Tenho escrito várias vezes sobre eBooks e eReaders e orgulho-me da previdência desses textos (como o meu artigo Sobre eReaders, publicado a 18 de Agosto de 2010 e que antecipou conceitos relacionados com a não-leitura em eReaders que foram explanados a 21 de Setembro desse ano no site Technology Review do MIT).
Nesse sentido, a breve argumentação seguinte (intitulada Sobre eReaders #3) deverá ser lida na sequência dos pensamentos contidos em Sobre eReaders, Os Cangalheiros da Literatura e Sobre eReaders #2.
Discerni que existe, ainda, um factor importante a adicionar a esta problemática: uma espécie de Efeito de Halo, sob o qual se criou uma fortíssima e galopante virtualização da vida. Este sintoma (é, de facto, um sintoma) foi descoberto em 1920 pelo psicólogo norte-americano Edward Thorndike e consiste na ilusória observação de que algo que mostra ser útil em resolver um problema específico será, de igual modo, útil em resolver outros problemas que em nada se lhe relacionam. É, directamente, o inverso daquilo a que eu chamo de Estanquidade: leia-se, a incapacidade de perceber que algo que se manifesta numa determinada área é exactamente a mesma coisa que está exposta em outras áreas diferentes.
Um exemplo realista de um Efeito de Halo é achar-se que um indivíduo que demonstra ser compentente a fazer sapatos também será exemplar em fazer mesas, bifes wellington e mergulho de apneia. É, sobretudo, uma ilusão alimentada pela positiva impressão inicial que o indivíduo - ou um objecto - provoca: há uma inclinação inata para se achar que aquilo que se considera simpático, bonito ou interessante é universalmente aplicável.
Um exemplo do meu conceito de Estanquidade é a incapacidade de compreender que uma ideia aprendida numa determinada área (na disciplina de história, conceba-se) é exactamente idêntica a outra que se encontra em campos distintos (em antropologia, sociologia ou até matemática): como a mesma ideia surge incrustada em diferentes conhecimentos ela parece diferente, quando, na verdade, não é. Tanto o Efeito de Halo como a Estanquidade são alucinações: um peca por excesso forçado, a outra por restrição forçada. Ora, o fenómeno dos eReaders é algo que se inscreve numa hegemonia forçada da tecnologia digital a todas as áreas da vida.
A tecnologia digital é óptima em certos casos e, assim, sob a alucinação do Efeito de Halo, acha-se que ela será uma ferramenta magnífica para resolver todos os problemas e que é universalmente aplicável; inclusive em espaços nos quais ela, em rigor, não é precisa para nada - desnecessária e até insegura.
Faz-me lembrar o entusiasmo que os engenheiros e o público oitocentista sentiram pelos sistemas pneumáticos de transporte que, durante muitas décadas, foram laudados como o último grito da tecnologia futurística (a tónica colocada no facto de ser a tecnologia do futuro foi unânime). Desde as instalações de tubos pneumáticos criadas para transportar cartas e pequenos objectos de prédio em prédio até à projecção de sistemas mais ambiciosos que pudessem transportar pessoas e mercadorias pesadas de cidade em cidade foi um pequeno passo, mas, por motivos variados, nenhumas das redes pneumáticas de transporte imaginadas para o efeito se cristalizou no êxito almejado pelos seus criadores.
Hoje é fácil sorrir diante da ingenuidade desses pioneiros do século XIX, mas nada nos garante que a tecnologia digital venha a estar sempre connosco ou que a própria Internet não desapareça de maneira irreversível. Os livros, por seu mérito, são objectos robustos no sentido tecnológico e perfeitos no sentido de utilização. Em suma: quanto mais delicada é uma tecnologia - e mais ramificada se encontra, criadora de redes de dependência muito grandes -, mais probabilidades ela tem de não recuperar de um acidente imprevisto. Pensem na fragilidade de um órgão vital comparada com a relativa robustez dos membros: se perdermos um braço ou uma perna as probabilidades de morrermos são menores do que se o coração parar ou o fígado colapsar, porque o corpo é extremamente sensível às redes de dependência que estes órgãos criam (nem sequer falei no cérebro).
Em suma: o facto do computador ser uma máquina maravilhosa não obriga a que se transforme tudo à nossa volta num computador (desde telemóveis a automóveis) - nem tão-pouco que se computorize os livros. Quebrem a alucinação do Efeito de Halo: se não aceitam hegemonias nos campos da política ou das ideias, por que razão haveriam de aceitá-las no território da tecnologia? Se isso acontecer, poderemos como Axël, o anti-herói criado por Auguste Villiers de l'Isle-Adam, suspirar com resignada complacência: «Viver? Os nossos servos farão isso por nós.»