terça-feira, 21 de maio de 2013

«Os Anormais»: «A Lua do Loreto» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
O terceiro capítulo, intitulado «A Lua do Loreto», dedicado à desgraçada Estanqueira do Loreto, figura típica lisboeta que morreu no início do século XIX, é, como o capítulo anterior, uma viagem intelectemporal.


A Lua do Loreto


        Circulares como um ponto final, embebidas em amnésico ruído de rua, as ruínas invisíveis dos Casebres do Loreto são uma Lua que ainda emulsiona os elementos de Lisboa: buzinas de automóveis, risos de mulheres, sabores artificiais provenientes de uma adjacente gelataria – mas também pedras extintas, sangue antigo – tão alucinatório quanto mênstruo estroboscópico – e surtos fantasmas de sofrimento.

Sob estes rios de turismo e alcatrão, lado a lado aos pisos inferiores do parque de estacionamento do Chiado, hibernam esqueletos de soldados ducentistas, alguns agarrando teimosamente a tecnologia do seu tempo: lâminas fósseis, exóticas quanto cascas de pré-históricos coleóides vampiromorfos, tão entorpecidas quantos os sestércios que polvilham como pimenta a sedimentar estratocracia da Praça Luís de Camões. Pudendágrico, o vulto desse vate é um cenotáfio de seres esquecidos pelas gentes que, animadas por atavismo psicogeográfico, se conglutinam nas actuais noites de fins-de-semana para elucubrarem ébrios elmanismos: a topografia é destino e a freguesia da Encarnação é a morada celeste do satiríaco Bocage, que dela fez uma Nova Arcádia de deboche e deleitação.

Do alto do seu sadino monumento, erguido em 1871 na Praça de Bocage, imunizante mausoléu de destroços romanos relacionados com a confecção de garum, a imagem do autor de Queixumes do Pastor Elmano Contra a Falsidade da Pastora Urselina parece um gémeo alabastrino do antracítico Camões, esculpido quatro anos antes. Societários nas estaturas estatuárias e poéticas, estes leptocéfalos partilham o túmulo incógnito que aquartela todas as ossaturas tresmalhadas pelo tempo: nem um, nem outro, das alturas em que se empoleiram, como tótemes de religiões secretas ou páreos muitíssimo escantilhados, vislumbram os seus restos mortais. Desidratados pela sequidão das eras, os ossos de Bocage e Camões são palinfrasias – paronomásicos aos do bardo irlandês William Butler Yeats, esmadrigados num ossuário occitano.

Qual o siderismo que supervisiona o destino dos ossos dos poetas?

Versos que nem vértebras – e, no entanto, outro esqueleto, mais importante para esta história, ganha pó no Museu de Anatomia do Hospital de São José: desfigurado pela ancilose, o crânio grotesco já não apresenta o nariz apossemático, cujos espirros Bocage definira como sendo autênticos terramotos. A sua signografia tecidual, quasi-lunar de tão craterizada, testemunha uma vida lamentável, findada entre o entulho e as esmolas no Largo do Calhariz, situado a pouca distância dos deploráveis Casebres do Loreto onde estes ossos, enquanto sustentáculo de carne de mulher, foram donos de um estanco. Exibido como se fosse o esqueleto de um macaco, indigno é o tributo prestado – pelos que dela se riram – à Estanqueira do Loreto. À horrível Estanqueira do Loreto.

Quem é esta corcunda, de dedos torcidos como caudas de ratazanas, que fede ao tabaco que mercadeja no seu cubículo apertado onde mal lhe cabe a alma? O seu retrato, a preto-e-branco, publicado na revista Ilustração Portuguesa de Dezembro de 1923, no artigo “Retratos d’Alguns Tipos Populares Portugueses”, que também conjectura sobre como seria a fisionomia do Anão dos Assobios, copia, de modo ainda mais hediondo, a imagem colorida que decorava uma tampa de caixa de rapé pertencente ao rei D. Pedro V: nessa efígie, a Estanqueira do Loreto supera em feiura a Duquesa Margarete do Tirol, pintada em 1513 pelo artista holandês Quentin Matsys, normalmente considerada a “mulher mais feia da História”. Todavia, este quadro medonho de Matsys poderá ser somente uma alegoria da Vaidade, talvez inspirada pela leitura de Elogio da Loucura, escrito dois anos antes pelo seu compatriota Erasmus de Roterdão, o que fará da Estanqueira do Loreto a verdadeira “mulher mais feia da História”. Pagética, dissimétrica, retinacular e embrulhada como se fosse a cabeça decepada de Medusa, a carranca pintada para a caixa de rapé evoca a Terceira das Idades Femininas popularizadas pelo escritor inglês Robert Graves no livro A Deusa Branca: o estádio a que chamou de Velha. O nome inglês desta Velha, comparada por Graves ao Quarto Minguante, é crone, nome que deriva da palavra francesa caroigne que tem a dupla significação de carne morta e mulher molesta. A Velha que estiola a luxúria masculina é equivalente à carne morta: «Aquele que comer essa carne morta ficará impuro». De útero inútil, a Estanqueira do Loreto é Elli, a Velha capaz de derrotar campeões priápicos da estirpe de Thor; é Baba Yaga, a estriga canibal do folclore eslavo que voa agarrada a um pilão num almofariz – é, pois, uma bruxa, cujas tetas são balofas almofadas, recheadas de esterco, que nasce no estrume e vive para o estrume. E, no entanto, sob o medonho córtex que lhe envolve as entranhas, espantoso eidolon de espavento que faz tremelicar de nojo os fregueses mais influenciáveis, soa uma verdadeira voz de ouro.

O verbo de fada da repelente Estanqueira do Loreto resplandece mais que as setecentistas fitas de Sol que iluminam o estanco pelas frinchas nas madeiras, pois estas poluem-se com o pó que revoa, mas nada emporcalha a voz da vendedora de tabaco, porque o espírito dela é o oposto do seu feio aspecto. É esta Befana crisóstoma que os boémios e os poetas, saídos das tabernas, apupam quando passam à entrada do estanco – mas quando a ouvem falar com eles, uma vergonha incómoda, macia como bosta, escorrega-lhes pelas espinhas abaixo e sentem-se insignificantes. «A luminária do corpo é o olho, se o teu olho estiver são, todo o teu corpo andará cheio de Luz; porém se o teu olho for mau, todo o teu corpo andará cheio de Treva.» Os olhos da Estanqueira do Loreto são luminárias que reflectem a luz: os infelizes clientes que torcem o nariz ao pôr-lhe a vista em cima, os rapazinhos que desfezam e urinam à sua porta e os valdevinos que dela escarnecem nos finais das tardes são incapazes de compreender que ela é o génio daquele sítio calamitoso; um coração que desofusca as sombras do palácio descalabrado dos Marqueses de Marialva, no qual as famílias mais pobres daquela freguesia montaram com mendicância as moradas.

Em frente às igrejas da Encarnação e do Loreto, levantam-se as choças dos energúmenos, porcos prostíbulos e casas clandestinas de jogo que os bem-aventurados chamam de Casebres do Loreto: triste desmoronamento do Grande Terramoto de 1755, convertido em dezenas de barracas infectas que fariam Vitrúvio vagir de confrangimento e Euclides engolir em seco de incredulidade. Mas sob este desolado imundo – imundo no sentido de fora deste mundo –, demolido em definitivo em 1859, há vozes brilhantes ressoando do íntimo da terra: tons telúricos que a Estanqueira do Loreto escuta e responde com a doçura das suas palavras. Oh, Estanqueira! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: quem são estes uxoricidas que, grunhindo, galhofam da tua fealdade? Desgraçados dos que olham para a Luz e lhe chamam Sombra, porque estão doentes e os seus olhos já não têm lágrimas para amar. Erguidas por biltres e galdérias, as alfurjas ordinárias, fedentes a entulho e sucos sexuais, que cingem a tua espelunca são, no todo, um elemento sagrado. Ai dos falsos afortunados que por aqui passam e não entendem que és tu, Estanqueira, que suga a peçonha deste maquiavélico sorvedouro de misérias e o transmuta de Casebres do Loreto para Santa Casa do Loreto. Eles não entendem o teu mistério e não sabem o teu nome: Helena.

A Estanqueira do Loreto tem um nome, afinal de contas.

Helena.

Existem santos secretos cujos nomes não foram listados pelos sábios em nenhum hagiológio: são hieróglifos heróicos, estreitas passagens que da tenebrosidade levam à luminosidade.

Helena. O nome evoca uma significação mais profunda que se superioriza ao plano terreno, mas qual? O certo é que a Estanqueira do Loreto desapareceu.

Vaporizada para o campo nublado da mitografia, somente através de perigosos protocolos preternaturais poderá ser reassumida. Pelo poder da palavra falada, por que não?: arma oscilobatente dos feiticeiros paleolíticos que verbalizaram magia no âmago das grutas mais húmidas – tem de tornar-se gasto pela repetição o nome desta mulher que, nas vésperas da morte, já apartada do estanco anquilosante, sobreviveu vendendo o corpo no Largo do Calhariz a bêbedos e a rapazes esfomeados de morbidez. Todos procuravam o narigão para as suas crueldades lascivas; e ora ejaculavam, ora defecavam, no apendículo harpágico popularizado por Bocage que, segundo um soneto satírico, tinha tolos sebastianistas como burriés: «montanhoso nariz que ao mundo espantas!». Limpando do «montanhoso nariz» os sémenes e os excrementos de indivíduos tão desgraçados que, eles próprios, erravam que nem espectros pelas quelhas da paróquia da Encarnação, a Estanqueira do Loreto, que nem uma bruxa que vive para o estrume, senta-se no chão, sob o luarejar lisboeta, e conta as auferidas moedas: mister miserabilíssimo que manteve a fome à margem nestes últimos resquícios de vida. Oh, Helena! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: quem são estes desprezíveis que, grunhindo, regozijam com a tua deformidade? Eles não entendem o teu mistério e não sabem o significado do teu nome: Helena.

A jarreta e repugnante Estanqueira do Loreto, calhandro com voz de sirena das excreções mais abomináveis, é Helena, a belíssima esposa de Menelau, rei de Esparta, prometida por Afrodite ao tíbio Páris e efectiva semeadora do pomo erístico da discórdia que despertou o derribamento da cidade de Tróia. É Helena, a luminosa mãe do imperador romano Constantino, salvadora dos destroços do Santo Lenho que, no século IV, em peregrinação à cidade galileia de Nazaré, encontrou intacto o humilde casebre em que Maria nasceu e mandou edificar uma basílica que o albergasse. Esta barraca inteira dentro do invólucro que é o novo templo, qual pérola dentro de uma ostra, é que é a Santa Casa do Loreto: aquela que, carregada por anjos através do Céu nos desenhos mais delirantes dos dominicanos, se alicerça sempre nos locais mais lastimosos. O estanco de Helena é esta casa de cura: úvula valiosa, envolvida pelo vil véu palatino que são os destroços mariálvicos, assolados pelo sismo e pelo abrasamento – e tal como na lenda da Santa Casa do Loreto a representação de Maria resiste imaculada a abalos e a incêndios, que nem uma gota de espermacete cingida pela corrupção, a estanqueira olisiponense persiste incólume numa imaginal tabacaria: um rosto beatífico, de tão monstruoso que é – carantonha que faz gargalhar os poetas, mas cuja riqueza de voz torna paupérrimos os versos deles.

Essa voz fala connosco.

Diz-nos que há pureza entre a escória e a escumalha; diz-nos que há definição entre a desordem e o desespero – diz-nos que se procurarmos atentamente, se olharmos sem receio à nossa volta, veremos que na mesma valeta onde se abatem os cães também desabrocha aquilo que os homens encerram de mais cintilante, porque no meio do breu refulge a crosta estéril da Lua – e, afinal, o nome da Estanqueira do Loreto, gema soterrada na turfa delinquente, é Helena: palavra que significa Lua. A Lua tripartida em Crescente, Plenilúnio e Minguante nos avatares de Virgem, Mãe e Velha – pintadas com supranaturalismo pelo artista alemão Hans Baldung Grien, em 1510: vaidosas e alheias à proximidade da Morte. Mas será a Lua um astro tão supérfluo quanto a vaidade? Uma moeda falsa com a qual somente se compra a loucura e a licantropia?

Sem a ascendência gravítica da Lua, torpe satélite que se apresenta eczemático no velo nocturno, nunca se teria agitado as águas primordiais: foi ela o pilão babayagano que revolveu a matéria no almofariz que é o globo e que impediu que os ingredientes da vida sedimentassem infecundos no fundo dos oceanos. Sem a Lua, arrancada da própria Terra, há cerca de cinco mil milhões de anos por uma bestial colisão com um corpo astral do tamanho de Marte, nenhum de nós existiria e o mundo seria como a Lua: um infrutífero planeta, magoado por máculas magmáticas. Sem ela, o orbe seria uma árida Aceldama: espaço horripilante de ausência e desolação, eternamente sôfrego por intestinos e cinzas. Mas foi Helena, criadora da Santa Casa do Loreto, quem se lembrou de usar a terra hostil de Aceldama para construir, para dar moradas pacíficas aos mortos… Ela é Helena, claro, como já vimos, mas também Selena, irmã do Sol: amante de pastores como Endímio e Elmano, musa de poetas como Camões e Bocage, e cujo nome significa…

Luz.

Oh, Lua! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: desgraçados dos que olham para a tua Luz e lhe chamam Sombra.

É esta luz lunar, esta alvura argêntea, que descai sobre a matéria mortífera, entenebrecida nas horas em que o Sol se esconde, e a transmuta espagiricamente em substância salvífica. É por essa razão que as inócuas imagens de Maria cavalgam uma meia-lua. Sem Lua, meia ou inteira, não haveria poetas – e Bocage, intuindo essas afinidades antigas, orbitou em redor de uma antropomórfica lua loretiana, classificando-a como uma das “Sete Maravilhas do Chiado”. Helena, a Estanqueira do Loreto, a Velha que minguará em Virgem, é todas as Helenas e todas as luas que existiram e existirão.

É ela que ilumina os nossos passos na longa noite da alma. É ela que nos enxota o medo. E, com ingratidão, é sempre para o seu rosto paligorsquítico que enxotamos os vitupérios vinários, as secreções sensualistas e os conteúdos coprofílicos, mas a sua imaculabilidade é refractária a esse refugo. Os olhos da Estanqueira do Loreto são luminárias. Não há Lágrima nesses olhos, nem Pranto, nem Gritos, nem Dor, porque eles só reflectem a luz. Reflectem-na e retêm a treva. Assim, renovam todas as coisas.

Qual o siderismo que supervisiona o destino dos ossos dos poetas? E dos versejados? Outrora mofento na masmorra museológica, o esqueleto da Estanqueira do Loreto também desapareceu: esse alicerce do templo que foi o corpo de Helena encontra-se no mesmo túmulo incógnito que aquartela todas as ossaturas tresmalhadas pelo tempo – como as dos lunáticos Yeats, Camões e Bocage. Versos que nem vértebras – e, no entanto, outros alicerces, mais importantes para esta história, ganham força, em exclusivo, nas nossas imaginações. Estão connosco. 
  
Circulares como um ponto final, embebidos em amnésico ruído de rua, são uma Lua que ainda emulsiona os elementos de Lisboa: os nossos destinos individuais, as nossas histórias colectivas, reunidas numa única e radiante dimensão; como água acumulada num cálice ou numa sarjeta: num Crescente ou num Minguante.

Estão connosco.

São os alicerces do Santo Estanco de Helena – a Estanqueira do Loreto: sórdida e sagrada, em simultâneo.

Estão connosco, porque nunca somos nós que vamos à procura deles.

Não somos.

            São eles que vêm – sempre – ao nosso encontro.


(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)