quarta-feira, 22 de maio de 2013

«Os Anormais»: «Sol Invicto» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
O quarto e último capítulo, intitulado «Sol Invicto», consiste numa generosa invocação de todos os anormais olisiponenses que, aqui, após séculos de esquecimento, retornam numa procissão "grand-guignolesca" à cidade que os rejeitou, mas à qual nunca deixaram de pertencer.
Espero que a publicação dos textos integrais de «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense» tenha oferecido uma dimensão ainda mais palpável e especial ao universo plasmado no disco; um universo que, embora não pareça, também é o nosso.

Sol Invicto

            Vêm ao nosso encontro.

Vemo-los ao longe, saindo da sombra para a claridade.

Os fazedores de poesia – os fazedores de sonhos.

O que está em cima contemplará o que esteve em baixo.

Eles vêm ao nosso encontro!

Outrora navegantes isolados no oceano do oblívio, gente rejeitável que a civilização abandonou, ei-los a regressar a esta restritiva Jerusalém Celeste que lhes foi cruel – a esta Lisboa madrasta que se enegrece à estimação destes subordinacionistas inseparáveis para quem o Verbo não é uma criatura perfeita, mas irregular, sutural, defeituosa.

Despertados pela nossa digressão diacrónica neste monturo, do fundo da escória para a qual foram lançados pelos inscritos, todos os anormais de Lisboa se juntam ao plutónico Anão dos Assobios e à lunícola Estanqueira do Loreto neste entremeio que diferencia a história da memória, separa a ficção do facto e está a meio-caminho da lenda. A acústica admirável da algazarra dos residentes deste arrabalde ad-rectal adossa a alvenaria da muralha olisiponense e fá-la mesurar numa vénia a estes vetustos vagabundos. Uma sucessão detonante de espectros que um a um contagiam a capital com a praga da relembrança.

Pode a inexpugnável Lisboa Celeste ser conquistada – aqui?

Num lance faustoso? Por esta gente destemida?

Oh, Lisboa! Cabeça da Europa, janela do Ocidente, porto do Graal – os anormais, escumalha que o refluxo do tempo trouxe novamente às tuas muralhas, vão regenerar-te.

Vão regenerar-te, porque trazem ouro.

Trazem ouro nas almas.

Vestidas com as mais chiques saias de folhos, casacos (um pouco coçados) com rosas nas botoeiras e agarrando pequeninas malas-de-mão, Carolina e Josefina, as Manas Perliquitetes, apresentam-se à cabeça do cortejo – tornadas ainda mais coquetes pela pele polvilhada por fécula cemiterial. Atrás delas, o escaveirado Papa-Missas sorri pela primeira vez em séculos ao ver que o seu filho ri, não de loucura, que é coisa dos vivos, mas de alegria. Quem lhe põe uma mão amiga e descarnada num ombro é o Poeta de Xabregas, feito magro pela putrefacção; na outra mão, ostenta a velhíssima imagem da Virgem que foi com ele para o caixão e essa estátua, despoluída de caruncho, nunca pareceu tão sublime. De braços dados ao deteriorado José das Caixinhas vão as suas duas Manas, melhor conservadas: os três entreolham-se, enlevados, e só a ardência emitida pelas expressões de felicidade fraternal iluminam todo o baldio, como se trouxessem um Sol só seu.

Um Sol invicto.

Invicto pela mesquinhez e pela miséria, mas também invicto pela infortuna e pela inveja. Um novo Sol para um inédito e coruscante instante; irrepetível e, por isso, inestimável. Olhando para além dos irmãos é possível ver que muitos outros antigos anormais de Lisboa se juntaram ao irresistível chamamento.

Um deles, de cabelo ainda tão amarelo quanto cristais de wagnerite, é o indescritível Joaquim Oliveira, o famigerado Barata Loura, cuja ambição maior na vida foi “dar nas vistas” e que chegou a ser caricaturado por Rafael Bordallo Pinheiro no jornal satírico O António Maria; vem com a sua famosa bengala de duas libras e meia, na altura a mais cara, que comprou só para mandar cortar-lhe o castão ao meio. Ainda fedendo a esgoto, o putrescente Luciano das Ratas observa intrigado esse bordão mutilado enquanto vai contando, com dedos ossudos e experientes, quantas moedas extraviadas recobrou dos enredados labirintos de caneiros; guarda-as numa bolsa que tem dependurada à cintura, anexa às dezenas de ratazanas liquidadas que são os reclames do seu ofício. Achando que o raticida não amealhou o suficiente, o bexigoso e vesgo Rei Wamba, não dos Visigodos, mas dos arrendatários do Chiado, imortalizado por Eça de Queirós no livro póstumo A Capital, quer oferecer-lhe uma mão cheia de meias-coroas e vermes que encontrou num dos bolsos, fazendo jus à generosidade pela qual ficou conhecido em vida. De semblante mais bisonho, porque lhe falta a mandíbula, vem atrás deles o inquieto Traga-Bolas, extravagante vadio que, pelo Bairro Alto, acabava as noitadas em intensa porrada com os pretendentes a fadistas e o rapazio armado de navalhas que iam beber o pequeno-almoço aos botequins da Calçada da Bica Grande; nos braços escanifrados que foram os piores pesadelos de quem andou com ele à bulha, carrega com doçura o esqueleto do pobre polícia que matou com um único soco. Matador e matado são um Dióscuro, porque aqui, na grandiosa agregação dos banidos, todos os crimes são perdoados e todos os indivíduos são absolvidos. Aqui a relva é sempre verde – e cada momento é uma lança arremessada pelo Sol.

Quase ficando para trás por culpa de um dos achaques convulsionários do costume, o zinzilulante Homem-Macaco, que costumava saltar com espantosa energia para as varandas das casas durante os episódios de, lá está!, macacoas, está a receber das mãos do curandeiro benevolente Barão de Catânia um titanífero balde de água para apaziguar a sede tremenda de que sempre padeceu; a água choca escorre-lhe pelo queixal e pelos alvéolos abertos pelo apodrecimento nas prelúcidas costelas. Montada no seu inconfundível jerico, vestida de cores farfalhudas, com uma touca de folhos sobre a qual colocou um velho e desmedido chapéu de palha, passa por eles a Madame Collaço, incompetente preceptora de meninas que foi pioneira do feminismo, juntamente com a respeitadíssima Preta Fernanda, a quem dá boleia por causa dos dolorosos joanetes; esta cadaverina comparsa cabo-verdiana, de nome Andressa do Nascimento, predilecta de Eça de Queirós nas saídas nocturnas para os teatros e para as tertúlias intelectuais, foi imortalizada numa estátua de bronze no pedestal do monumento ao Marquês de Sá da Bandeira, abolidor da escravatura. Ao lado delas, sem vultuosidade e puxando as rédeas do jumento, vai a pé José Collaço, o filho da cavaleira, que expirou doido numa cela exígua do manicómio de Rilhafoles; é seguido pelo Gracioso das Bexigas, esse macrocéfalo mais-que-tudo, que, aos saltos e batendo com os metacarpos nas ancas, alenta o asno com o seu habitual adágio de «arre-burrinho». Sobre uma rocha, junto à entrada principal da cidade e beneficiando de um ponto de vista elevado, encarrapita-se o estupendo Sempre-Noivo pintando a óleo a comitiva completa numa tela do tamanho de um selo; pasmoso pintor da Lisboa nocturna, ele é capaz de, literalmente, estampar sem olhos a cena.

Aqui, a realidade não é a dominada pelos reis, nem a demarcada por racimosos reinos a eles consagrados pelos navegadores pós-medievais, mas a de um vastíssimo continente impossível de cartografar e onde convergem desiguais grandezas de lengalenga e fantasmagoria. Há música aqui, arreigada às vozes destes mortos simultâneos que parecem falar num prolépsico dialecto que soa a preguear de penas e brindes em copos de cristal. E, sobre todos, sobre a estupefacção esperançosa que os anima, está o Sol só deles.

O Sol invicto.

Invicto pelo sarcasmo e pela sordidez, mas também invicto pela violência e pela injustiça. Um Sol perfeito para uma insólita e rutilante ocasião; comburente e, por isso, inapreciável. Olhando para além das mulheres, dos homens e do asno, é possível ver que, como fósseis outrora cativos por grades estratigráficas ainda mais fundas, muitos outros anormais de Lisboa se aliaram à invencível convocação.

Antes dos anormais entrarem novamente em Lisboa, sem terem a certeza de que voltam para ficar, o trofoneurótico Mano das Manas aproxima-se de nós e oferece-nos com amabilidade uma caixinha de papelão pintado: as suas mãos aleijadas são pútridas, consumidas pelos sarcofamintos, mas a caixa resplandece com a luz imensa do Sol Invicto em escalas mais excelsas que as das jóias da Jerusalém Celeste. A pulcritude desse presente é tremenda – chamejante – e espiritualiza-nos os corações.

Eles trazem ouro. Trazem ouro nas almas.

As horas avançam.

O que esteve em baixo é como o que está em cima.

A procissão dos anormais é mais longa do que parecia – e a luz do Sol Invicto descasca-se agora como desgastado papel de parede sobre o horizonte. A noite aproxima-se, mas a caixa variegada, ainda por abrir, é leve nas nossas mãos.

Tão leve que parece vazia.

Mas não está.

Abrimo-la.

Olhamos lá para dentro.

Não está vazia. Está cheia.

Cheia de significado.

Cheia de revelação.


(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)