Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
Assim, começo com a publicação da faixa «Terra Incógnita», primeiro capítulo do disco - acompanhado do texto integral respectivo. Em breve, seguir-se-ão os restantes.
Terra Incógnita
Quando uma cidade quer nascer,
ela escolhe o local – aquilo que os homens desejam não interessa nada. A
metrópole molda-se, eternamente, à semelhança de uma divindade – e na sua
configuração residem todas as dimensões da vida; inclusive as invisíveis. As
laborações que têm lugar dentro dos seus muramentos são momentâneas,
contingentes e dialipetálicas, mas o traçado urbícola sobre as quais se
extinguem, era após era, encerra persistência cósmica. Na cidade, uma cultura cunha
carácter, abre alicerces, alcança esquadria e transporta-nos da selva selvagem
para a civilização. O burgo é como um mundo dentro do mundo e este interjeita-se
no texto da história de acordo com o protótipo cosmopolita.
Além das casas e das praças,
longe da muralha feita de cheiro e ruído, difunde-se um desolado terral
desconhecido: a terra ignota,
denunciada pela primeira vez no ano 150 por Cláudio Ptolemeu na sua Geografia. Subúrbios umbrícolas – sílabas
soltas da urdidura urbanita, habitadas por hipopótamos, elefantes e escorpiões,
canibais e outros vira-casacas: «aqui há
leões». Os monstros dos mapas são marginais imaginários que vinculam a
fronteira entre a terra incógnita e a realidade dos indivíduos que é, em
exclusivo, composta pelos territórios dominados pelo seu rei – aquele que
governa, graças ao beneplácito sagrado, e cujo título substantiva as regiões
conhecidas.
A anatomia da realidade é influenciada por um importante conceito
aristotélico, sob o qual uma coisa só existe quando a forma é adicionada à
matéria: esta é passiva, prisioneira da potencialidade, e a forma activa liberta-a.
Por este ponto de vista, só existem as coisas que possuem formas definidas. Mas
as formas aristotélicas não são os fenótipos dos organismos e dos objectos: são
os seus tipos essenciais e já contém o desígnio final. Todas procuram
constantemente a nobre ideia nelas contida – e quanto mais próximas dela, mais
etéreas se tornam, porque a ideia ideal é Deus: ditatorial manancial de
movimento que modela o mundo à Sua imagem. Este é o significado da serpente
ourobórica e do lema dos alquimistas «o uno é o todo», mas é aqui,
também, que se aloja a convicção discriminante de que os deformados
monstrengos, avessos às formas ideais, não têm almas, porque, segundo Agostinho
de Hipona, elas têm nojo de formas imperfeitas. De formas indefinidas. No
extremo, de formas anormais.
A
palavra anormal significa, literalmente, sem esquadria e
entenda-se que o anormal é marginal, porque não há lugar para ele no centro;
daí que se oculte nas fímbrias dos mapas e nos subúrbios, onde se ocupa do
papel de estandarte de perigos vários, como um vulgar sinal de trânsito. A
força gravítica do centro é o ritual, nos seus mais diversos feitios, mas o
anormal é, por natureza, anti-ritual, em virtude da sua essência extraordinária
– extraordinária no sentido de fora da rotina. Para desenhar-se o
mapa da realidade é, antes de tudo, indispensável depreender o que é a forma e o
que é a falta dela. Em suma, o que é ordem e o que é caos – e como aquela pode,
com facilidade, transformar-se neste. A presença no centro do anormal, esse
monstro diário – trivializado –, cancela o conceito de comunidade como
agregador de potência civilizacional – afronta a lei natural que assiste ao
nascimento da ordem e mostra-nos um espelho que somente reflecte a balbúrdia da
biologia.
No
anormal, tudo é orgânico, corpóreo, elementar – grotesco. A doença, por
exemplo, é um estado excepcional de anormalidade, mas o enfermo retorna
saudável ao centro quando é sanado. Em oposição, a anormalidade é uma genuína
irregularidade que, quando irrompe, imediatamente questiona a lei – revê-a.
O indivíduo anormal é um híbrido de humano e animal, logo uma monstruosidade. É
um ser interstício, como os leões dos mapas, que tanto pode evocar a pena do
observador como a sua repugnância, porque nada é mais repulsivo que algo que
desafia a norma; algo que se apresenta de um modo inteiramente oposto ao previsto
– algo em que tom, textura e temperatura são contrários ao que era esperado.
Os
mecanismos de correcção voltados contra os anormais almejam mais a sua
ocultação que a sua integração. Ninguém aceita beber o próprio cuspo, vertido
antes para dentro de um copo, mesmo sabendo que o fluído é seu e que não
contactou, em momento algum, com agentes poluentes: uma vez proscrito – descentrado
– o elemento anormal, seja ele qual for, humano ou não-humano, nunca poderá
regressar ao local de onde procedeu. A verdade é que quando as cidades são
iluminadas pela glória do seu deus, que nem a Jerusalém Celeste – local
restrito de bem-aventurança –, nelas não entrará ninguém considerado impuro,
mas unicamente quem estiver inscrito no Livro da Vida do Cordeiro.
Só
os inscritos poderão entrar – nunca os proscritos.
Sob
as resplandecentes muralhas de jaspe da Jerusalém Celeste, incrustadas de
berilo, safira, ametista e sardónica, erguem-se as – nada celestes – barracas
dos excluídos: bairros da lata do sagrado onde a anormalidade, conspícua, quase
se torna normal.
Vamos
visitar os volutabros imaginais de Lisboa.
Vamos
ver que anormais ela excluiu para a cercania – para os arrabaldes dos anais. Não
será tanto etnologia, como reologia, pois falamos de gente deformada que foi
repassada e escoada pela memória da história, mas como observar essa memória e
essa história? De acordo com os fundamentos da “história total”, propostos por
Braudel e, antes dele, por Michelet?
É
melhor confiar na diacronia.
É
melhor assumir que, tal como astrónomos, estamos a olhar para luzes
pré-históricas, emitidas por estrelas extintas.
Estrelas
defuntas como o desgraçado setecentista Gracioso das Bexigas que, com as suas
patetices e o incessante berro de «arre-burrinho», regalava os
transeuntes nos dias de procissões. Estrelas defuntas como o Poeta de Xabregas,
obeso frade mariano que, em meados do século XVIII, agarrando um relicário e
uma imagem da Virgem, andava de tasca em tasca a reclamar contra as touradas
que roubavam público às missas: «está tudo com os cornos e a Casa de Deus
sem ninguém», vociferava para gáudio da garotada e dos inebriados. Estrelas
defuntas como o infeliz pai que, no século XIX, arrastava todos os dias o filho
doente de igreja em igreja para assistirem ao maior número possível de sacramentos:
debilóide, o rapazinho anexava o seu riso aos dos múltiplos paroquianos que troçavam
do homem, apelidando-o de Papa-Missas, e, virando-se para o pai, gritava
repetidas vezes «não é Papa-Missas, é Papa-Merda». Estrelas defuntas como
as infelizes irmãs órfãs Carolina e Josefina, as Manas Perliquitetes, que, em
meados do século XIX, depois de serem exploradas até à exaustão por um canalha
desprezível que lhes deu a ridícula alcunha, tornaram-se injustamente no
arquétipo da dondoca, antes de morrerem de fome na maior das misérias. Estrelas
defuntas como o inexplicavelmente indigente José das Caixinhas, o Mano das
Manas, sujeito magérrimo, escalavrado e esfarrapado, que vendia lindíssimas caixas
coloridas feitas com arte em cartão e papel encontrados no lixo. «É para as
manas, muita pobreza», apregoava: «comprem que é para as manas».
Quem eram as manas? Ninguém sabia – e, a quem lhe perguntava, o Mano das Manas
somente respondia: «estão muito doentes… Muito trabalho. Muita miséria».
Ninguém acreditava nele e riam-se-lhe na cara, desprezando as fabulosas
caixinhas multicolores que ele acarretava penosamente às costas, sem nunca as
amarrotar; às vezes, até aos últimos andares dos prédios mais altos, à procura
de clientes. E, no entanto, as manas – duas – existiam mesmo: no número 22 da
Rua do Carrião, na freguesia de São José. Foram descobertas, já falecidas de fome,
pouco tempo depois do Mano ter morrido e deixado de sustentá-las com o artesanato
amoroso.
Vergonha,
amargura, tristeza. Plangências profundas que envolvem os espíritos.
Que
cidade é esta?
Esta
não é a Lisboa que nos foi prometida à esplêndida portada, feita de jaspe.
Estas
não são as personagens castiças do folclore que ela engendra para gazofilar
turistas.
Há angústia
autêntica aqui. Mensagens de sofrimento real, escrevinhadas no pó. Dor e raiva
verdadeiros – espremendo corações nos peitos.
Quando uma cidade quer nascer,
ela escolhe o local – aquilo que os homens desejam não interessa nada. A
metrópole molda-se, eternamente, à semelhança de uma divindade – e na sua
configuração residem todas as dimensões da vida; inclusive as invisíveis.
E
nós estamos no invisível cosmos dos anormais.
Um
Inferno inescrutável.
Antes
de chegarmos, nada perturbava este espaço morrinhento, mas agora é possível
distinguir dois distantes lampejos que nos iluminarão o caminho. Despertámos
duas melancólicas presenças do passado que, como dois quasares que o vácuo não
teve forças para apagar, possuem luz suficiente, balastro memorativo
suficiente, para serem a voz de todos aqueles que já a perderam. Para serem
nossos Virgílios.
A
escuridão dilui-se à aproximação destas luzes inseguras. Os contornos
indistintos dos séculos transactos acentuam-se, como estampas talhadas de
fresco. Passando o estável proscénio em que nos achamos, vamos cobrir os
narizes e avançar para estes pestíferos panoramas.
(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)