Porque hoje estive a desenvolver em conversa o intrigante tema dos
incineramentos espanhóis de igrejas na transição do século XIX para o XX
- muito antes sequer do período da primeira república espanhola -,
recupero um texto em que escrevi sobre o assunto. (A imagem em anexo é
de uma cronologia posterior, precisamente o da primeira república
espanhola, mas transmite eficazmente o sentimento evocado no texto.) A
ler:
«Para nós é útil conhecer bem a história de Espanha, porque
grande parte dos movimentos da história de Portugal só fazem sentido se
forem observados sob a lente do conflito entre a independência dos
vários reinos peninsulares, face à hegemonia com que Castela sempre
tentou pressioná-los para os dominar, mas também porque esta é, em mais
do que meia-dúzia de aspectos, radicalmente diferente da portuguesa.
Para o efeito desta crónica interessa pensar sobre a perda do império
espanhol, cerca de 1898, após a guerra com os Estados Unidos,
circunstância que serviu para voltar os militares espanhóis, postos ao
lado da elite conservadora, composta pelo exército, coroa e clero,
contra os populares. Situação que não foi, em si, novidade, porque a
tropa ociosa mormente foi instrumento de desordem e tirania, mas, nessa
altura, com um general por cada duzentos e cinquenta soldados, o
exército espanhol era o mais miserável da Europa – e aquele que custava
mais dinheiro a manter. Uma das prerrogativas especiais desse magote de
mercenários foi a de condenar civis em corte marcial, regalia largamente
utilizada para eliminar vozes críticas, ódios de estimação e quaisquer
tipos de indesejados. Entre a massa de trabalhadores rurais e a menor
mole de operários urbanos – uma tão provinciana quanto a outra –
fermentou ainda mais a desconfiança pelo estado e seus agentes
repressivos, que a plebe espanhola sempre cevou, sem pejo de verter
sangue, como ainda hoje é possível testemunhar na comunicação social.
Daí que, mais do que o apelo da revolução comunista, tenha sido o
recurso às tácticas de guerrilha anarquista a medrar entre os rústicos e
os assalariados cosmopolitas, ambos desincorporados de qualquer grande
organização – na realidade, o anarquismo medrou com maior intensidade na
Espanha do que na própria Rússia.
O baixo clero, recrutado entre
o povo, continuava a ser tão pobre quanto os paroquianos, enquanto o
alto clero, cúmplice de charneira dos grandes proprietários e da
monarquia (dividida entre as facções isabelina e carlista, igualmente
reaccionárias e sanguinárias), vicejava no luxo e no abuso sem limites
de poder: bispos e arcebispos eram nomeados pela coroa e sustentados por
volumosos subsídios, oficialmente contratualizados pela Concordata de
1851, assinada entre a lasciva Isabel II e o mariano Papa Pio IX
(promulgador do dogma da Imaculada Conceição). Além disso, ilimitados
membros do clero faziam parte dos governos e inspeccionavam a sociedade
através de um aperto sufocante nos seios das famílias, controlando a
vida de todos os dias. Talvez resida aqui a escolha dos revoltosos
espanhóis de queimar igrejas, em vez de instituições de carácter
estatal, como solares, câmaras municipais, quartéis, estações de
comboios, postos de correios ou até prisões. Documentou-se, no mínimo,
seis grandes ocorrências de fogos postos em igrejas em Espanha, entre
1808 e 1936, ateados tanto por resistências de esquerda como por forças
de direita. A uni-las esteve a religião católica, o que é espantoso e,
sem dúvida, um dos casos mais estranhos da história ocidental
contemporânea.»
(Adaptação de uma crónica publicada originalmente na revista LOUD! de Abril de 2015.)