Parem as rotativas! A Cavalo de Ferro vai editar, pela primeira vez em português, o extraordinário romance At Swim-Two-Birds (1939) do grande escritor irlandês Flann O'Brien: preenche-se, assim, uma lacuna incompreensível que já tardava. (Quem
acompanha o meu trabalho sabe que eu sou um fervoroso fã deste autor, a
quem prestei uma pequena homenagem num dos capítulos do meu romance Lisboa Triunfante.) Para mim é uma felicidade enorme ver O'Brien,
finalmente, traduzido para português: parabéns à Cavalo de Ferro e à Maria João Freire de Andrade
que fez a brilhante tradução. Partilhem esta divulgação e procurem por Uma Caneca de
Tinta Irlandesa (título português) numa livraria perto de vocês: não
percam esta grande obra!
terça-feira, 19 de março de 2013
sábado, 9 de março de 2013
Para os meus mortos, com saudade
Na morte, disse Pedranceiro, sensibilizado pela tristeza da criaturinha, todos os bichos são iguais. Não há mais
fortes ou mais rápidos, ou mais tolos ou mais sábios… Todos são iguais, todos silenciosos.
A única voz que resta, capaz de falar por eles, é a nossa, a dos que estão
vivos. Devemos lembrar-nos dos nossos amigos com amor e pensar “Bem feito.”
Porquê “bem feito”,
Pedranceiro?, perguntou Batalha. O que é que “bem feito” significa?
Quando um pedreiro
assenta um bloco entre os outros, disse o homem de
pedra, ele tem de encaixar-se com os restantes:
nem maior, nem mais pequeno. Tem de ser perfeito. Nós, pequena pedra-de-toque,
somos como os blocos, estás a ver? Temos de nos encaixar uns nos outros. Um
amigo, ou um companheiro, como o teu Rifão, é alguém que encaixa connosco e
isso é muito bem feito. Só quem trabalha com a pedra pode perceber o quanto é
difícil esse trabalho de encaixe. Pode correr mal de tantas maneiras
diferentes, as pedras partem-se, inutilizam-se, não servem para nada. É muito
triste não servir para nada. Por isso, pequeno Batalha, deves lembrar-te da tua
amiga e dizer “bem feito”, porque tu e ela encaixaram. Tu e ela serviram. Isso
é uma coisa grandiosa.
Obrigado,
disse Batalha, comovido. Acho que ela
iria gostar muito de te ouvir.
Quem
sabe se não ouvirá?, comentou Pedranceiro, levantando-se. Pousou a mão no
tronco do castanheiro. Sou capaz de ouvir
as pedras… As montanhas e os leitos irregulares dos rios… Nem sempre falam, porque
são muito desconfiados, mas as histórias que já ouvi deles, pequena
pedra-de-toque, são suficientes para preencher muitas vidas. Baixou-se e
bateu com um dedo no chão. Há nobreza na
terra, Batalha. Dignidade. Uma alma. Voltou a levantar-se. Eu sei, porque sou capaz de ouvi-la. Ouço-a
como se fosse um fiozinho de água que tenta escorrer entre as rochas: sempre a
furar, a furar. Por isso, quem sabe se os nossos mortos são capazes de
ouvir-nos, também. Se não fores capaz de escutá-los durante o dia, tenta
escutá-los à noite.
À noite?
Nos teus sonhos, disse Pedranceiro.
Aproximou-se de Batalha e de Rifão e, acocorando-se, declamou:
Morrer, tarde ou cedo,
é uma infelicidade,
mas é nos sonhos que
está a imortalidade.
Neles, os que amamos
não parecem ter partido
e nessa efémera
convivência nada está perdido.
Até à altura, é
certo, de seres tu o seu jazigo,
pois quando morreres,
eles morrerão contigo.
Mas quem sabe se a
morte é uma passagem
e a nossa existência só
uma aprendizagem?
Quem
sabe?, comentou Batalha, coçando os bigodes. Talvez não seja passagem nenhuma e apenas nos sonhos possamos falar com
os nossos mortos.
Mas
e se for, pequena pedra-de-toque?, perguntou Pedranceiro. Achas que seria uma coisa assim tão má?
Batalha não respondeu.
Não, disse Rifão, lembrando-se do mestrinho com afeição. Não seria. Aproximou-se de Pedranceiro e
lambeu os dedos que este lhe ofereceu.(Excerto do meu romance Batalha. A ilustração mostra o cadáver da porca Fraca-Chicha a ser comido pelos corvos e foi desenhada por Daniel Silvestre da Silva. Edições Saída de Emergência, 2011.)
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sexta-feira, 8 de março de 2013
O berço e o horizonte
Não conheço melhor imagem para, hoje, Dia
Internacional da Mulher, ilustrar as melhores qualidades que,
correntemente, são atribuídas ao sexo feminino, como a beleza, a
sensibilidade e a voluptuosidade. É Vénus, amparando uma caravela
portuguesa, desenhada pelo Mestre Lima de Freitas para uma edição
comemorativa do IV centenário de publicação de Os Lusíadas de Luís de
Camões. Como alguns deverão saber, na estrofe 33 do Canto 1 dessa
epopeia, é-nos descrito pelo poeta o modo
como a deusa do amor se deixa encantar pelos portugueses: é que Vénus é
romana e ao ouvir falar os navegantes lembra-se das suas origens e até
pensa que o linguajar deles é o dos romanos. Escreveu Camões:
«Sustentava contra ele Vénus bela,Esta Vénus sonhadora, que com enorme doçura nos resguarda no lunar regaço aquático, é maternal e calipígia, nosso berço e nosso horizonte, em simultâneo.
Afeiçoada à gente lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua romana,
Nos fortes corações, na grande estrela,
Que mostraram na terra tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a latina.»
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