No filme Alice in Wonderland (2010), do realizador norte-americano Tim Burton, o cabelo do Chapeleiro Louco, interpretado pelo actor norte-americano Johnny Depp, é cor-de-laranja, uma alusão à crença que os chapeleiros de outrora se envenenavam ao tratarem as peles de animais com nitrato de mercúrio para fazerem chapéus de feltro: um dos efeitos do tóxico seria o de oxidar (tornar cor-de-laranja) as pelagens brancas; além de contribuir para o apodrecimento dos sistemas nervosos dos chapeleiros, provocando-lhes perturbações cerebrais, tremores e discurso entaramelado. É com base nestas referências que se explica a origem da expressão popular inglesa “mad as a hatter”. (“louco como um chapeleiro”) e se contextualiza o comportamento do caprichoso Chapeleiro Louco, criado pelo escritor inglês Lewis Carroll no romance Alice’s Adventures in Wonderland, publicado em 1865: versão extensa de um manuscrito que o autor escrevera e ilustrara no ano anterior para oferecer à pequena Alice Lidell. (O capítulo VII, “A Mad Tea-Party” (“Uma Festa do Chá Maluca”), desse romance não faz parte do manuscrito original e até foi uma adição tardia de Carroll.) Porém, em nenhuma linha nos é descrita a cor do cabelo do Chapeleiro Louco, nem que ele se encontra sob a influência do perigoso elemento químico.
No que concerne aos factos é credível que o costume de chapuçar as peles numa solução de nitrato de mercúrio tenha sido criado por chapeleiros franceses protestantes e por eles mantido em sigilo até 1685, ano em que o rei francês Louis XIV anulou o Édito de Nantes (instituído em 1598 por Henri IV de França para cessar as guerras religiosas, entre católicos e protestantes, que assolaram todo o século XVI), ilegalizando novamente o credo calvinista francês (huguenote): grande parte desses professos partiram para Inglaterra e especula-se que foi a partir daí que os chapeleiros ingleses passaram a empregar a técnica mercurial, substituindo a do vapor de água. Mesmo assim, a suspeita de uma correlação entre os sais hidrargírios e os desarranjos nervosos dos chapeleiros poderá não ser uma explicação segura para a origem da expressão supracitada. Sabe-se que a primeira vez que ela apareceu impressa foi no volume XXV da revista britânica de ficção gótica e de horror Blackwood’s Edinburgh Magazine (satirizada pelo escritor norte-americano Edgar Allan Poe) num texto de 1829, intitulado “Noctes Ambrocianae”; sete anos depois, o autor canadiano Thomas Chandler Haliburton, criador da personagem Samuel Slick, usou-a em The Clockmaker, or The Sayings and Doings of Samuel Slick of Slicksville, certamente difundindo-a junto do público norte-americano. Em 1850, com a publicação integral do romance satírico Pendennis, o popular escritor inglês (nascido em Calcutá) William Makepeace Thackeray democratizou-a, em definitivo, quinze anos antes da publicação de Alice’s Adventures in Wonderland.
Por outro lado, Carroll pediu a Sir John Tenniel, o caricaturista inglês que lhe ilustrou o livro (e a sequela Through the Looking-Glass, and What Alice Found There, editada em 1871), que desenhasse o Chapeleiro Louco à semelhança do estofador e antiquário inglês Theophilus Carter, excêntrica figura cuja alcunha era “Mad Hatter”, em virtude do seu hábito de usar sempre uma cartola e das suas ideias estapafúrdias – entre as quais um sofisticado relógio de alarme capaz de atirar sozinho um indivíduo para fora da cama, apresentado na Exposição Mundial de 1851 (a primeira das várias exposições mundiais), realizada no Crystal Palace, em Londres. Infelizmente, não existem fotografias de Carter. Depois dos dois livros de Alice terem sido publicados, Carroll escreveu numa carta que «o senhor Tenniel é o único artista que desenhou para mim que se recusou resolutamente a usar um modelo»: esta frase relaciona-se com o modelo sugerido a Tenniel por Carroll para a própria Alice, mas o contexto é ambíguo o suficiente para referir-se de igual modo a outras personagens, embora o facto do Chapeleiro Louco se mostrar obcecado com as horas (até se dirige ao Tempo como him e não como it) poderá ser uma ligação a Carter e ao seu relógio “maluco”. Pode dizer-se que arte imitou a vida.
A última vez que Alice vê o Chapeleiro Louco nesse capítulo, ele tenta enfiar o Rato Dorminhoco adormecido dentro de um bule de chá, com a ajuda da Lebre de Março. Em inglês, o nome do Rato Dorminhoco é Dormouse, corruptela do nome francês dormeuse que significa adormecida e que é dado a uma pequena espécie hibernante de roedor campestre europeu chamada arganaz. O francês foi a língua da corte britânica durante séculos e é fácil perceber como dormeuse se transformou em dormouse, por virtude da similitude fonética. Mas existem outras similitudes, históricas, com a representação do Rato Dorminhoco.
De facto, muitas crianças inglesas, contemporâneas da edição do romance de Carroll, tinham ratinhos (algumas teriam certamente arganazes) como animais de estimação e guardavam-nos em bules com palha ou com ervas (daí o Chapeleiro Louco e a Lebre de Março quererem enfiar o Rato Dorminhoco no bule com chá – era a moda da altura). Conjuntamente, o desenho de Tenniel exibe-se como um animal atarracado e gordo, concorrendo para que ainda subsista a ideia de que é uma caricatura de Top: o primeiro vombate de estimação do pintor inglês pré-rafaelita Dante Gabriel Rossetti.
O sapudo vombate é um marsupial australiano, de metabolismo lento e comportamento pachorrento – Rossetti costumava trazer Top para a mesa de jantar quando recebia visitas e todos se encantavam a ver o animal adormecer, sem dar importância nenhuma ao que se passava em volta. É uma história atraente, mas o bicho desenhado por Tenniel tem uma longa cauda, característica dos arganazes, e Rossetti só adquiriu Top em Setembro de 1869: quatro anos depois de Alice’s Adventures in Wonderland ter sido publicado. Embora Carroll fosse visita de sua casa (além de ter sido seu fotógrafo, é, ainda, evidente que a Alice que imaginou e desenhou no seu manuscrito original deve muitíssimo ao cânone de beleza feminina inaugurado pelos pintores pré-rafaelitas; incluindo a típica expressão triste, com a cabeça ligeiramente inclinada), a ideia de que o Rato Dorminhoco é o vombate não tem fundamento, mas o relato das sonecas que ele fazia à mesa é genuíno, por isso, neste caso, pode dizer-se que a vida imitou definitivamente a arte.
De modo infeliz, Top morreu de repente, dois meses depois de ter sido comprado ao comerciante alemão de animais Charles Jamrach (que aparece como personagem secundária no romance Dracula de Bram Stoker). Consta que Top comeu o conteúdo inteiro de uma caixa de charutos, que o terá envenenado, mas na verdade morreu de sarna. Rossetti adorava-o e definiu-o como sendo «uma maluquice» de criatura.
Convidado adequado, portanto, a «uma festa do chá maluca».
(Imagens: A festa do chá maluca, desenhada por Sir John Tenniel, publicada em Alice's Adventures in Wonderland; manuscrito e ilustração originais de Lewis Carroll quando a história ainda se intitulava Alice's Adventures Undergroud; auto-retrato de Dante Gabriel Rossetti, com poema, chorando a morte de Top; Alice desenhada por Carroll, no seu manuscrito original, de acordo com o cânone de beleza feminina pré-rafaelita.
Versão aumentada da crónica publicada no número 13 da revista BANG!)
Versão aumentada da crónica publicada no número 13 da revista BANG!)