Pouquíssimas dúvidas restarão sobre o facto de que a origem da palavra Carnaval se encontra na expressão latina Carne Vale, que significa, literalmente, despedida da carne ou, de modo mais abreviado, adeus à carne. Mas qual carne? Não se trata tanto da carne que se come, como é evidente, embora esta não esteja excluída do enunciado, mas das tentações carnais, dos pecados da luxúria, do sensualismo. Com efeito, a festa do Carnaval contemporâneo está relacionada directamente com o Entrudo, nome proveniente da palavra latina introitus, que possui o significado de entrada; neste caso, a entrada na Quaresma (em latim, quadragesima): período de quarenta dias de preparação para a celebração da Páscoa, que se estende desde a chamada quarta-feira de Cinzas até ao sábado de Aleluia, véspera do domingo pascal, dia da ressurreição de Cristo. Durante estes quarenta dias (o número 40 sempre foi especialmente significante para as religiões judaica e cristã), os cristãos eram obrigados pela Igreja a absterem-se de relações sexuais e a obedecerem a um conjunto de preceitos rígidos, de orações e de jejuns mandatórios. Neste feitio, o Entrudo - os três dias de abastança e festa que assinalavam a entrada na Quaresma - era observado como sendo um intervalo de tempo em que quase tudo era permitido, de molde a domar os instintos mais insaciáveis para as privações que se iniciariam no dia seguinte à chamada terça-feira Gorda (último dia do Entrudo), na quarta-feira de Cinzas.
Neste sentido, o Carnaval é, em essência, uma festividade cristã (católica), embora existam algumas teorias sobre as suas origens "pagãs"; em principal, a que advoga uma procedência carnavalesca nas Saturnais romanas, festividades realizadas em honra de Saturno, celebradas entre 17 e 23 de Dezembro. O único elo de ligação que poderia existir entre as Saturnais e o Carnaval é o facto de que as primeiras eram conhecidas por serem uma festa em que os escravos e os amos trocavam entre si as vestes e os papéis sociais; ou seja, os escravos comportavam-se como amos e os amos fingiam-se de escravos. Este "mundo às avessas" era, sobretudo, institucional e simbólico: nenhuma hierarquia era desrespeitada e toda essa rotina era cumprida com artificialidade, no sentido em que não ocorriam rebeldias, nem excessos dignos desses nomes. À luz disso, tenho reservas em aceitar esta teoria, porque a simples troca de roupas entre amos e escravos não constitui, sozinha, um indício de folia e desregramento, que é a característica principal do Carnaval; e, sobretudo, porque as Saturnais também era conhecidas pelas generosas ofertas de presentes e, que eu saiba, nunca se ofereceu, nem oferece, presentes no Carnaval. Será, no meu entender, precipitado afirmar-se que o Carnaval perdeu o significado original, as raízes "pagãs", etc., com o advento do cristianismo, porque o Carnaval é, para todos os efeitos, uma festividade cristã. A tentação de procurar origens "pagãs" para quase todas as festas e costumes populares é, por vezes, injustificada - e até forçada.
Escrevi "pagãs" entre aspas, porque os romanos nunca chamaram pagã à sua religião, nem nunca foram pagãos num sentido religioso: o étimo de pagão é a palavra latina paganus que significa rústico e deriva de pagus, que significa distrito rural; também foi um nome, mais ou menos, pejorativo pelo qual se designavam os indivíduos que não tinham cumprido serviço militar e este é o significado que nos interessa. É que os primeiros cristãos - romanos convertidos ao cristianismo -, perseguidos pelos imperadores (como Nero, Diocleciano e, mais tarde, Juliano, o Apóstata), chavamam-se a si próprios de "soldados de Cristo" e, nesse sentido, todos os outros romanos eram os "pagãos" (não-convertidos, porque eram "civis" para Cristo). Em suma, nunca existiu uma religião "pagã" ou um culto "pagão": existiram cultos e religiões que, a posteriori, assim foram chamados para efeito de diferenciação. É uma designação que não tem relação autêntica com a religião romana e outros cultos pré-cristãos.
Mas o Carnaval é tanto uma festividade cristã que, em 1517, o Papa Leão X, em vez de, por exemplo, proibir os excessos carnavalescos, concedeu uma indulgência plenária que tinha, entre outros propósitos, o objectivo de exceptuar os indivíduos dos jejuns e das abstinências quaresmais: ou seja, prolongar - para quem pudesse pagá-los, é claro - esses regabofes. Foi esta indulgência plenária que, vendida na Alemanha pelo frade dominicado Johann Tetzel, deu azo à escrita das célebres noventa e cinco teses do frade agostinho Martinho Lutero, nas quais este não só atacou as bases teológicas da venda de indulgências, como até questionou o próprio poder papal. A partir deste episódio, Lutero rejeitou liminarmente o primado católico, romano, e a infalibilidade das definições dos concílios; em Dezembro de 1520, para adicionar insulto à injúria, incinerou publicamente a bula papal Exsurge Domine que o ameaçava com a excomunhão e no início do ano seguinte cortou relações, em definitivo, com a Igreja Católica ao ser mesmo excomungado com a bula Decet Romanum Pontificem. Nesta óptica, não deixa de ser interessante que tenha sido o escândalo provocado pela venda das remissões dos pecados carnavalescos, cometidos durante o período quaresmal, a estar nas origens do fenómeno do Protestantismo e estabelecimento das variadas comunidades eclesiásticas que sob ele medraram e que, de maneira geral, odeiam o Carnaval.
O genuíno Carnaval português, que sempre foi grotesco, mal-comportado, "popularucho", quase que desapareceu, tendo sido substituído pelos arremedos do Carnaval brasileiro que se realizam anualmente, um pouco por todo o lado. Contudo, o dissolvimento já vem de longe, desde finais do século XIX; com o advento da República, o Carnaval "domesticou-se", tornando-se uma celebração pública mais ordeira, com uma tónica maior na espectacularidade dos desfiles de fantasias e de carros alegóricos, do que na quebra das regras e no confronto. Mesmo assim, o último estertor de um Carnaval genuinamente lisboeta não finou há tão pouco tempo quanto isso: estou a falar da personagem chamada Xexé.
O Xexé foi uma visão comum, e "temida", nas ruas de Lisboa
durante os dias de Carnaval. O período áureo do Xexé terminou em meados
da década de trinta do século passado, quando esta personificação do
Antigo Regime perdeu, em definitivo, referentes com a vida de todos os
dias.
Vestido de casaca de seda, bicórnio e cabeleira, como se fosse um nobre
setecentista, munido com um bastão, um facalhão e um par de cornos, o
Xexé é uma caricatura fidalga, projectada pelos populares, que veio a
ser entendida no século XIX como sendo uma sátira aos partidários
miguelistas. Os chavelhos, elementos decisivos na composição da sua
figura, remetem para o velho hábito olisiponense de pendurar-se cornos
nas portas das casas dos indivíduos a quem se queria chamar de
"cornudos": verdadeira febre que incendiou a imaginação dos lisboetas da
primeira metade do século XVIII e que D. José tentou finar com
uma lei datada de 15 de Março de 1751. Desse modo, o Xexé será, sem
dúvida, uma síntese desse humor popular, ordinário, com o estilo
mariálvico de quem pertence ao escol, mas prefere imiscuir-se com a
ralé. Por ser uma personagem retrógrada, pertencente a uma memória que o
grande terramoto de 1755 não debilitou totalmente, o Xexé costumava ser
representado como sendo um velho lascivo, afectado por tiques de
embriaguez, que importunava com veemência aqueles que com ele se
cruzavam na rua - e daí o nome "xexé" que se dá, tantas vezes, aos
velhotes já acometidos de senilidade. No início do século XX, com o
advento da primeira república, as lúbricas brincadeiras dos xexés e das
chamadas "caqueiradas" (chuvas de águas sujas, dejectos e quinquilharias
que, das janelas, se jogavam sem piedade para cima dos transeuntes)
perderam popularidade para um Carnaval cada vez mais cosmopolita,
pensado como grande espectáculo colectivo, e cada vez menos um intervalo
de ruptura. Já Rafael Bordalo Pinheiro, em 1887, se regozijava com o facto do "novo" Carnaval estar a substituir o "antigo" e, com ele, a desmanchar da memória colectiva a presença incoveniente e insalubre do Xexé (ver o seu artigo caricatural sobre a "Batalha das Flores").
O nome Xexé, cuja grafia deixa no ar uma suspeição de proveniência galega,
poderá ter uma origem onomatopaica, do mesmo modo que o nome gagá, que retém um sentido parecido. Gagá é uma onomatopeia que deriva da palavra francesa gâteur: pejorativo calão hospitalar, usado pelas enfermeiras e pelos médicos, que significa, literalmente, velhote que mija na cama e que veio, seguidamente, a veicular a ideia de senilidade. É, pois, possível que xexé possa derivar de xixi,
relacionando-se assim com a ideia do velhote senil que já não tem
capacidade para controlar-se, inclusive controlar o seu próprio corpo, e
a quem tudo (ou quase tudo) é permitido? É uma contribuição que deixo
para a resolução deste enigma.
Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas (criadas em 1932) e das versões turísticas das celebrações dos santos populares.
Seja como for, o badalhoco, bafiento e impertinente Xexé foi, provavelmente, o último dos anormais "alegóricos" de Lisboa: espécie de Careto urbano de um Carnaval popular, tipicamente lisboeta, que foi substituído pelas manifestações assépticas das marchas bairristas (criadas em 1932) e das versões turísticas das celebrações dos santos populares.