«Seria uma boa idéia fazer no final de cada ano um julgamento ao procedimento dos jornais: talvez isso fizesse com que as pessoas que escrevem neles se tornassem mais ponderadas... Comparavam-se os conteúdos de dois ou mais jornais de orientações editoriais opostas com o curso real dos acontecimentos. Assim, talvez se chegasse finalmente a uma apreciação geral da utilidade dos jornais políticos…»
Escrita entre 1789 e 1793, na turbulência das ondas de choque provocadas pelo dealbar da Revolução Francesa, esta nota do polígrafo alemão Georg Christoph Lichtenberg é um antídoto contra a perturbação do presentismo e demonstra que a preocupação com as fake news não é nenhuma novidade; com efeito, já anteriormente escrevi sobre a introdução no léxico português da expressão “notícias falsas” pela mão do plumitivo padre José Agostinho de Macedo, no seu pasquim Cordão da Peste; ou, Medidas Contra o Contágio Periodiqueiro, de Fevereiro de 1821.
Todavia, no início da Modernidade, outra personagem emblematizava aos olhos do público a fusão entre toarda e notícia que consubstancia a chamada “notícia falsa”: a célebre estátua “falante” designada de Pasquino (ainda hoje situada na Piazza Pasquino em Roma). O pedestal desta truncada escultura de Menelau transportando o corpo morto de Pátroclo (datada do século III a. C.) tornou-se a partir do século XVI – e até hoje – o sítio favorito para os cidadãos de Roma afixarem de modo anónimo rumores, maledicências e denúncias – prática popular da qual rapidamente enflorou o nome “pasquim”, sinónimo de jornal de má qualidade ou compêndio de calúnias que os franceses chamavam de canard e os ingleses de gutter press, mas também “imprensa amarela”.
Uma definição curiosa sobre a diferença entre o falso e a falsificação pode ser lida no Brewer’s Dictionary of Phrase and Fable: «um falso é algo que não é genuíno, tivesse ou não o seu criador ou perpetrante a intenção de enganar, enquanto que a falsificação é uma tentativa de fazer passar por genuína uma criação espúria com a intenção de enganar e defraudar.» Assim, Os Protocolos dos Sábios de Sião – panfleto simultaneamente anti-semita e antimaçónico forjado entre 1897 e 1898 pelo aristocrata russo anti-semita Matvei Golovinsky, ao serviço do gabinete parisiense da Okhrana, a polícia secreta czarista, e publicado originalmente em seriado no jornal russo Znamya em 1903 – é uma falsificação – e algumas notícias falsas também são, na verdade, falsificações.
Reportando, pois, às épocas em que panfletos e folhas volantes com noticias falsas circulavam em massa, informo os leitores de idades mais novas que me lembro muito bem de ver nas décadas de oitenta e noventa do século passado – muitíssimo antes do advento da Internet e das redes sociais, em que sobejam memes e fake news – andar entusiasticamente de mão em mão (sem nunca se saber a origem) fotocópias com montagens paródicas e desenhos mordazes, mas também textos de verve verrinosa e de questionável conteúdo político, visando figuras públicas da nossa praça no melhor estilo tradicional pasquinesco. A certos casos mediáticos que rompiam na comunicação social a membrana da vulgaridade, era comum seguir-se um manancial de fotocópias dessa natureza, comentando com humor ou com má-língua os acontecimentos – por vezes, fotocópias de outras fotocópias, em que o grão rebentado até aos limites da legibilidade concorria para criar uma especial estética semi-punk que conferia contornos de comédia slapstick a algumas das montagens mais atrevidas. Em suma: as memes e as notícias falsas não foram inventadas na era da Internet.
Pessoalmente, uma imagem que considero emblemática da problemática das notícias falsas é aquela que foi popularizada em 1679 por La Fontaine na sua fábula do macaco e do gato, embora o conceito lhe preceda: nessa história, Bertrand, um macaco javardo, instrumentaliza Ratão, um gatarrão crédulo, a tirar do lume castanhas assadas; no entrecho, a jeremiada de Bertrand surte efeito e Ratão lá vai queimando as patas na fogueira – absorto na miserável tarefa, o gato não se apercebe que o macaco está a comer as castanhas todas. A chegada de uma criada põe em fuga os dois malandros: um de barriga cheia e o outro chamuscado. E como mostra a ilustração publicada em anexo, antes de La Fontaine redigir a sua versão existia outra em que o macaco sem nenhuma subtileza subjugava o gato e usava uma pata deste como ferramenta para tirar ele próprio as castanhas do lume. Ora, as noticias falsas sempre funcionaram assim: por mais imperceptíveis ou grosseiras as histórias inventadas por espertalhões, quando se actua em função delas acaba-se invariavelmente queimado. E quando a verdade chega finalmente à cena, dissipando todos os intervenientes, nem todos partem de barriga cheia.