Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir:
um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as
vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao
longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre
"não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para
ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi
publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
O terceiro capítulo, intitulado «A Lua do Loreto», dedicado à desgraçada Estanqueira do Loreto, figura típica lisboeta que morreu no início do século XIX, é, como o capítulo anterior, uma viagem intelectemporal.
A Lua do Loreto
Circulares como um ponto final, embebidas em
amnésico ruído de rua, as ruínas invisíveis dos Casebres do Loreto são uma Lua
que ainda emulsiona os elementos de Lisboa: buzinas de automóveis, risos de
mulheres, sabores artificiais provenientes de uma adjacente gelataria – mas
também pedras extintas, sangue antigo – tão alucinatório quanto mênstruo
estroboscópico – e surtos fantasmas de sofrimento.
Sob estes rios de turismo e
alcatrão, lado a lado aos pisos inferiores do parque de estacionamento do
Chiado, hibernam esqueletos de soldados ducentistas, alguns agarrando teimosamente
a tecnologia do seu tempo: lâminas fósseis, exóticas quanto cascas de
pré-históricos coleóides vampiromorfos, tão entorpecidas quantos os sestércios
que polvilham como pimenta a sedimentar estratocracia da Praça Luís de Camões.
Pudendágrico, o vulto desse vate é um cenotáfio de seres esquecidos pelas
gentes que, animadas por atavismo psicogeográfico, se conglutinam nas actuais noites
de fins-de-semana para elucubrarem ébrios elmanismos: a topografia é destino e
a freguesia da Encarnação é a morada celeste do satiríaco Bocage, que dela fez uma
Nova Arcádia de deboche e deleitação.
Do alto do seu sadino
monumento, erguido em 1871 na Praça de Bocage, imunizante mausoléu de destroços
romanos relacionados com a confecção de garum, a imagem do autor de Queixumes do Pastor Elmano Contra a
Falsidade da Pastora Urselina parece um gémeo alabastrino do antracítico Camões,
esculpido quatro anos antes. Societários nas estaturas estatuárias e poéticas, estes
leptocéfalos partilham o túmulo incógnito que aquartela todas as ossaturas
tresmalhadas pelo tempo: nem um, nem outro, das alturas em que se empoleiram, como
tótemes de religiões secretas ou páreos muitíssimo escantilhados, vislumbram os
seus restos mortais. Desidratados pela sequidão das eras, os ossos de Bocage e
Camões são palinfrasias – paronomásicos aos do bardo irlandês William Butler
Yeats, esmadrigados num ossuário occitano.
Qual o siderismo que
supervisiona o destino dos ossos dos poetas?
Versos que nem vértebras – e,
no entanto, outro esqueleto, mais importante para esta história, ganha pó no Museu
de Anatomia do Hospital de São José: desfigurado pela ancilose, o crânio
grotesco já não apresenta o nariz apossemático, cujos espirros Bocage definira
como sendo autênticos terramotos. A sua signografia tecidual, quasi-lunar de
tão craterizada, testemunha uma vida lamentável, findada entre o entulho e as
esmolas no Largo do Calhariz, situado a pouca distância dos deploráveis Casebres
do Loreto onde estes ossos, enquanto sustentáculo de carne de mulher, foram
donos de um estanco. Exibido como se fosse o esqueleto de um macaco, indigno é
o tributo prestado – pelos que dela se riram – à Estanqueira do Loreto. À horrível
Estanqueira do Loreto.
Quem é esta corcunda, de dedos
torcidos como caudas de ratazanas, que fede ao tabaco que mercadeja no seu cubículo
apertado onde mal lhe cabe a alma? O seu retrato, a preto-e-branco, publicado
na revista Ilustração Portuguesa de
Dezembro de 1923, no artigo “Retratos
d’Alguns Tipos Populares Portugueses”, que também conjectura sobre como
seria a fisionomia do Anão dos Assobios, copia, de modo ainda mais hediondo, a
imagem colorida que decorava uma tampa de caixa de rapé pertencente ao rei D.
Pedro V: nessa efígie, a Estanqueira do Loreto supera em feiura a Duquesa Margarete
do Tirol, pintada em 1513 pelo artista holandês Quentin Matsys, normalmente
considerada a “mulher mais feia da História”. Todavia, este quadro medonho de
Matsys poderá ser somente uma alegoria da Vaidade, talvez inspirada pela
leitura de Elogio da Loucura, escrito
dois anos antes pelo seu compatriota Erasmus de Roterdão, o que fará da
Estanqueira do Loreto a verdadeira “mulher mais feia da História”. Pagética,
dissimétrica, retinacular e embrulhada como se fosse a cabeça decepada de
Medusa, a carranca pintada para a caixa de rapé evoca a Terceira das Idades
Femininas popularizadas pelo escritor inglês Robert Graves no livro A Deusa Branca: o estádio a que chamou de
Velha. O nome inglês desta Velha,
comparada por Graves ao Quarto Minguante, é crone,
nome que deriva da palavra francesa caroigne
que tem a dupla significação de carne
morta e mulher molesta. A Velha
que estiola a luxúria masculina é equivalente à carne morta: «Aquele que comer essa carne morta ficará
impuro». De útero inútil, a Estanqueira do Loreto é Elli, a Velha capaz de
derrotar campeões priápicos da estirpe de Thor; é Baba Yaga, a estriga canibal
do folclore eslavo que voa agarrada a um pilão num almofariz – é, pois, uma
bruxa, cujas tetas são balofas almofadas, recheadas de esterco, que nasce no
estrume e vive para o estrume. E, no entanto, sob o medonho córtex que lhe
envolve as entranhas, espantoso eidolon
de espavento que faz tremelicar de nojo os fregueses mais influenciáveis, soa
uma verdadeira voz de ouro.
O verbo de fada da repelente
Estanqueira do Loreto resplandece mais que as setecentistas fitas de Sol que
iluminam o estanco pelas frinchas nas madeiras, pois estas poluem-se com o pó
que revoa, mas nada emporcalha a voz da vendedora de tabaco, porque o espírito dela
é o oposto do seu feio aspecto. É esta Befana crisóstoma que os boémios e os poetas,
saídos das tabernas, apupam quando passam à entrada do estanco – mas quando a
ouvem falar com eles, uma vergonha incómoda, macia como bosta, escorrega-lhes
pelas espinhas abaixo e sentem-se insignificantes. «A luminária do corpo é o olho, se o teu olho estiver são, todo o teu
corpo andará cheio de Luz; porém se o teu olho for mau, todo o teu corpo andará
cheio de Treva.» Os olhos da Estanqueira do Loreto são luminárias que
reflectem a luz: os infelizes clientes que torcem o nariz ao pôr-lhe a vista em
cima, os rapazinhos que desfezam e urinam à sua porta e os valdevinos que dela
escarnecem nos finais das tardes são incapazes de compreender que ela é o génio
daquele sítio calamitoso; um coração que desofusca as sombras do palácio
descalabrado dos Marqueses de Marialva, no qual as famílias mais pobres daquela
freguesia montaram com mendicância as moradas.
Em frente às igrejas da
Encarnação e do Loreto, levantam-se as choças dos energúmenos, porcos
prostíbulos e casas clandestinas de jogo que os bem-aventurados chamam de
Casebres do Loreto: triste desmoronamento do Grande Terramoto de 1755,
convertido em dezenas de barracas infectas que fariam Vitrúvio vagir de
confrangimento e Euclides engolir em seco de incredulidade. Mas sob este
desolado imundo – imundo no sentido
de fora deste mundo –, demolido em
definitivo em 1859, há vozes brilhantes ressoando do íntimo da terra: tons
telúricos que a Estanqueira do Loreto escuta e responde com a doçura das suas
palavras. Oh, Estanqueira! És a minha
filha favorita, o meu melhor invento: quem são estes uxoricidas que, grunhindo,
galhofam da tua fealdade? Desgraçados dos que olham para a Luz e lhe chamam Sombra,
porque estão doentes e os seus olhos já não têm lágrimas para amar. Erguidas
por biltres e galdérias, as alfurjas ordinárias, fedentes a entulho e sucos
sexuais, que cingem a tua espelunca são, no todo, um elemento sagrado. Ai dos
falsos afortunados que por aqui passam e não entendem que és tu, Estanqueira,
que suga a peçonha deste maquiavélico sorvedouro de misérias e o transmuta de
Casebres do Loreto para Santa Casa do Loreto. Eles não entendem o teu mistério
e não sabem o teu nome: Helena.
A Estanqueira do Loreto tem um
nome, afinal de contas.
Helena.
Existem santos secretos cujos
nomes não foram listados pelos sábios em nenhum hagiológio: são hieróglifos
heróicos, estreitas passagens que da tenebrosidade levam à luminosidade.
Helena. O nome evoca
uma significação mais profunda que se superioriza ao plano terreno, mas qual? O
certo é que a Estanqueira do Loreto desapareceu.
Vaporizada para o campo
nublado da mitografia, somente através de perigosos protocolos preternaturais
poderá ser reassumida. Pelo poder da palavra falada, por que não?: arma
oscilobatente dos feiticeiros paleolíticos que verbalizaram magia no âmago das
grutas mais húmidas – tem de tornar-se gasto pela repetição o nome desta mulher
que, nas vésperas da morte, já apartada do estanco anquilosante, sobreviveu
vendendo o corpo no Largo do Calhariz a bêbedos e a rapazes esfomeados de morbidez.
Todos procuravam o narigão para as suas crueldades lascivas; e ora ejaculavam, ora
defecavam, no apendículo harpágico popularizado por Bocage que, segundo um
soneto satírico, tinha tolos sebastianistas como burriés: «montanhoso nariz que ao mundo espantas!». Limpando do «montanhoso nariz» os sémenes e os
excrementos de indivíduos tão desgraçados que, eles próprios, erravam que nem
espectros pelas quelhas da paróquia da Encarnação, a Estanqueira do Loreto, que
nem uma bruxa que vive para o estrume, senta-se no chão, sob o luarejar
lisboeta, e conta as auferidas moedas: mister miserabilíssimo que manteve a
fome à margem nestes últimos resquícios de vida. Oh, Helena! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: quem são
estes desprezíveis que, grunhindo, regozijam com a tua deformidade? Eles não
entendem o teu mistério e não sabem o significado do teu nome: Helena.
A jarreta e repugnante
Estanqueira do Loreto, calhandro com voz de sirena das excreções mais
abomináveis, é Helena, a belíssima esposa de Menelau, rei de Esparta, prometida
por Afrodite ao tíbio Páris e efectiva semeadora do pomo erístico da discórdia
que despertou o derribamento da cidade de Tróia. É Helena, a luminosa mãe do
imperador romano Constantino, salvadora dos destroços do Santo Lenho que, no
século IV, em peregrinação à cidade galileia de Nazaré, encontrou intacto o
humilde casebre em que Maria nasceu e mandou edificar uma basílica que o
albergasse. Esta barraca inteira dentro do invólucro que é o novo templo, qual
pérola dentro de uma ostra, é que é a Santa Casa do Loreto: aquela que,
carregada por anjos através do Céu nos desenhos mais delirantes dos dominicanos,
se alicerça sempre nos locais mais lastimosos. O estanco de Helena é esta casa
de cura: úvula valiosa, envolvida pelo vil véu palatino que são os destroços mariálvicos,
assolados pelo sismo e pelo abrasamento – e tal como na lenda da Santa Casa do
Loreto a representação de Maria resiste imaculada a abalos e a incêndios, que
nem uma gota de espermacete cingida pela corrupção, a estanqueira olisiponense
persiste incólume numa imaginal tabacaria: um rosto beatífico, de tão
monstruoso que é – carantonha que faz gargalhar os poetas, mas cuja riqueza de voz
torna paupérrimos os versos deles.
Essa voz fala connosco.
Diz-nos que há pureza entre a
escória e a escumalha; diz-nos que há definição entre a desordem e o desespero
– diz-nos que se procurarmos atentamente, se olharmos sem receio à nossa volta,
veremos que na mesma valeta onde se abatem os cães também desabrocha aquilo que
os homens encerram de mais cintilante, porque no meio do breu refulge a crosta
estéril da Lua – e, afinal, o nome da Estanqueira do Loreto, gema soterrada na
turfa delinquente, é Helena: palavra
que significa Lua. A Lua tripartida
em Crescente, Plenilúnio e Minguante nos avatares de Virgem, Mãe e Velha –
pintadas com supranaturalismo pelo artista alemão Hans Baldung Grien, em 1510: vaidosas
e alheias à proximidade da Morte. Mas será a Lua um astro tão supérfluo quanto
a vaidade? Uma moeda falsa com a qual somente se compra a loucura e a
licantropia?
Sem a ascendência gravítica da
Lua, torpe satélite que se apresenta eczemático no velo nocturno, nunca se
teria agitado as águas primordiais: foi ela o pilão babayagano que revolveu a
matéria no almofariz que é o globo e que impediu que os ingredientes da vida
sedimentassem infecundos no fundo dos oceanos. Sem a Lua, arrancada da própria
Terra, há cerca de cinco mil milhões de anos por uma bestial colisão com um
corpo astral do tamanho de Marte, nenhum de nós existiria e o mundo seria como
a Lua: um infrutífero planeta, magoado por máculas magmáticas. Sem ela, o orbe
seria uma árida Aceldama: espaço horripilante de ausência e desolação,
eternamente sôfrego por intestinos e cinzas. Mas foi Helena, criadora da Santa
Casa do Loreto, quem se lembrou de usar a terra hostil de Aceldama para
construir, para dar moradas pacíficas aos mortos… Ela é Helena, claro, como já
vimos, mas também Selena, irmã do Sol: amante de pastores como Endímio e Elmano,
musa de poetas como Camões e Bocage, e cujo nome significa…
Luz.
Oh, Lua! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: desgraçados dos
que olham para a tua Luz e lhe chamam Sombra.
É esta luz lunar, esta alvura argêntea,
que descai sobre a matéria mortífera, entenebrecida nas horas em que o Sol se
esconde, e a transmuta espagiricamente em substância salvífica. É por essa
razão que as inócuas imagens de Maria cavalgam uma meia-lua. Sem Lua, meia ou
inteira, não haveria poetas – e Bocage, intuindo essas afinidades antigas,
orbitou em redor de uma antropomórfica lua loretiana, classificando-a como uma
das “Sete Maravilhas do Chiado”. Helena, a Estanqueira do Loreto, a Velha que
minguará em Virgem, é todas as Helenas e todas as luas que existiram e
existirão.
É ela que ilumina os nossos
passos na longa noite da alma. É ela que nos enxota o medo. E, com ingratidão,
é sempre para o seu rosto paligorsquítico que enxotamos os vitupérios vinários,
as secreções sensualistas e os conteúdos coprofílicos, mas a sua imaculabilidade
é refractária a esse refugo. Os olhos da Estanqueira do Loreto são luminárias.
Não há Lágrima nesses olhos, nem Pranto, nem Gritos, nem Dor, porque eles só
reflectem a luz. Reflectem-na e retêm a treva. Assim, renovam todas as coisas.
Qual o siderismo que
supervisiona o destino dos ossos dos poetas? E dos versejados? Outrora mofento
na masmorra museológica, o esqueleto da Estanqueira do Loreto também
desapareceu: esse alicerce do templo que foi o corpo de Helena encontra-se no
mesmo túmulo incógnito que aquartela todas as ossaturas tresmalhadas pelo tempo
– como as dos lunáticos Yeats, Camões e Bocage. Versos que nem vértebras – e,
no entanto, outros alicerces, mais importantes para esta história, ganham força,
em exclusivo, nas nossas imaginações. Estão connosco.
Circulares como um ponto
final, embebidos em amnésico ruído de rua, são uma Lua que ainda emulsiona os
elementos de Lisboa: os nossos destinos individuais, as nossas histórias
colectivas, reunidas numa única e radiante dimensão; como água acumulada num
cálice ou numa sarjeta: num Crescente ou num Minguante.
Estão connosco.
São os alicerces do Santo
Estanco de Helena – a Estanqueira do Loreto: sórdida e sagrada, em simultâneo.
Estão connosco, porque nunca
somos nós que vamos à procura deles.
Não somos.
(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)