domingo, 14 de outubro de 2012

Sobre o cancelamento do programa Livraria Ideal


Quem seguiu com atenção e regozijo as transmissões televisivas semanais do programa cultural Livraria Ideal (TVI24), sobre livros e escritores, apresentado por João Paulo Sacadura, já deu conta de que foi cancelado abruptamente, há poucos dias, após três anos e meio no ar; período em que centenas de escritores e editores tiveram oportunidade de falar sobre as suas obras durante vinte e cinco minutos em cada emissão, o que em cronometria televisiva corresponde a um épico intervalo de tempo - sobretudo nesta conjuntura que promove o elíptico, o sintético e o superficial. Ora, em Livraria Ideal nada existia de elíptico, sintético e superficial, em virtude da empatia, rigor e profissionalismo de João Paulo Sacadura: magnífico entrevistador e homem de cultura. Ele foi o rosto e proverbial alma do programa que, à sua imagem, sempre se pautou por uma enorme generosidade para com os entrevistados.

Tive a felicidade enorme de ter sido duas vezes convidado do programa, em 2010 e neste ano, e recordarei o respeito e o genuíno interesse com que fui recebido; qualidades francas que raras vezes encontrei junto de outros profissionais da comunicação social, em principal na televisão. De facto, o nome Livraria Ideal não poderia ser mais perfeito: consistiu, realmente, numa livraria Ideal - um espaço privilegiado em que os escritores foram recebidos como escritores e não como entertainers; um espaço em que os livros foram olhados como livros e não como transitória manufactura de marketing. Todos os indivíduos de cultura deste país ficaram mais pobres com o cancelamento absurdo de Livraria Ideal, pois nada resta que possa substituí-lo: era o único, reitero, o único programa televisivo de qualidade sobre livros e escritores, pois em que outro podem os escritores «mostrar a língua portuguesa», como escreveu Alexandre O'Neill, em vez de serem os apresentadores ou os pivots a quererem mostrá-la por eles?

Em paralelo, também foi cancelado outro programa cultural, apresentado por João Paulo Sacadura: o Cartaz das Artes; emitido na TVI durante quase nove anos.


No limite, o cancelamento destes programas culturais - destes labores de verdadeiro serviço público - prova que nestes tempos em que nada é levado a sério ainda existem tragédias. Tragédias que adquirem contornos obscenos quando ocorrem ao mesmo tempo que, na mesma estação de televisão, estreia, com gala e glamour, mais uma temporada - a terceira, repare-se bem - desse inenarrável compêndio de estupidez que é Casa dos Segredos: arremedo do pior que os reality shows têm para oferecer, no qual um grupo de jovens à procura de fama fácil está mais do que disposto a prostituir-se em directo, mostrando as suas nudezes corporais (e mentais) para gáudio de milhões de espectadores. Este é o chamado "entretenimento rasca" no seu ponto mais hipocultural possível, interpretado por gente postiça oriunda do mundo artificialíssimo dos pasquins cor-de-rosa, das revistas pornográficas e do bas-fond de outros universos limítrofes: ícones de papel que os espectadores reconhecem com a familiaridade impressa nas páginas de publicações que não são imprensa por mérito próprio, mas famélicos satélites televisivos; gente tornada cintilante pela máquina mediática, mas que, em circunstâncias comuns, de dia-a-dia, não passam de pobres-diabos, cujas famílias aguentam, algumas com estoicismo, outras com oportunismo, os mais deprimentes episódios que os seus desqualificados filhos, irmãos e netos protagonizam. Rocambolescarias de pornografia de pechisbeque que, no canal privado que as transmite continuamente em directo, já angariam mais espectadores que o total de indivíduos que assistem à programação do segundo canal público: o canal da cultura, por excelência. Dá que pensar.

A simultânea morte da cultura, pelo cancelamento de Livraria Ideal e Cartaz das Artes, e a promoção de um tipo reles de entretenimento que faz cócegas aos mais desprezíveis sentimentos dos indivíduos, pela estreia de Casa dos Segredos, é torpe - é nóxio. Custa-me a acreditar que a Media Capital, grupo de media detentor de uma estação de televisão com diversos canais, estações de rádio, veículos de imprensa periódica e, ainda, serviços de Internet, não poderia encontrar neste florilégio de ofertas um espaço para a cultura e para os programas que decidiu cancelar. É um funesto reflexo do estéril período que atravessamos: um reflexo violento - horrível.

A língua russa possui uma expressão singular, de quase impossível tradução para português: poshlost.
Esta palavra é usada para designar um estádio de estupidez banal e mesquinha, mas também promiscuidade. É um nome que vai na direcção da nossa palavra boçal, mas a boçalidade é inculta, grosseira, ordinária, enquanto que poshlost é, além disso tudo, a satisfação sensual e félica de sê-lo. (Nabokov, cujo ouvido para a linguagem continua, salvo pouquíssimas excepções, sem rival, denominou-a como poshlust, numa conjunção de posh e lust, conferindo-lhe um significado ouropélico muitíssimo adequado.)
É, pois, a palavra que utilizo para designar esta situação, pois é de uma baixeza, de uma insensibilidade e falta de inteligência absolutamente monstruosas: tudo isto é poshlost.

Manifesto a minha total solidariedade para com João Paulo Sacadura, que tanto fez pela cultura e pelas letras nos seus programas: muito obrigado, João, pelo Livraria Ideal e pelo Cartaz das Artes e pelo que representaram. Bem-hajas, amigo, por tê-los feito e espero que, muito em breve, possas, novamente, surgir com novos projectos, porque a tua ausência de semanas já tem o peso de anos.