todos os estudos que tive de fazer, durante muitos anos, para escrever aquele romance do qual já falámos, lendo e estudando, por exemplo, documentos do século X, da zona portucalense, percebe-se que os nomes são todos germano-godos. Os nomes de Maria, José, João, Joaquim, são nomes que começam a aparecer a partir do século XII, ou a reaparecer, porque são nomes bíblicos. João é um nome bíblico, Joaquim é um nome bíblico… Antes disso, não. Os nomes no «Eurico, o Presbítero», por exemplo, como Roderico, Ranimiro, Hermengarda ou Teodemiro são nomes nitidamente germânicos, ou germano-godos. Há uma componente germânica muito forte, como digo, ou nórdica, mas, depois, logo a seguir, no século VIII, em 711, vieram os árabes. Não eram propriamente árabes, mas povos numa situação islâmico-árabe, melhor dito. Eram todos povos do Norte de África, mas que traziam a tradição árabe, uma tradição islâmico-árabe, que eram, como eu costumo dizer, a civilização da cisterna… A sul do Tejo, realmente, não existem fontes. É fascinante olhar para o mapa das fontes termais de Portugal, porque a norte do Tejo há fontes que nunca mais acabam. É no Luso, é no Vimeiro, no Buçaco, no Vidago, no Gerês, Monção, Chaves, Pedras Salgadas, enfim… No sul do país há em Monchique, em Castelo de Vide e…

DS – E pouco mais.

AdM – E pouco mais. Há três ou quatro fontes. Quer dizer… Os árabes… Chamemos-lhes árabes, agora, para abreviar…

DS – Para efeito de simplificação.

AdM – Exacto. Portanto, os árabes instalaram aqui na zona aquilo que eu chamo de civilização ou, melhor, a cultura da cisterna. Como não tinham fontes, tinham de escavar poços e armazenar água em cisternas. Ao Norte, isso não era preciso, porque havia fontes que nunca mais acabavam. Eis portanto duas culturas, a cultura da fonte e a cultura da cisterna. A cultura da fonte é nórdica, a cultura das valquírias, do ouro do Reno, dos Nibelungos, do País da Névoa… Repare até que no Minho, e em Trás-os-Montes, chove com muita frequência, o Porto é um sítio de nevoeiro… Aquilo é nórdico. Depois, vamos aqui para o Sul e temos a cultura da cisterna, do Norte de África. As casas algarvias são pintadas de branco e com terraços… Aliás, no meu filme «O Princípio da Sabedoria», eu fiz de propósito uma panorâmica sobre aquela vila algarvia onde decorre a acção do filme… As pessoas não darão por isso, porque estão concentradas no filme, mas aquela vila parece uma aldeia árabe do Norte de África, com as casinhas brancas e com os terraços, tudo aquilo tem um ar árabe. Há essa contradição, que estava a apontar há pouco, e muito bem… Aqui o Fantástico não medra porque oscila numa zona conflituante entre o hipotético fantástico que poderia existir, de origem nórdica, visigótica, portanto, e, depois, o outro fantástico que não chega a existir, que é o das Mil e Uma Noites, o das mouras encantadas, que não chega a ser um fantástico no sentido anglo-saxónico do termo. Os anglo-saxões não conhecem as mouras encantadas. E as mouras encantadas, geralmente, estão nos poços: encantam os incautos camponeses, que vão buscar água aos poços e ouvem umas vozes, como as das sereias, que lhes dizem “olha, vem aqui amanhã, ao meio-dia em ponto, que encontrarás um tesouro”. Faz parte do folclore, não é? E, no dia seguinte, ao meio-dia em ponto, o incauto camponês desce ao poço e a moura encantada atira-se a ele e enfeitiça-o… Há várias lendas associadas, como a das ghoules, espécie de vampiros-fêmeas da tradição pré-islâmica que sorvem os espíritos dos incautos que se apaixonam por elas, e por aí fora. Mas esta ideia da moura encantada não passou para o folclore anglo-saxónico, digamos assim. Por outro lado, nós não absorvemos completamente, pelo lado visigótico, a ideia dos Nibelungos, do País da Névoa, que é um gótico nitidamente típico da Europa Central… E estamos aqui numa zona que se tornou ambígua e essa ambiguidade acentuou-se, porquê? Por culpa da Igreja Católica, porque ainda houve uma fase, no princípio da nacionalidade, com o D. Afonso Henriques, que era templário, com D. Afonso II e D. Afonso III, com o próprio D. Dinis, que teve conflitos com a Santa Sé… O nosso país foi excomungado várias vezes… Com a rainha Santa Isabel, que era uma herética… O mestre dela era o Arnaldo de Vilanova, como prova aquela famosa carta que ela escreveu ao irmão, Jaime II de Aragão, na qual se refere a Arnaldo chamando-lhe «meu bom mestre», e em que ela fala na expectativa de uma próxima visita dele a Portugal… Mas não se sabe se veio ou não… Há quem especule sobre isso, se ele terá vindo ou não a Portugal… Esse Arnaldo de Vilanova, talvez catalão, talvez aragonês como Isabel, era alquimista e astrólogo e os seus livros foram considerados heréticos e queimados na praça pública… A rainha Santa Isabel fazia parte da família daqueles imperadores… Descendia de Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico, neto de Frederico Barba-Ruiva, que tiveram grandes conflitos com o papa…

DS – Exactamente.

AdM – Esses imperadores que insultavam os papas de todas as maneiras e feitios e que eram excomungados várias vezes, portanto a Isabel de Aragão descende de uma família de excomungados. O D. Dinis, também, e o pai…

DS – O D. Afonso III, também. Foi excomungado várias vezes.

AdM – Também. Depois, o D. Dinis é que lá compôs a situação política, porque lhe convinha estar mais ou menos bem com a Santa Sé, por causa dos reinos de Castela, de Aragão, aqueles reinos que se viravam uns contra os outros, e o D. Dinis manteve aí um equilíbrio, nisso ele foi genial… E, realmente, a Igreja católica, aqui, era de um catolicismo especial, como no caso da Isabel de Aragão, do D. Dinis, do próprio culto do Espírito Santo, que vem do Joaquim de Fiore, mas que é uma tradição popular… Vamos lá a ver: o culto do Espírito Santo não é, exactamente, aquilo que as pessoas dizem, tem uma raiz pagã. Isso sempre foi muito forte em Portugal. Aliás, quem explica isso muito bem é o Moisés Espírito Santo nos seus livros sobre as origens populares da religião, do cristianismo português. E eu, como fiz a minha tese com ele, como sabe, tive muitas oportunidades de falar com ele e de ler os livros dele, acho que, realmente, é verdade: Portugal é um país pagão. Oficialmente, não é, é católico. Oitenta e sete por cento dos portugueses são católicos, são as estatísticas oficiais… É tudo mentira, mas, pronto, isso é outra história, porque eles contabilizam os baptizados… E estes são cerca de noventa por cento… Depois, é ao contrário: noventa por cento desses baptizados desbaptizam-se ao longo da vida. Mas, quer dizer, essa matriz católica que, a pouco e pouco, se foi infiltrando… Vemos isso por todo o país, nas aldeias, nas festas populares, nas ermidas que foram adaptadas de santuários pagãos, por exemplo à deusa lusitana Ataegina, que a Igreja católica transformou em ermidas à Nossa Senhora de Qualquer Coisa… O D. Dinis teve de fazer acordos com a própria Santa Sé, por razões políticas e os descendentes dele, os reis seguintes, a mesma coisa, foram fazendo acordos… Aquela história que toda a gente sabe, a dos templários, a de que ele não correu com eles, mas fingiu respeitar a decisão do papa… Portanto, encerrou a Ordem do Templo, mas não completou a decisão. Isto é, todos os bens do Templo, ele não os entregou à Santa Sé: ficou com eles, guardados. Isso até foi muito mal visto pelo Dante, por ter obedecido ao Papa e acabado com os templários. O Dante morreu antes de ter visto a fundação da Ordem de Cristo, é interessante. Ele escreveu a «Divina Comédia» e morreu pouco depois, logo não assistiu ao truque do D. Dinis. Por que é que Dante o criticava? Há uma passagem em que ele o critica duramente, porque D. Dinis se apropriou dos bens dos templários, chamando-lhe «avarento», um dos grandes avarentos do seu tempo… embora o coloque no Paraiso. Claro que o D. Dinis sabia que se os entregasse à Santa Sé ficaria sem eles… Ele apropriou-se dos bens já com a mira de os devolver a uma nova ordem, que era a Ordem de Cristo, continuadora da Ordem do Templo, e foi isso que ele fez. Ora bem… Isto é só para dizer que, entretanto, meteu-se cá a Igreja católica e ela, como sabemos, até nos nossos artigos falamos sobre isso, é contra tudo o que contém esoterismo, sobrenaturalidades mágicas, porque implicam deformações. Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança e nós vemos que no maravilhoso medieval há anões, sereias, fadas, grifos, unicórnios, figuras fabulosas, mesmo com forma humana, que não são criadas à imagem de Deus, portanto há aí uma distorção. E a distorção, realmente, é a irreverência, é a blasfémia. A Igreja nunca viu isso com bons olhos e a partir do momento em que, passado pouco tempo, a seguir ao D. Manuel I, veio o D. João III e trouxe a Inquisição, a nossa queda disparou… Porque nós, na fase ascendente, ainda conseguimos fazer os Descobrimentos, foi a fase em que, aqui, árabes e judeus confraternizavam, e, portanto, a ciência árabe e a ciência judaica… Os árabes tinham uma ciência extraordinária, toda a alquimia árabe desaguou aqui… Nós não podemos esquecer que quando lemos livros ingleses e franceses sobre alquimia, que dizem que “ah, a alquimia entrou na Europa em mil-cento e carqueja”, eles esquecem que existe uma coisa chamada Península Ibérica que também faz parte da Europa. No “território portugalense”, que era assim que se dizia na altura, já os treze famosos preceitos herméticos do Hermes Trismegisto eram conhecidos no século VIII. E, no entanto, só são conhecidos em França e em Inglaterra a partir do século XII e é a isso que as histórias se referem. Há um desconhecimento… E nós como temos tendência para ler livros franceses, ingleses, americanos, livros da cultura da Europa Central, esquecemos a nossa própria cultura e, no século VIII ou no século IX, a nossa própria cultura era muito mais avançada do que, por exemplo, a da corte de Carlos Magno, o grande imperador… O Carlos Magno era uma anedota, a corte dele era de uma ridicularia, comparada com a alta cultura do al-Andalus, aqui na Península, a civilização islâmico-árabe… Eram cabanas e casebres comparados com os palácios muçulmanos de Córdova, e, mesmo aqui, os do Algarve.

DS- Basta ir a Granada, por exemplo.

AdM – Sim, Granada, Sevilha, além de Córdova… Em Portugal, agora, já não existem restos, mas todo o Algarve… e Alentejo… Odemira… Silves, Alcácer, Beja… Até Setúbal, até Lisboa… A quantidade… Por exemplo, quem define isso muito bem é o Adalberto Alves naqueles seus livros «O Meu Coração É Árabe», «As Sandálias do Mestre», «Portugal e o Islão Iniciático»… A poesia e a arte que se faziam aqui na zona que hoje é Portugal eram de uma qualidade extraordinária. Esses fulanos já tinham, comparando com a corte de Carlos Magno, um luxo… Um luxo das Mil e Uma Noites… O luxo de Carlos Magno, coitadinho, era o dos casebres… Para os franceses, ingleses, alemães, etc., aquilo era o máximo, esquecendo que havia aqui uma cultura… Nessa época, já aqui na zona da península, a biblioteca do emir Abd-ar-Rahman III (mais tarde califa de Córdova), tinha quatrocentos mil volumes. Pode imaginar o que era uma biblioteca com quatrocentos mil volumes manuscritos? Existiu aqui. O Carlos Magno se tivesse, para aí, doze ou treze…

DS – A maior parte da nobreza não sabia ler.

AdM – Não sabia ler.

DS – Nem era função dela.

AdM – Guerreavam-se. Eram guerreiros.

DS – A função deles era fazer a guerra.

AdM – Saber ler era para os monges e para uns poucos — muito poucos — eruditos…                                                              

DS – Claro.

AdM – Portanto, até aos Descobrimentos nós ainda conseguimos ser um país realmente evolutivo. A partir da expulsão de árabes e judeus, no reinado de D. Manuel I, cujas culturas tinham feito os Descobrimentos… A partir da Inquisição… Bom, a partir daí o país acabou. A sensação que eu tenho… É como nós temos vindo a escrever nos nossos artigos: essas raízes desapareceram e ficámos sem nada. Depois, o que é que fomos buscar? Fomos buscar os restos da Europa Central. Os livros franceses, ingleses, alemães… No tempo do Marquês de Pombal eram os livros alemães… Ele foi casado com uma austríaca e também viveu na corte…

DS – De Viena.

AdM – De Viena. E até há historiadores da época que se queixam de que se chegava à corte de D. José I e só se ouvia falar alemão e não se ouvia falar português. Seja como for, fosse alemã, fosse francesa, fosse inglesa, a cultura passou a ser importada a partir da Europa Central e nós esquecemos as nossas raízes mais profundas, as verdadeiras, que eram as raízes islamo-árabes e visigóticas. E que eram extremamente interessantes. A pouco e pouco, com a Igreja, sobretudo a partir do reinado de D. João III, em seguida o Absolutismo… Quando chegou o Iluminismo, cá está!... O Iluminismo do século XVIII era todo da Europa Central: era o dos filósofos alemães e franceses, sobretudo, que se instalou cá, e a mentalidade portuguesa foi formatada por essa cultura da Europa Central que, realmente, não tem nada a ver connosco. Nós tivemos uma cultura sui generis que se tivesse conseguido medrar tínhamos, provavelmente, um Fantástico extremamente interessante. Eu não faço ideia de qual seria. Já viu o que era um Fantástico reunir as mouras encantadas com as valquírias, com o ouro do Reno e os Jinns das cisternas? A gente lê «As Mil e Uma Noites» e fica fascinada. Não esqueçamos que «As Mil e Uma Noites» contam histórias compiladas no século IX! Reflectem uma realidade que também tínhamos aqui na península e que não se compara com a realidade dos restantes medievalismos europeus, das gentes que não se lavavam, que cheiravam mal… Aqui havia uma preocupação de higiene quase obsessiva, até porque o Alcorão diz que temos de nos lavar cinco vezes por dia. Essa ideia de que na Idade Média era tudo uma porcaria e ninguém se lavava… Ela é bastante verdade, realmente, sobretudo a partir do século XII, mas nos tempos em que os árabes andaram por aqui, durante a civilização islamo-árabe e a visigótica, havia uma certa preocupação com a higiene, até porque era de ordem religiosa. Perdeu-se, como é evidente. São estas perdas todas que fazem com que nós, hoje, não tenhamos um Fantástico em Portugal. No fundo, o que é o Fantástico? É uma descoberta. Nós quando enveredamos pela literatura fantástica, pelo cinema fantástico, no fundo estamos a enveredar por um campo desconhecido. É o chamado “fascínio da descoberta”. É um mundo de maravilha, cá está o tal maravilhoso medieval, que se tornou Fantástico, e é essa descoberta do indescobrível, a descoberta do infilmável, a descoberta do indizível ou do invisível, que, realmente… É um interstício. São as tais assimptotas que se vão aproximando e nós estamos sempre entre elas. O criador de Fantástico, no fundo, não está preocupado com as curvas, em si. Essas já estão definidas matematicamente. Essas já foram referenciadas, já têm uma fórmula, já estão definidas por uma equação. O que ele quer é o que está entre elas. É aquilo que ainda não tem fórmula matemática. E é isto que eu quero explorar. Só posso explorá-lo através da imaginação, do visionarismo, da intuição e toda uma série de ferramentas de captação da “coisa”, entre aspas, que não são reconhecidas pela ciência. A ciência não reconhece o visionarismo. Pode reconhecer em termos clínicos, não é? “O visionário, coitado, sofre desta e daquela patologia” e classificam a patologia. Isso não me interessa: interessa-me é o visionarismo autêntico de um visionário, de um místico, no sentido de ver para além… É o tal interstício entre as duas assimptotas. É isso que eu quero explorar.

DS – No que diz respeito à capacidade de… É preciso haver sempre um equilíbrio… O ouro e a prata… O ouro é a imaginação, as ideias que temos, a prata é o lado mais lunar de meter as mãos à obra, porque uma coisa não existe sem a outra. E no que diz respeito a esse lado mais lunar, chamemos-lhe isso, ao ver os filmes do António, é extraordinário constatar que possuem uma superioridade técnica surpreendente. Não só no que concerne aos meios de produção e ao modo como são usados para criar certos efeitos, como no que concerne à apresentação de alguns modos de narrar que estavam muitíssimo à frente do seu tempo. Coisas que, hoje em dia, estão a ser exploradas em títulos de vanguarda. É extraordinário, por exemplo, «A Promessa» que tem aquele final com cores carregadas… Em «Os Emissários de Khalôm», estou a lembrar-me, aquele anúncio sobre…

AdM – A bolha. «Esteja em férias em plena guerra nuclear.»

DS – Tudo isso são coisas que vieram a ser exploradas por outros realizadores e entendidas nas obras desses realizadores como sendo algo absolutamente visionário. O facto de o António ter feito tudo isso antes é revelador de uma vontade de desbravamento, de uma argúcia…

AdM – São os tais interstícios…

DS - …absolutamente extraordinária. O experimentalismo nos seus filmes e a direcção de actores são sempre fabulosos… Num filme do António, os actores representam sempre todos muito bem. Fale-me um pouco de como, ao longo da sua carreira, é que este lado lunar do domínio da técnica e do experimentalismo… Vamos a ver… Eu não acho que o experimentalismo nos filmes do António esteja ao serviço da colmatação de falhas que poderiam ser impossíveis de transpor, por culpa de sermos um país com pouca tradição de cinema e não poder fazer-se coisas tão arrojadas como no cinema norte-americano ou no inglês, mas o seu experimentalismo, lá está!, não vai por aqui. É um experimentalismo verdadeiramente artístico. Há uma vontade artística de experimentar coisas novas, de mostrar coisas novas. É como se o experimentalismo técnico dos seus filmes servisse, não a falta de meios, mas antes, e com muito mais luz, a voz da obra. Que veicula a voz da obra. Porque o experimentalismo de «A Promessa» é muito diferente do experimentalismo de «Os Emissários de Khalôm», por exemplo, ou de «O Princípio da Sabedoria». Ou seja, é um lado técnico de magia, de magia do efeito, que está ao serviço da própria obra, da própria voz da obra. E é assim que ele faz sentido.

AdM – Eu também acho que sim, que isso é verdade. Ainda bem que me diz isso, porque me faz ver as coisas em retrospectiva, de ver com outra clareza as coisas que fiz. Mas de facto era isso. Havia, por um lado, evidentemente, a ideia de colmatar as deficiências que sempre existiram em Portugal, em relação à técnica do cinema. Técnica, no sentido mais lato, enfim, mais vulgar, porque nós aqui não temos os meios que Hollywood sempre teve. Mesmo antes de haver os computadores e as tecnologias informáticas e cibernéticas que existem hoje, lá já existiam empresas que faziam efeitos especiais muito sofisticados. De efeitos mecânicos, de efeitos com maquetes, muito bem feitos, que nós aqui não tínhamos e, por isso, precisávamos de inventar determinado tipo de substitutos. Os meus colegas cineastas não se preocupavam com isso, não pensavam nisso, porque o cinema deles não é um cinema “com efeitos”, entre aspas.

DS – É um cinema de “plano fixo”.

AdM – É. É um cinema normal, de filmar o que lá está e pronto… Tudo bem. Mas o cinema normal a mim nunca me serviu e eu sempre quis filmar o infilmável ou filmar o invisível. E, portanto, para além da preocupação de colmatar as deficiências que existiam, havia outra que é a de um perfeccionsimo estético e isso é verdade. Isso também se deve, talvez, a um defeito… Não é bem um defeito, é o facto de a minha formação ser de arquitectura… Mas não podemos esquecer que o facto de eu ter ido para arquitectura foi também uma consequência. O ter feito arquitectura não é causa de eu, depois, ter uma certa estética nos filmes. A arquitectura, por sua vez, é uma consequência, porque eu, desde muito novo, desde miúdo com oito ou nove anos de idade, já escrevia histórias, inventava histórias e gostava muito de as ilustrar, portanto fazia histórias aos quadradinhos com bonecos para ilustrar, por isso aquela ideia de as imagens se sucederem umas às outras, terem uma certa sequência e, depois, a história ser contada assim, já fazia nessas idades e até as mostrava aos meus colegas de escola que achavam graça a isso. Depois vinha a professora dizer “ai, o Macedo tem tanto jeitinho para fazer estas histórias engraçadas” e tal… Portanto, quando fui para arquitectura, aliás mais pressionado por razões económicas, porque, no fundo, eu queria ter ido para Letras… Queria ser escritor, mas ir para Letras era muito caro e não pôde ser e acabei por ir para arquitectura. E ainda bem, porque a arquitectura revelou-me montes de visualidades novas, sobretudo os mundos tridimensionais, coisa que a pintura nunca me daria. Uma pintura ou uma escultura, uma pessoa vê-as de fora: a arquitectura tem de ver-se por dentro. Vive-se por dentro. E quando concebe a arquitectura, o arquitecto tem de conceber os vários espaços e os desníveis, não é?, e a colocação dos vários blocos no espaço. Tem de visualizar a três dimensões e, por fim, a quatro dimensões. Porque as pessoas deslocam-se dentro desse espaço, portanto há uma quadridimensionalidade, há um espaço-tempo, que está em jogo. E isso é extraordinário para o cinema. Depois, percebi que o curso de arquitectura era extremamente útil para o cinema. Sempre foi muito importante para mim que nos meus filmes e em qualquer coisa que eu fizesse em cinema tivesse um lado estético, uma certa beleza “estética”, entre aspas, passe o chavão. Desde os meus primeiros filmes, mesmo os documentários, o «Verão Coincidente», a «Nicotiana», sempre me preocupou o enquadramento… A mim sempre me fez muita confusão… O mistério do enquadramento… Repare, o que é o enquadramento? Eu tenho uma câmara, fotográfica ou de filmar, e vou fotografar ou filmar um aspecto do universo… Pode ser este em que estamos agora, aqui, não é? Pode ser na rua, pode ser na praia, em qualquer sítio, na floresta… Eu pego na câmara, aponto e depois fico perplexo, porque digo assim “espera lá, o universo é infinito à minha volta”. E o que é que eu vou fotografar? Tenho de fazer uma escolha. Posso fotografar um bocadinho para a esquerda ou um bocadinho para a direita, um bocadinho para cima ou um bocadinho para baixo, ou recuar um pouco, ou aproximar-me… A partir deste momento, a perplexidade instala-se: “o que é que eu vou fazer”? E por que é eu escolho fotografar assim, um bocadinho mais para a esquerda, em vez de fotografar assado, um bocadinho mais para a direita? Eu tenho de fazer uma escolha: pior ainda, eu tenho de fazer uma renúncia. Como já dizia o Sartre: «Escolher é renunciar». Portanto, quando escolho, escolho um bocadinho do universo, porque o enquadramento é limitado, e estou a renunciar ao melhor, o melhor que o universo tem e que é tudo o resto. Escolher aquele bocadinho é um problema. Daí o apuramento do enquadramento. A preocupação do enquadramento. É a primeira fase, digamos assim, da busca da estética. Em segundo lugar, uma vez escolhido o enquadramento, o que é que eu meto lá dentro? O que meto lá dentro pode ter formas, pode ter sombras, pode ter contrastes, pode ter claro-escuro, pode ter cores, pode ter determinado tipo de movimentos, mais: esses movimentos podem ser intrínsecos ao enquadramento… Podem andar lá pessoas que se movimentam ou automóveis ou outros objectos ou pode ser o próprio enquadramento que se move: coisa que não existe no teatro. Eu no teatro estou sentado na plateia e estou quieto: eu no cinema pego na câmara e desloco-me com ela. Isto é, o espectador que está sentado na plateia do cinema em dado momento desloca-se com a própria câmara e isso cria uma quadridimensionalidade, cria uma outra responsabilidade. E é essa busca de uma estética, por um lado, e daquilo que se mete, por outro, que implica, na minha cabeça, e sempre implicou, uma grande preocupação de um rigor muito grande: isto é, que o espectador se sentisse, não direi confortável, mas que se sentisse de tal maneira agarrado por aquilo que está a ver e que não rejeitasse. Que agarrasse. E daí uma das coisas primeiras, que está naquilo que disse, que é a direcção de actores.

DS – Sempre fantástica nos seus filmes.

AdM – Dei-me logo conta muito cedo, desde muito jovem. Ia ao cinema ver um filme estrangeiro, americano, inglês, francês, óptimo… Via um filme português… Uma pessoa arrepiava-se toda, quer dizer, ficava com os cabelos todos em pé, porque aqueles fulanos falavam como no Teatro D. Maria II. Jesus, como é que eu vou resolver isto? Eu, no cinema, não posso fazer isto. Nos meus dois primeiros documentários, esse problema não se pôs, porque havia uma locução, como havia nos documentários, de forma geral, mas no cinema de fundo, com actores a representar… Era um cabo dos trabalhos. Eu era cineclubista nos anos cinquenta… Comecei a filmar nos anos sessenta… O «Verão Coincidente» que é o meu primeiro filme é de 1962, o «Domingo à Tarde», a minha primeira longa-metragem é de 1964 para 1965. O filme saiu em 1965, mas foi filmado entre 1964 e 1965… Eu ia ver filmes portugueses nos anos cinquenta e mal um actor abria a boa e dizia “bom dia”, ou qualquer outra coisa aparentemente banal, a plateia partia-se a rir à gargalhada, porque a inflexão, pretensamente séria, resultava ridícula…

DS – Ainda por cima, já eram aqueles actores… Que vieram pós-Vasco Santana…

AdM – É que esses actores, os antigos, tinham graça naturalmente. Quando o Vasco Santana dizia “bom dia”, as pessoas riam-se porque ele tinha muita graça a dizê-lo. Quando um “actor a sério” dizia “bom dia”, com aquele ar de sério, as pessoas partiam-se a rir, porque aquilo tinha um repique atroz. Eu dizia: “estou tramado, como é que eu vou descalçar esta bota?” Entretanto, reparei que no documentarismo português os espectadores não se riam. Por exemplo, num documentário sobre uma fábrica de conservas ouvia-se a voz do locutor a dizer, em português: “esta é uma fábrica de conservas, o peixe entra por aqui, é descascado ali, as latas entram por ali, depois deita-se-lhe o azeite em cima, patati, patatá” e as pessoas não se riam, não reagiam mal. Engoliam aquilo, a locução, perfeitamente. E eu disse: “espera lá, isto é curioso, porque é um fenómeno”. Afinal, a língua portuguesa não era horrível, nem o espectador português não gostava de ouvir falar português no cinema: era mentira, porque quando vão ver documentários, fossem turísticos a descreverem as belezas do Algarve, ou fossem industriais, a descreverem o fabrico das conservas de atum, as pessoas não se riem, acham a língua portuguesa normal. Acham normal o locutor a descrever-lhes aquilo… Portanto, havia aqui alguma coisa que não estava bem. São os actores que representam mal… Mas depois comecei a ver com atenção e percebi que, se eu fingisse que não ouvia o que eles diziam numa dessas fitas portuguesas normais, dessas muito más, os movimentos e comportamentos dos actores não estavam nem mal, nem bem, mas quando abriam a boca… Santa Bárbara nos valha… E eu disse: “espera lá, que eu já descobri o truque”… Já sei o que é que eu vou fazer. Quando fiz o meu primeiro filme de longa-metragem, que foi o «Domingo à Tarde», disse: “bom, se eu começo o filme com esta gente a falar normalmente, a plateia parte-se a rir à gargalhada”… Não aguenta ouvir diálogos em português. Mas se eu puser uma locução, as pessoas engolem. O «Domingo à Tarde» começa no hospital com o médico, ouve-se a voz dele, tipo locução, a dizer “nesse dia, estava muito atormentado, porque a doente de não-sei-quê, na enfermaria, morreu e estava grávida”, portanto uma história pungente contada em locução. E a locução é do Rui de Carvalho, que tem uma boa voz, a locução é excelente. E os dez primeiros minutos do filme são em locução. Não se pode repetir isto em todos os filmes, como é evidente, mas, para o meu primeiro filme, eu disse “se, no meu primeiro filme, mal os gajos abrem a boca todos se começam a rir à gargalhada estou arrumado”, portanto tive de inventar um truque. E o truque foi esse: como ninguém se ria nos documentários sobre o atum e nos documentários sobre o Algarve, que tinham um locutor, o meu filme começaria com um locutor. Então, as primeiras cenas do filme, uns bons dez minutos, são com o médico, que é o Rui de Carvalho, a explicar o seu dia-a-dia, os problemas, vai descrevendo-nos o que está a acontecer. Mais a assistente, a Isabel Ruth, a falar com ele… Mas não se ouve o que eles dizem. Ouvem-se os sons próprios da cena, mas não as palavras. Repare, tive esse cuidado. Nas cenas que estão a ser filmadas com a locução do Rui de Carvalho, a explicar o que está a acontecer e os problemas que ele teve nesse dia, etc., ouvem-se os sons todos: eles mexem nos papéis, ouvem-se os papéis; mexem no telefone, ouve-se o telefone… Mas quando abrem a boca, não se ouve nada. Só fala a locução do Rui de Carvalho. E o espectador engole aquilo, perfeitamente. Quando se passa para a consulta, que é das primeiras cenas do filme, ainda se ouve a locução mas já se começa a ouvir, em fundo, o vozear de uma consulta, de uma sala de espera, e só quando a locução se começa a diluir e a calar é que se ouvem as primeiras vozes dos actores. Acho que até é uma enfermeira que diz ao médico “está aqui uma pessoa à sua espera”, mas di-lo com um ar muito… “de pantufas”… que começa a surgir por baixo da locução. Há um cruzamento entre o fim da locução e o princípio do diálogo.

(Continua.)