Wittgenstein escreveu que se um leão pudesse falar nós não seríamos
capazes de entendê-lo. Sim, o dentista norte-americano também não
entendeu o que lhe disse o leão que alvejou com uma flecha, atingiu de
balas e cuja cabeça, em seguida, decepou. Sejam quais forem as
circunstâncias, aqueles que, por uns instantes, se vêem com domínio
sobre os outros têm sempre muita dificuldade em escutar e compreender
aquilo que lhes dizem aqueles que sofrem. E, no entanto, tanto pelas
vozes dos grandes como pelas dos pequenos, a linguagem do sofrimento é
sempre igual, sempre as mesmas três plangentes toadas: tenho frio, tenho fome, não quero ficar sozinho.
quinta-feira, 30 de julho de 2015
Anacusia
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quarta-feira, 29 de julho de 2015
Série «Ver BD» publicada no YouTube
Ver BD, excelente (sob todos os aspectos) série documental sobre banda desenhada portuguesa, que foi transmitida em 2007 pela RTP2, está a ser, episódio a episódio, publicada no YouTube. Pedro Vieira de Moura, especialista e crítico de banda desenhada, e Paulo Seabra, realizador, foram os criadores inspirados desta visão única sobre a banda desenhada portuguesa contemporânea, baseada em entrevistas diversas, em especial a onze autores.
Será muitíssimo interessante revê-la, passados quase dez anos após a estreia, e cotejar os cenários aí representados, pelas vozes dos entrevistados, com o panorama que hoje nos cerca, que é bem diferente. Eu sou um dos onze autores entrevistados e sinto-me, também, feliz por ser o autor da vinheta a preto-e-branco que serve de proscénio a todos os episódios: pertence à história Pessoas Comuns, do álbum homónimo que editei em 1999. (Já cá ando há dezasseis anos, a escrever BD e prosa: a gente, por vezes, esquece-se da passagem do tempo.) Em suma, revejam ou descubram Ver BD e, sobretudo, observem e ouçam com atenção.
Escreve Pedro Vieira de Moura no seu blogue Ler BD: «Há coisas que, em alguns anos, se transformaram profundamente: autores que pararam de produzir, outros que mudaram a prática, plataformas que se alteraram, circunstâncias que se reestruturaram. Mas esperamos que a pertinência da maior parte dos assuntos ainda se mantenha. E não perdemos ainda a esperança de que "venham mais cinco"...»
Agradeço a vossa divulgação.
segunda-feira, 27 de julho de 2015
Vídeo de "Recordar os Esquecidos" com Fernando Pinto do Amaral e David Soares
Vídeo da sessão de Recordar os Esquecidos, que ocorreu no passado sábado, dia 25, na livraria Almedina
do Atrium Saldanha, com moderação de João Morales e Fernando Pinto do
Amaral e comigo como convidados. O índice de títulos abordados é o
seguinte:
1) «O Barão de Lavos» de Abel Botelho (00:00);
2) «A Velhice do Padre Eterno» de Guerra Junqueiro (17:35)
3) «Justine» de Lawrence Durrell (38:52);
4) «O Caos e a Noite» de Henry de Montherlant (51:00);
5) «A Mulher Pobre» de Léon Bloy (1:01:10)
6) «Todos os Contos e Novelas» de Joaquim Paço d'Arcos (1:18:43)
7) «Poesia Completa» de Anrique Paço d'Arcos (1:28:20)
8) «Diálogos de Roma» de Francisco d'Ollanda (1:36:52)
9) «Enciclopédia dos Mortos» de Danilo Kis (1:54:45)
1) «O Barão de Lavos» de Abel Botelho (00:00);
2) «A Velhice do Padre Eterno» de Guerra Junqueiro (17:35)
3) «Justine» de Lawrence Durrell (38:52);
4) «O Caos e a Noite» de Henry de Montherlant (51:00);
5) «A Mulher Pobre» de Léon Bloy (1:01:10)
6) «Todos os Contos e Novelas» de Joaquim Paço d'Arcos (1:18:43)
7) «Poesia Completa» de Anrique Paço d'Arcos (1:28:20)
8) «Diálogos de Roma» de Francisco d'Ollanda (1:36:52)
9) «Enciclopédia dos Mortos» de Danilo Kis (1:54:45)
Sobre Tolkien e fascismo
O escritor inglês Michael Moorcock voltou a exprimir numa entrevista uma
opinião pouco simpática sobre o autor inglês J. R. R. Tolkien, desta
vez chamando-lhe «criptofascista», porque, segundo Moorcock (transcrevo a
citação no inglês original para evitar ambiguidades de tradução): «in Tolkien, everyone’s in their place and happy to be there. We go there and back, to where we started. There’s no escape, nothing will ever change and nobody will ever break out of this well-ordered world».
Não sou um fã fervoroso da prosa de Tolkien, mas também não sou nenhum fã fervoroso da prosa de Moorcock, por isso o meu juízo sobre estas considerações dadas à estampa na entrevista não pende nem para um lado nem para o outro; somente acho desanimador que um escritor, como Moorcock, precise de andar constantemente na imprensa a caluniar outro -- que, ainda por cima, está morto e não pode defender-se daquilo que sobre ele é dito. Porém, aquilo que considero ainda mais desanimador é a utilização do rótulo de fascista (neste caso, criptofascista, ou seja "fascista de armário", digamos assim) para estigmatizar aquilo que se pensa ser o pensamento tradicionalista e conservador que pruma o texto tolkiano. Desanima-me, porque isso demostra 1) facilitismo e 2) um profundo desconhecimento sobre o que foi, de facto, o fascismo.
Dizer que o texto de Tolkien é fascista (ou criptofascista), porque apela ao conservadorismo é errado, pela mais simples razão de que o fascismo não foi um movimento conservador: foi, sim, um movimento revolucionário. A gente tem-se habituado a apelidar de revolucionários somente os movimentos de esquerda, mas, na verdade, tanto o fascismo, como o nacional-socialismo, foram movimentos revolucionários de direita. Foram revolucionários, porque aspiraram e tentaram aplicar um programa de reestruturação social e moral de índole inédita, com o objectivo de criar sociedades novas, desamarradas das grilhetas dos antigos regimes -- somente o quiseram fazer pela via da direita. Aliás, por essa razão foram combatidos tanto pela esquerda dita revolucionária, como pelos ultraconservadores.
A matriz intelectual do fascismo, concebida por nomes como Giovanni Gentile, entre outros, que eram estudantes da obra de Karl Marx (o próprio Mussolini foi comunista antes de tornar-se Duce), olha para o futuro, para um novo tipo de homem, para mudanças violentas no tecido social. Por conseguinte, dizer que um criptofascista coloca nos seus livros o desejo de que fique tudo na mesma é um disparate. Tal como existe nacionalismo de esquerda, também existem movimentos revolucionários de direita.
Assim, chamar fascista ou criptofascista a Tolkien não só não faz sentido à luz da obra que ele deixou, como sequer à luz da sua vida, que em nada se relacionou com percursos políticos fascistas e quejandos.
Sinceramente, não sei qual era a inclinação política de Tolkien -- e nem estou interessado em saber, confesso. Não escolho os livros e os autores que quero ler em função das suas inclinações ou inscrições políticas: escolho-os por escreverem bem e terem coisas interessantes para dizer. No entanto, sei que Tolkien não foi fascista.
Já era tempo de se deixar de usar o nome "fascista" a torto e a direito, sempre se quer caluniar ou assassinar o carácter de alguém de quem se desgosta, porque isso, no fundo, é prestar um péssimo serviço à história: desvaloriza o peso da palavra e contribui para branquear o verdadeiro fascismo, pois se velhinhos simpáticos como Tolkien são chamados de fascistas (corrijo, de criptofascistas) a malta mais nova ainda poderá pensar que ser fascista é uma coisa fixe. Só me lembro daquilo que disse o João Franco, já meio-velhote e retirado para o seu auto-exílio agricultural, quando descobriu que os netos andavam fascinados pelos escritos e ideário do fascismo italiano: «que se passa de errado com esta juventude? Agora são todos miguelistas?»
Vale a pena, pois, pensar com sobriedade no modo como nomes e epítetos são tão facilmente atirados e desvirtuados.
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quarta-feira, 15 de julho de 2015
Canivete-suíço digital
O
smartphone actual é, bem avaliadas as coisas, uma espécie de reinvenção
digital do canivete-suíço: uma panóplia portátil de um florilégio de
funções (entre outras, relógio, calculadora, bloco de notas, câmara
fotográfica, rádio, vídeo, navegador de Internet, gravador de voz, mapa,
e, claro, telefone), reunidas num único aparelho muitíssimo
transportável, cujas dimensões o tornam afectuoso e intimíssimo --
contudo, a palavra "funções" deve ser considerada com cristalina
prioridade; ao contrário de um canivete-suíço, em toda a glória
victorinoxidável, não existem objectos num smartphone. Apenas existem
funções desincorporadas dos objectos (como fantasmas capturados por uma
armadilha de muões).
No que concerne às morfologias física e digital, o smartphone (designação criada em meados da década de noventa do século passado), na sua, já arquetípica, encarnação desenhada pelo quimérico Jonathan Ive, vai ao encontro da comum calculadora: em especial, mimetiza a aparência da calculadora desenhada por Dieter Rams para a outrora teutónica e titânica Braun, uma pequena maravilha de elegância e depuração. É provável que essa ausência de objectos num smartphone nunca passe, sequer, pelas cabeças dos utilizadores; no entanto, quando se pensa nela, curiosas questões ontológicas medram na mente.
Por exemplo: até que ponto são utilizáveis essas funções-fantasmas?
Pense-se no tradicional canivete-suíço: serão os seus objectos, ocultos em estreitas bainhas (que nem pinturas escondidas em cortes dianteiros de livros, relevadas quando se repelam as páginas) -- frágeis ersatzs miniaturizados de ferramentas úteis, como tesouras, chave de fendas, saca-rolhas, abre-latas, corta-unhas, alicate, palitos e talheres --, verdadeiramente úteis? Ou, por outro ponto de vista, serão uma selecta sincrética que, somente, tem como objectivo compor um objecto singular para fetichistas de MacGyver? Conservem esta concepção enquanto observam as funções desincorporadas que um smartphone possui e a problemática adquire uma perspectiva totalmente nova: esses aparelhos estão cheios de funções que nunca são usadas -- ou usadas uma ou duas vezes. Ninguém, realmente, usa essas funções para realizar trabalhos sérios: elas são, como os objectos algo caricaturais de um canivete-suíço, um conjunto de características curiosas.
Funções desincorporadas dão-me pistas importantes para pensar na demanda pela inteligência artificial: é absurdo achar que um programa informático venha a reunir as condições necessárias para desenvolver uma inteligência de tipo humano sem que o seu hardware seja humanizado primeiro. O temporizador do smartphone informa-nos sobre as horas, é muito certo, mas não é nenhum relógio: é, isso sim, a função desincorporada de um relógio. Logo, não será possível criar uma mente humana artificial, sem criar-se, primeiro, um invólucro antropomórfico para a albergar, porque a mente humana é o somatório do cérebro e do corpo humanos -- se fosse possível transplantar-se com sucesso um determinado cérebro para um corpo diferente, em pouco tempo esse órgão, em parceria com o novo corpo, reestruturaria uma nova mente e passaria a pensar de uma maneira diferente. O cérebro evoluiu para pensar, tal como os pulmões evoluíram para oxigenar o sangue, mas não pensa sozinho. No limite, poderá imitar-se a função dessa inteligência, mas, obviamente, ela nunca será real. Apenas um palito de canivete-suíço.
Não deixará de ser anacrónirónico que, daqui a umas duas ou três gerações, nenhum indivíduo terá conhecimento algum dos objectos analógicos para os quais as funções desincorporadas dos seus aparelhos digitais remetem: habituámo-nos a ver objectos obsoletos nos museus, mas as nossas casas já são museus.
Vós sois livres de pensar se isso é uma coisa boa ou uma coisa má.
(Foto do meu canivete-suíço, tirada com a função de câmara fotográfica do meu smartphone e dulcificada na aplicação Instagram.)
No que concerne às morfologias física e digital, o smartphone (designação criada em meados da década de noventa do século passado), na sua, já arquetípica, encarnação desenhada pelo quimérico Jonathan Ive, vai ao encontro da comum calculadora: em especial, mimetiza a aparência da calculadora desenhada por Dieter Rams para a outrora teutónica e titânica Braun, uma pequena maravilha de elegância e depuração. É provável que essa ausência de objectos num smartphone nunca passe, sequer, pelas cabeças dos utilizadores; no entanto, quando se pensa nela, curiosas questões ontológicas medram na mente.
Por exemplo: até que ponto são utilizáveis essas funções-fantasmas?
Pense-se no tradicional canivete-suíço: serão os seus objectos, ocultos em estreitas bainhas (que nem pinturas escondidas em cortes dianteiros de livros, relevadas quando se repelam as páginas) -- frágeis ersatzs miniaturizados de ferramentas úteis, como tesouras, chave de fendas, saca-rolhas, abre-latas, corta-unhas, alicate, palitos e talheres --, verdadeiramente úteis? Ou, por outro ponto de vista, serão uma selecta sincrética que, somente, tem como objectivo compor um objecto singular para fetichistas de MacGyver? Conservem esta concepção enquanto observam as funções desincorporadas que um smartphone possui e a problemática adquire uma perspectiva totalmente nova: esses aparelhos estão cheios de funções que nunca são usadas -- ou usadas uma ou duas vezes. Ninguém, realmente, usa essas funções para realizar trabalhos sérios: elas são, como os objectos algo caricaturais de um canivete-suíço, um conjunto de características curiosas.
Funções desincorporadas dão-me pistas importantes para pensar na demanda pela inteligência artificial: é absurdo achar que um programa informático venha a reunir as condições necessárias para desenvolver uma inteligência de tipo humano sem que o seu hardware seja humanizado primeiro. O temporizador do smartphone informa-nos sobre as horas, é muito certo, mas não é nenhum relógio: é, isso sim, a função desincorporada de um relógio. Logo, não será possível criar uma mente humana artificial, sem criar-se, primeiro, um invólucro antropomórfico para a albergar, porque a mente humana é o somatório do cérebro e do corpo humanos -- se fosse possível transplantar-se com sucesso um determinado cérebro para um corpo diferente, em pouco tempo esse órgão, em parceria com o novo corpo, reestruturaria uma nova mente e passaria a pensar de uma maneira diferente. O cérebro evoluiu para pensar, tal como os pulmões evoluíram para oxigenar o sangue, mas não pensa sozinho. No limite, poderá imitar-se a função dessa inteligência, mas, obviamente, ela nunca será real. Apenas um palito de canivete-suíço.
Não deixará de ser anacrónirónico que, daqui a umas duas ou três gerações, nenhum indivíduo terá conhecimento algum dos objectos analógicos para os quais as funções desincorporadas dos seus aparelhos digitais remetem: habituámo-nos a ver objectos obsoletos nos museus, mas as nossas casas já são museus.
Vós sois livres de pensar se isso é uma coisa boa ou uma coisa má.
(Foto do meu canivete-suíço, tirada com a função de câmara fotográfica do meu smartphone e dulcificada na aplicação Instagram.)
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sexta-feira, 10 de julho de 2015
"Recordar os Esquecidos": sessão de Julho
No próximo sábado, dia 25 de Julho, às 18H00, na livraria Almedina do centro comercial Atrium Saldanha, ocorrerá mais uma sessão do ciclo Recordar os Esquecidos, criado e moderado por João Morales.
Nestas tertúlias literárias, dois convidados recordam e resgatam livros e autores que, por diversos motivos, foram algo esquecidos ou passaram um pouco abaixo do radar dos leitores nestes tempos desanimadores de puro corso literário. Assim, para recordar alguns esquecidos muito especiais, nesta sessão de Julho, os convidados serão Fernando Pinto do Amaral e eu. Divulguem e apareçam: obrigado.
Nestas tertúlias literárias, dois convidados recordam e resgatam livros e autores que, por diversos motivos, foram algo esquecidos ou passaram um pouco abaixo do radar dos leitores nestes tempos desanimadores de puro corso literário. Assim, para recordar alguns esquecidos muito especiais, nesta sessão de Julho, os convidados serão Fernando Pinto do Amaral e eu. Divulguem e apareçam: obrigado.
Os dois Nicolaus
Hoje, 10 de Julho, assinala-se a coincidência de duas efemérides importantes, relacionadas com dois Nicolaus: Nicolau Coelho e Nikola Tesla.
O primeiro Nicolau (1460-1504), comandante da caravela Bérrio, da primeira armada de Vasco da Gama, chegou a Lisboa no dia 10 de Julho de 1499, vindo da Índia, com as novas da descoberta da Rota do Cabo: evento que mudaria totalmente a morfologia comercial e política da Europa quinhentista, transformando um mundo paroquial, ainda centrado em mecânicas adjacentes ao Mar Mediterrâneo, num mundo global, virado, em definitivo, para o Oceano Atlântico.
O segundo Nicolau (1856-1943), inventor sérvio que nasceu a 10 de Julho, criou a corrente eléctrica alternada (polifásica), lavrando o terreno para o nascimento do século XX tecnológico. De certa forma, ambos ajudaram a ligar partes desavindas do mundo -- e Tesla chegou, ainda no seu tempo, a pensar na possibilidade de desenvolver de modo prático aparelhos audiovisuais portáteis de comunicações sem fios (os smartphones contemporâneos).
Ainda existirão indivíduos capazes de cobrir o Sol com as envergaduras das suas silhuetas: temos é de deixar de olhar para o chão para conseguirmos vê-las.
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sexta-feira, 3 de julho de 2015
Novo romance de Filipe Homem Fonseca
Filipe Homem Fonseca (argumentista, músico e realizador) irá lançar o seu novo romance, intitulado Há Sempre Tempo Para Mais Nada (Quetzal, 2015), no próximo dia 7 de Julho (terça-feira), às 21H30, no bar A Barraca do Teatro Cinearte (Largo de Santos, nº2, em Lisboa). A apresentação será feita por Nuno Miguel Guedes e o evento contará com leituras de trechos do romance por Maria Rueff e
Miguel Martins. Divulguem e apareçam.
Filipe Homem Fonseca assinando exemplares do seu romance anterior
Se Não Podes Juntar-te a Eles, Vence-os (Divina Comédia, 2013).
quinta-feira, 2 de julho de 2015
Verão pesado com a LOUD! de Julho
O número de Julho da revista LOUD!
já está disponível nas bancas, para tornar ainda mais quente o início
do Verão. Nesta edição, há Consultor Funerário, para saciar a fomeca que
a ausência do mês passado provocou: assim, a regularidade bimestral
fica com outra ordem; ou seja, para o mês que vem não há, mas no
seguinte haverá novamente.
Além disso, vale a pena ler as entrevistas de
Randy Blythe, que, aparentemente, foi ao Inferno e voltou (escreveu um
livro de 500 páginas sobre o caso, à la Expresso da Meia-Noite), e de Dani Filth, o insubstituível vocalista
de Cradle of Filth, banda na qual todos são substituíveis, a dada altura
- dá vontade de rir?, dá, mas que a banda é das melhores, é. E a
distância que o tempo cria entre os discos que foram mais subvalorizados
ou incompreendidos apenas reforça essa percepção: urge regressar a
Cradle of Filth e reenquadrá-los/apreciá-los sob essa luz. Eu, confesso,
gosto bastante e tenho muitos discos (já editaram onze) para descobrir,
porque há imensos que nunca ouvi.
De facto, às vezes é útil colocar as
coisas nesta perspectiva: não passar cartão àquilo que parece fútil e
dar tempo ao tempo, porque se for bom e interessante, continuará aqui
para ser apreciado a dada altura. Tantas vezes se perde tempo com tretas
que não interessam nada, laudadas como se fossem o melhor presente de
Deus à humanidade, e que, passados uns mesitos ou um ano, desaparecem
tão suavemente quando alardeamente apareceram, que nem monstros de
Frankenstein criados pelas vozearias do marketing e da propaganda.
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Revista LOUD
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Sobre a (Des)União Europeia
Pense-se na câmara fotográfica digital, que funciona de modo totalmente
diferente da analógica. Com efeito, nada daquilo que faz uma câmara
fotográfica tradicional ser uma câmara fotográfica tradicional se
relaciona com o vero funcionamento de uma câmara fotográfica digital.
Num determinado aspecto, as possibilidades deixadas em aberto pela
miniaturização de componentes técnicos digitais, mais similares a
bairros citadinos ligados por estradas e travessas do que às engrenagens
mecânicas dos anteriores modelos exclusivamente manuais, que tinham
tudo a ver com a lógica de organicidade fabril, na qual diversos
componentes isolados concorriam, em harmonia, para criar um corpo
organizado - tanto no sentido de coerente, como no de provido de órgãos -
não libertaram o design industrial das amarras do funcionalismo: ou
seja, se uma câmara fotográfica digital funciona de um modo muito
diferente de uma analógica, então a sua forma não precisaria de
mimetizar a desta para justificar a sua existência ou, sequer, para
funcionar. Uma câmara fotográfica digital poderia ser-nos apresentada
segundo uma lógica de desenho e de utilização totalmente inédita;
todavia, as expectativas do público, em relação à imagem arquetípica que
uma câmara fotográfica deve ter para ser considerada, de facto, uma
câmara fotográfica, tolhe, liminarmente, quaisquer audácias prototípicas
com que um aparelho dessa natureza poderia consubstanciar-se nas
oficinas das grandes marcas. Uma câmara fotográfica digital comum,
daquelas que podemos comprar em qualquer loja de centro comercial ou
hipermercado, ainda arreigada ao fenótipo das analógicas, sem,
verdadeiramente, de precisá-lo, é, assim, um objecto de transição -
sendo que "transição", neste sentido específico, não envolve nenhum real
comprometimento com uma hipotética ligação entre um pretérito estado
analógico e uma actual maneira de ser digital, porque essa ligação não
existe, de todo. O que existe é mero disfarce. Um disfarce conveniente
às vendas, porque o público que se dirige às lojas para comprar uma
câmara fotográfica, seja digital ou analógica, não quer, em suma, ser
confrontado com surpresas ou ambiguidades.
Será, pois, útil
pensar nesta União Europeia, sobre a qual vemos e ouvimos na comunicação
social, como uma entidade equivalente: tal como a câmara fotográfica
digital somente se adapta por mimetismo à aparência da câmara
fotográfica analógica, para ir ao encontro das expectativas do público,
também esta União Europeia pouquíssimo ou nada terá a ver com aquela que
existia há umas décadas, dando a entender que somente vai imitando, de
maneira postiça, a aparência desta para ser capaz de manter-se operante
diante do público. Os seus componentes internos, a sua fisiologia de
funcionamento já mudou - como mudaram umas câmaras fotográficas para as
outras - e nós, pobres cidadãos europeus, em certa medida iludidos pela
carapaça benfazeja das fronteiras abertas e de todos os autênticos
progressos do passado recente, não nos apercebemos disso - a tempo útil,
pelo menos.
Assim, a poucos dias do referendo na Grécia, as horas são, em simultâneo, de perplexidade e de ansiedade. Portugal, por tudo o que se sabe, deveria estar muitíssimo atento aos próximos desenvolvimentos desta situação, mas, provavelmente, não valerá a pena manter ilusões nenhumas acerca da conjecturada camaradagem europeia, porque esta União Europeia, a destes indivíduos tão empáticos quanto torradeiras (e igualmente frios e automatizados) que nos entram em casa pelas televisões adentro, já demonstrou, activa e consecutivamente, que não é a da solidariedade e a da confiança e a da irmandade. Na verdade, tem demonstrado reiteradamente, e com timbre de torcionário, o contrário: que aquilo que continua a existir parece ser, afinal de contas, a mais prosaica e brutal razão de estado, prosseguida pelos estados-nações mais fortes nas mesmas fórmulas egoístas e desapaixonadas do passado, excepto o, vá lá!, avanço ético, diga-se assim, de não o procurarem fazer pela guerra, mas com armas também destrutivas e, demasiadas vezes, mortíferas (que o digam os gregos, cujo tecido social se encontra completamente esfarrapado pelas medidas austeras do chamado Consenso de Washington: camisa de forças, de medida única, fornecida pelo FMI, com a ajuda dos seus parceiros, que não se compadece com as idiossincrasias e fragilidades de cada país em que é aplicada).
Enquanto Portugal faz figura de Pobre Diabo no palco do teatro internacional, cujos críticos não lhe perdoarão a interpretação miserável que está a desempenhar, a Grécia prepara-se para, sem muito tempo para reflexão, servir de exemplo histórico àqueles que ousarem enfrentar o Leviatã. Continuo a acreditar num projecto europeu e continuo a ser, como é óbvio, um europeísta, mas tenho cada vez mais dificuldades em reconhecer-me nesta desgraçada União Europeia na qual as políticas, manifestamente, são as da profunda hipocrisia e as da exploração - física e moral - dos países fracos. Algo de novo - e mais justo - é necessário, com total urgência.
Assim, a poucos dias do referendo na Grécia, as horas são, em simultâneo, de perplexidade e de ansiedade. Portugal, por tudo o que se sabe, deveria estar muitíssimo atento aos próximos desenvolvimentos desta situação, mas, provavelmente, não valerá a pena manter ilusões nenhumas acerca da conjecturada camaradagem europeia, porque esta União Europeia, a destes indivíduos tão empáticos quanto torradeiras (e igualmente frios e automatizados) que nos entram em casa pelas televisões adentro, já demonstrou, activa e consecutivamente, que não é a da solidariedade e a da confiança e a da irmandade. Na verdade, tem demonstrado reiteradamente, e com timbre de torcionário, o contrário: que aquilo que continua a existir parece ser, afinal de contas, a mais prosaica e brutal razão de estado, prosseguida pelos estados-nações mais fortes nas mesmas fórmulas egoístas e desapaixonadas do passado, excepto o, vá lá!, avanço ético, diga-se assim, de não o procurarem fazer pela guerra, mas com armas também destrutivas e, demasiadas vezes, mortíferas (que o digam os gregos, cujo tecido social se encontra completamente esfarrapado pelas medidas austeras do chamado Consenso de Washington: camisa de forças, de medida única, fornecida pelo FMI, com a ajuda dos seus parceiros, que não se compadece com as idiossincrasias e fragilidades de cada país em que é aplicada).
Enquanto Portugal faz figura de Pobre Diabo no palco do teatro internacional, cujos críticos não lhe perdoarão a interpretação miserável que está a desempenhar, a Grécia prepara-se para, sem muito tempo para reflexão, servir de exemplo histórico àqueles que ousarem enfrentar o Leviatã. Continuo a acreditar num projecto europeu e continuo a ser, como é óbvio, um europeísta, mas tenho cada vez mais dificuldades em reconhecer-me nesta desgraçada União Europeia na qual as políticas, manifestamente, são as da profunda hipocrisia e as da exploração - física e moral - dos países fracos. Algo de novo - e mais justo - é necessário, com total urgência.
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