sábado, 21 de fevereiro de 2015

O Vício da Gravidade


Em 2009, assim que saiu, li o romance Inherent Vice, de Thomas Pynchon, um dos autores que mais admiro, mas, admito, tenho pouquíssimas memórias desse livro atípico na obra do escritor norte-americano. Tenho uma noção diluída do enredo e de algumas personagens e situações que considerei mais interessantes, mas teria de relê-lo para refrescar a memória, quanto ao panorama. O problema é que o livro -- para o padrão fixado por Pynchon -- é demasiado ligeiro e até superficial: é, somente, uma história rocambolesca, semipolicial, semi-humorística, sobre alguns arquétipos da subcultura norte-americana de inícios da segunda metade do século XX e, sobretudo, demasiado esquecível, se é que me faço entender. Depois da publicação do genial e muito bem arquitectado Against the Day, um extraordinário romance, gigantesco em páginas e em ambição, este Inherent Vice foi uma desilusão e pêras.

Penso que Pynchon, conhecido por estar muitos anos sem publicar nenhum romance novo, quis, dessa vez, reduzir o tempo de espera dos seus leitores publicando um novo título -- apressado -- apenas com três anos de intervalo em relação à obra anterior (entre Against the Day e Mason & Dixon estão, retrospectivamente, nove anos de distância -- e dezassete anos entre Vineland e Gravity's Rainbow). Daí que não me surpreende que Inherent Vice, um "Pynchon light", seja a primeira escolha de Hollywood para uma adaptação cinematográfica do universo autoral deste escritor singular.

Todavia, para o espectador comum, Inherent Vice, realizado pelo interessante Paul Thomas Anderson, não será tão ligeiro quanto isso, porque o filme está a ser criticado por ser demasiado complexo e não-linear. Ora, bem: palavras como "complexo" e "não-linear" são música para os meus ouvidos, por isso lá terei de ir ao cinema comprovar se os críticos e o público têm razão.


Gostava, não obstante, que Hollywood tentasse filmar uma adaptação de Gravity's Rainbow, publicado em 1973 e rejeitado para o Prémio Pulitzer por culpa de uma sequência sadomasoquista de sexo coprofágico entre as personagens Katje Borgesius (uma agente dupla holandesa que é, em simultâneo, uma escrava sexual de um oficial da SS) e o submisso Brigadeiro Ernest Pudding; acrescente-se os laivos de zoofilia que envolvem pelo pescoço e pela cintura a bombástica Katje Borgesius e o estrambótico polvo Grigori, condicionado pavloviamente para atacá-la numa praia da Côte d'Azur (evento do qual é salva pelo protagonista Tyrone Slothrop, que distrai Grigori com um apetitoso caranguejo) -- uma passagem que evoca, de imediato, a arte shunga (estilo erótico japonês, cognato da nossa palavra chunga, que significa reles ou ordinário) do artista japonês Hokusai; em principal, a peça oitocentista Tako te Ama (O Sonho da Mulher do Pescador), mas, de igual modo, certas capas de revistas pulp norte-americanas, como a Spicy Adventure Stories, acervo de bizarras aventuras lascivas, editada nos anos trinta pela Culture Publications.

Considerando que Gravity's Rainbow data de 1973 e as mangas revolucionárias de Toshio Maeda, pai do género Hentai de banda desenhada japonesa, só apareceram em meados dos anos oitenta e inícios dos anos noventa, Pynchon será, na verdade, o primeiro autor a introduzir o sexo tentacular na cultura ocidental -- e, de chofre, no campo da literatura erudita. Aliás, tenho quase a certeza que os bonzos bem-pensantes que gostam muito de apregoar à boca cheia a sua admiração por Pynchon, enquanto crachá cultural, nunca leram, de facto, as tropelias tentaculíferas e escatofágicas de Gravity's Rainbow (entre outros desatinos de alto apuro que lá se encontram), com mais pontos em comum com os universos marginais de alguma literatura fantástica do que com a comoditização de costumes e conceitos domesticados que, hoje, infelizmente, passa por "boa" literatura.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Coisas


Adoro a mitologia criada em órbita da entidade extraterrestre chamada, laconicamente, "Coisa": espécie de predador cósmico, sem forma e linguagem definidas, cujo método de reprodução consiste na assimilação trófica de outras formas de vida, invadindo-lhes os corpos e criando novíssimas versões artificiais. Nos filmes de John Carpenter (1982) e Matthijs van Heijningen, Jr. (2011), a Coisa demonstra não possuir conceitos ou preconceitos de taxonomia; simplesmente, agarra no material orgânico disponível e molda corpos híbridos, desconjuntados, em que funções de membros e órgãos são trocadas ou reinventadas -- é, no fundo, a interpretação imediata, ultrapragmática, que o proteico instinto exomórfico faz dos seres vivos que vai entranhando, sem ter conhecimentos mais precisos sobre a verdadeira natureza daquilo que está a predar e, no fundo, sem preocupações a esse respeito. A Coisa é, nesse sentido, a antítese da reflexão, da planificação: é totalmente instintiva, animal, primitiva; nos poucos momentos em que exibe alguma estratégia vestigial de médio-prazo, ela está, em exclusivo, ao serviço da sua brutal sobrevivência. Não obstante, é aqui que se acha uma imperfeição que sempre me provocou alguma perplexidade; embora, uma que nunca me tenha retirado a genuína admiração que tenho pela visão de Carpenter e a fruição do filme de Matthijs van Heijningen, Jr.

O comportamento rudimentar da Coisa (o mais completo avatar cinematográfico do horror literário de estirpe lovecraftiana, híbrido de hemorroíssa com Yog-Sothoth; ou seja, a mescla do medo do contágio pelo elemento estranho à comunidade com a imprevisibilidade irascível do destino) não se compagina com o retrato que, em simultâneo, lhe é feito pelos cineastas, enquanto ser cultural e tecnológico com aptidão de, aparentemente, pilotar um intrincado veículo intergaláctico até à Terra; logo, ser criatura civilizacional, com percurso e projecto históricos (vulgo, que vive no tempo, em vez de viver no momento). Para mim, é uma estranheza análoga à de descobrir-se a existência de uma espécie de ténia capaz de edificar estruturas inorgânicas (ou orgânicas...). Contudo, ao procurar informações adicionais sobre esta prequela do filme de Carpenter, percebi, com agradável surpresa, que uma inquietação mais ou menos parecida passou pela cabeça dos criadores do filme.

É que o final original de The Thing, de 2011, previa que a protagonista Kate Lloyd (paleontóloga interpretada por Mary Elizabeth Winstead) descobrisse no interior da velhíssima nave espacial da Coisa (despenhada há milhares de anos no Antárctico e aí conservada no gelo) que essa espécie, afinal de contas, era apenas uma entre muitos organismos recolhidos através do universo para fins de pesquisa científica por outra espécie, inteligente e civilizada: a prová-lo estariam os corpos mortos dos pilotos, eliminados pela Coisa quando este animal se soltou do invólucro que o mantinha prisioneiro, provocando dessa forma a queda precipitada da nave. Teria sido um final estupendo para um filme que, em geral, consiste numa boa prequela/homenagem ao filme de Carpenter, faltando-lhe, evidentemente, a atmosfera angustiante e o sufocante niilismo lovecraftiano que nesse título estão presentes com uma força imensa. A razão pela qual este final foi rejeitado pelos produtores e encenado outro desfecho menos conseguido ocultar-se-á junto das razões que estiveram na decisão de substituir sem justificação provável a totalidade dos efeitos especiais animatrónicos por efeitos visuais gerados digitalmente, o que rouba muita da autenticidade (e desconforto) que fizeram do filme de Carpenter uma obra visionária.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Sustos às Sextas: segunda sessão na próxima sexta-feira 13


Na próxima sexta-feira, dia 13, a Fundação Marquês de Pombal (Palácio dos Aciprestes, em Linda-a-Velha) acolherá às 21H30 a segunda sessão do ciclo de palestras sobre horror Sustos às Sextas, na qual a tónica será colocada sobre o cinema de terror, cortesia dos convidados Rodrigo Guedes de Carvalho, Tiago Guedes e Frederico Serra. Destaco que esta sessão consistirá, ainda, na última oportunidade de verem a exposição de fotografia Da Pedra aos Ossos: Observação do Limiar da Infinitude, de Gisela Monteiro. Passem a palavra e não faltem: os fantasmas esperam, amaldiçoados, por vós.





quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

«Sepulturas dos Pais» em lista internacional de melhores livros de BD de 2014

 
Sepulturas dos Pais (Kingpin Books, 2014) escrito por mim e desenhado por André Coelho, está na lista internacional dos melhores livros de banda desenhada, publicados em 2014, no site de Paul Gravett, crítico e historiador inglês de BD.

E a antologia Crumbs (Kingpin Books, 2014), na qual participo com a história O Homem-Javali Vai Casar: ou, Leng Tch'e, escrita por mim e desenhada por Pedro Serpa, também lá se encontra.

Obrigado a Pedro Moura, crítico português de banda desenhada, pelas escolhas. A ler, aqui: http://www.paulgravett.com/articles/article/books_to_read_best_graphic_novels_of_2014#portugal


domingo, 1 de fevereiro de 2015

Exposição de pintura «Figuras Icónicas» de Luís Camilo Alves


Até ao dia 4 de Março, poderão ver na Galeria Arte Periférica (no Centro Cultural de Belém, em Lisboa), uma excelente exposição de pintura do artista Luís Camilo Alves, intitulada Figuras Icónicas. Recomendo-a com entusiasmo: não faltem.
Informo que o Voltaire versicolor que podem ver na imagem em anexo é o meu caro Filipe Homem Fonseca, numa caracterização muito especial.

Agradeço a divulgação.