sexta-feira, 28 de maio de 2010

É de Noite que Faço as Perguntas

No campo de acção das comemorações do centenário da primeira república portuguesa, a Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República (CNCCR) associou-se ao Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem (CNBDI) para realizar uma série de iniciativas em volta da Banda Desenhada e da forma singular como essa linguagem se entrecruzou com a história e o espírito desse período. Foi no âmbito dessa programação, apresentada à imprensa e ao público no passado dia 18 de Maio no Auditório dos Recreios da Amadora, que germinou o projecto da criação de um álbum de banda desenhada que versasse sobre a história da nossa Primeira República, existindo, desde a concepção da ideia, a intenção de que o livro fosse um projecto arrojado, tanto pela sua narrativa como pela arte.

O álbum, escrito por mim e desenhado por Jorge Coelho, João Maio Pinto, André Coelho, Daniel Silvestre Silva e Richard Câmara, intitula-se É de Noite que Faço as Perguntas e consiste numa narrativa ficcional que seguirá com rigor a história e cronologia republicanas, tendo início em 1891, na sequência do Ultimato Inglês, e terminando com o desfecho do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926. Contudo, mais do que tratar-se de uma peça de reconstituição histórica, é uma verdadeira reflexão (alegórica) sobre os valores da liberdade, da cultura e de uma cidadania interventiva. É de Noite que Faço as Perguntas será editado pela Gradiva e pela CNCCR.

A vinheta que ilustra este artigo é desenhada por Jorge Coelho e pertence ao primeiro capítulo do álbum. Fiquem atentos, porque em breve apresentarei imagens dos outros capítulos.

(Aproveito para lembrar que tanto eu como o Jorge estaremos este fim de semana no VI Festival Internacional de BD de Beja, que tem início já este sábado e prolongar-se-á até ao dia 13 de Junho.)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Contagiem-se!

O Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas (Saída de Emergência) já se encontra nas livrarias. Consiste num compêndio de doenças fictícias, cada qual a mais espectacular e fascinante, imaginadas por alguns dos melhores escritores modernos de literatura fantástica como Neil Gaiman, China Miéville, Rhys Hugues, Michael Moorcock e Alan Moore. A organização da edição original norte-americana foi realizada por Jeff Vandermeer e Mark Roberts, mas a organização desta edição portuguesa foi feita por João Seixas, que reuniu uma série de colaboradores nacionais (todos doutorados, claro) sob a égide benfazeja do Dr. Anófeles Calamar Trindade: análogo luso do Dr. Lambshead e seu "rival" nas lides da Academia.

Um livro de luxo que é o centésimo título da Colecção BANG! (dedicada à melhor literatura fantástica internacional), à qual tenho o maior orgulho de pertencer; e agora, também, com uma participação neste fabuloso almanaque.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A falácia do ateísmo genocida


Descobri que no passado dia 20 de Maio, no Salão de Alunos da Faculdade de Medicina do Porto, realizou-se um debate subordinado ao tema Religião e Ateísmo. Como se percebe, mediante a leitura do cartaz anunciador do evento moderado pelo jornalista Carlos Magno, os participantes foram o Dr. Ludwig Krippahl, vice-presidente da Associação Ateísta Portuguesa, e o padre católico José Nuno. Este, ao que parece, disse durante o debate que «os maiores genocídios do século XX foram perpetrados por ideólogos ateístas: nazis e comunistas». Trata-se, como é evidente, de uma afirmação errada.

Em primeiro lugar, dá a entender que os ateus são perversos e não partilham do mesmo sistema de valores dos crentes numa determinada religião (neste caso a católica). Aliás, de acordo com a declaração do padre José Nuno, tão péssimas qualidades morais têm os ateus que, vejam bem!, até foram responsáveis pelos «maiores genocídios do século XX». Ao contrário dos crentes, que (presume-se) são seres pacíficos, os ateus só pensam em eliminar os seus semelhantes - e isso é uma consequência de viverem sem Deus, está visto. Por aqui reverberam as palavras que o cardeal patriarca de Lisboa D. José Policarpo proferiu na homilia de Natal de 2007: «Todas as formas de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade». O que inflama esta visão dos assuntos humanos é a noção de que existem duas espécies diferentes de homens (os ateus e os crentes) e que apenas a segunda, por "conhecer Deus", possui verdadeiros valores morais, que são apanágio da religião.
Inversamente àquilo que a maioria dos indivíduos pensa, grande parte dos verdadeiros valores morais ocidentais não provém de nenhuma religião, mas são conceitos que poderíamos chamar de "leis naturais"; como a famosa regra de ouro que expressa "Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". Os valores propostos pelas religiões são, pela sua própria natureza, sectários e intolerantes: consistem em proibições e prescrições punitivas que se encontram relacionadas com as suas culturas de origem e pouco, ou mesmo nada, têm a ver com o contexto actual em que são aplicadas. Só sobrevivem por força do simples proselitismo inquestionado, que os transmite de geração em geração, pois não enriquecem as vidas de ninguém, por oposição aos valores humanistas que, como todos sabem, são uma conquista da sociedade científica e ateia. Compreende-se que o propósito da declaração do padre José Nuno é angariar simpatia pela religião, denegrindo a imagem dos ateus ao chamar-lhes genocidas: não só é uma retórica de mau gosto, como é falhada porque nem sequer se suporta em nenhum facto, como iremos ver em seguida.

A palavra genocídio foi inventada pelo jurista polaco Raphaël Lemkin, que procurava uma definição para os crimes de guerra que os nazis empreenderam contra os judeus, antes e durante a Segunda Grande Guerra; ele também conhecia os crimes que o Império Otomano cometera contra os Arménios, durante e depois da Primeira Grande Guerra, e achava que ambos tinham características semelhantes. Para o efeito, criou o neologismo genocídio unindo a palavra genos (povo) ao sufixo latino cide que significa assassinato. Usou-o, pela primeira vez, no ensaio Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation, Analysis of Government, Proposals for Redress, publicado em 1944. No capítulo IX desse trabalho, Lemkin explica as suas escolhas da seguinte forma: «New conceptions require new terms. By "genocide" we mean the destruction of a nation or a ethnic group» (Lawbook Exchange, 2005. Pág. 79). As Nações Unidas adoptaram a nova palavra com a Convenção Para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, em 9 de Dezembro de 1948, estipulando que o crime de genocídio define-se como a «intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso» (em A Century of Genocide: Utopias of Race and Nation de Eric D. Weitz. Princeton University Press, 2003. Pág. 9).

O regime comunista soviético que vigorou sob a liderança dos aparelhos de estado de Lenine e Estaline foi genocida? Se aplicarmos a definição da Convenção Para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio então a resposta é "sim": os soviéticos empreenderam algumas acções de carácter genocida contra diversos grupos e etnias, como os tchetchenos, os tártaros, os coreanos e os ingush, não só perseguindo-os directamente, como criando condições de carestia de vida de modo a liquidar as suas populações. Todavia, a ausência de uma real ideologia racista dentro do Partido Comunista soviético (não havia nenhum ideal de "pureza" racial, já que os indivíduos definiam-se pela sua inclusão numa determinada classe económica), associada à crença na maleabilidade dos homens para se tornarem "bons comunistas" através do trabalho comunitário forçado, evitou o desenvolvimento de um aparato genocida à larga escala, como o do regime nazi. Os soviéticos não tiveram campos de extermínio, como o de Auschwitz, por exemplo, mas milhões de indivíduos morreram em consequência das purgas realizadas pela NKVD e das deportações para os campos de trabalho. Os principais alvos da revolução foram os kulaks (camponeses "ricos" que, de acordo com a propaganda leninista e estalinista, eram vampiros, sanguessugas, aranhas e insectos daninhos) e os lishentsy (uma categoria análoga à dos "anti-sociais" perseguidos pelos nazis e na qual se incluíam intelectuais, clérigos, oficiais czaristas, burgueses e antigos nobres). Qualquer oposição ao regime era suficiente para classificar um indivíduo nestas categorizações. Mas, se é verdade que esse regime soviético foi genocida, será legítimo dizer-se que foi ateísta?

Karl Marx escreveu que «Communism begins where atheism begins, but atheism is at the outset still far from being communism; indeed it is still for the most part an abstraction» ("A Contribution to the Critique of Hegel's Philosophy of Right" em Early Writings. Penguin Classics, 1992. Pág. 349). Outra observação fortalece a ideia de que comunismo e ateísmo são, para Marx, dois conceitos distintos: «Atheism is humanism mediated with itself through the annulment of religion, while communism is humanism mediated with itself through the annulment of private property» (Penguin Classics. Pág. 395). Em suma: na visão de Karl Marx, tanto o comunismo e o ateísmo são variações do humanismo, mas não consistem na mesma coisa.
De facto, o comunismo é anti-clerical, mas apenas porque não tolera que exista um poder maior acima do partido. Uma leitura possível, e em última análise credível, é a de que o comunismo, nos moldes em que foi edificado, enquanto "leninismo" e "estalinismo", se aproxima muitíssimo daquilo a que Jean-Jacques Rousseau definiu no seu Du Contrat Social: Ou Principes do Droit Politique (1762) como sendo uma «religião civil». No Capítulo 8 do Livro IV pode ler-se (sublinhado meu): «Now it is very important to the state that each citizen should have a religion which makes him love his duty, but the dogmas of that religion are of no interest neither to the state nor its members, except in so far as those dogmas concern morals and the duties which everyone who professes that religion is bound to perform towards others. (...) There is thus a profession of faith which is purely civil and of which it is the sovereign's function to determine the articles, not strictly as religious dogmas, but as expressions of social conscience, without which it is impossible to be either a good citizen or a loyal subject. (...) the sovereign can banish from the state anyone who does not believe them; banish him not for impiety but as a antisocial being, as one unable sincerely to love law and justice, or to sacrifice, if need be, his life to his duty» (Penguin Books, 1968. Págs. 185-186). O escritor de divulgação científica Sam Harris, apoiando-se nas leituras de Jonathan Glover (Humanity: A Moral History of the Twentieth Century, Yale University Press, 2001) e Alexander N. Yakovlev (A Century of Violence in Soviet Russia, Yale University Press, 2002) diz algo que vai ao encontro desta ideia: «Consider the millions of people who were killed by Stalin and Mao: although these tyrants paid lip service to rationality, communism was little more than a political religion» (em The End of Faith. W. W. Norton & Company, Inc., 2004. Pág. 79). O próprio Estaline, que estudou num seminário e acreditava que Cristo existira, surpreendeu o exército russo quando, nas vésperas da invasão alemã da União Soviética, apelou ao culto dos mortos para insuflar coragem nas fileiras, arrogando aos soldados para não envergonharem os gloriosos antepassados que os observavam - dificilmente o discurso que se espera de um líder ateu...

«We don't want to educate anyone in atheism.»
A declaração é de Adolf Hitler e foi proferida na noite de 11 de Julho de 1941 (em Hitler's Table Talk, 1941-1944. His Private Conversations. Editado por Hugh R. Trevor-Roper. Phoenix Press, 2002. Pág. 6). No mesmo ano, em 21 de Outubro, por altura do meio-dia, Hitler disse: «Nevertheless, the Galilean, who later was called the Christ, intended something quite different. He must be regarded as a popular leader who took up His position against jewry. (...) For the Galilean's object was to liberate His country from jewish oppression. He set Himself against Jewish capitalism, and that's why the Jews liquidated Him» (ibidem, pág. 76). Anos mais tarde, na noite de 29 de Novembro de 1944, Hitler continuará a pensar da mesma maneira: «Jesus was most certainly not a Jew» (ibidem, pág, 721). Quanto à religião pagã, Hitler disse o seguinte, ao meio-dia de 14 de Outubro de 1941: «It seems to me that nothing would be more foolish than to re-establish the worship of Wotan. Our old mythology had ceased to be viable when Christianity implanted itself» (ibidem, pág. 61).
Por outro lado, apesar de crente em Deus e anti-ateísta, o líder nazi não nutria nenhuma simpatia pela religião organizada. Desconfiava da Igreja Católica Apostólica Romana, enquanto instituição, e declarou diversas vezes que aguardava o momento da sua dissolução. Na tarde de 11 de Novembro de 1941, disse: «The Church's friendship costs too dear. In case of sucess, I can hear myself being told that it's thanks to her. I'd rather she had nothing to do with it, and that I shouldn't be presented with the bill!» (ibidem, pág. 122). Mesmo assim, na mesma conversa, ele declarou que «Russian prayers had less weight than ours» (ibidem, pág. 123).
Não é fácil categorizar o pensamento religioso de Adolf Hitler, porque ele foi um mitómano que mudava de atitude consoante quem estivesse junto dele. Sabe-se que no dia 12 de Abril de 1945, Goebbels resgatou entusiasmado as cartas astrológicas do Führer e da República de Weimar, pois acreditou que continham a "profecia" da morte de Roosevelt, que falecera nesse dia, e a conseguinte vitória da Alemanha em Agosto desse ano (em Hitler: A Study in Tiranny de Alan Bullock. Penguin Books, 1962. Pág. 781), o que não deixa de ser bizarro, porque a 12 de Junho de 1941 mandara prender todos «os astrólogos, magnetopatas, antroposofistas e afins», sublinhando no seu diário, de maneira jocosa, que nenhum dos videntes foi capaz de prever a captura. Sem dúvida que Hess e Himmler foram os líderes nazis responsáveis pela imagem pública, explorada em diversos filmes e livros de entretenimento, de que os nazis foram obcecados pelo ocultismo, mas o próprio Hitler tinha ideias pouco claras sobre esses assuntos. Ao almoço, em 19 de Julho de 1942, ele disse que «Superstition, I think, is a factor one must take into consideration when assessing human conduct, even though one may rise superior to it oneself and laugh at it. It was for this reason, to give you a concrete example, that I once advised the Duce not to initiate a certain action on the thirteenth of the month. (...) The horoscope, in which the Anglo-Saxon in particular have great faith, is another swindle whose significance must not be under-estimated» (Phoenix Press, 2002. Págs. 582-583).
O sentimento religioso de Hitler também se encontra expresso nesta passagem de Mein Kampf, citada por Bullock: «The war of 1914 was certainly not forced on the masses; it was even desired by the whole people. For me these hours came as a deliverance from the distress that had weighed upon me during the days of my youth. I am not ashamed to acknowledge today that I was carried away by the enthusiasm of the moment and that I sank down upon my knees and thanked Heaven out of the fulness of my heart for the favour of having been permited to live in such a time» (Penguin Books, 1962. Pág. 50). A concordata entre a Alemanha nazi e o Vaticano foi assinada a 20 de Julho de 1933. Sete séculos antes, a 19 de Abril de 1215, o Quarto Concílio de Latrão decidiu que os judeus deveriam envergar uma marca amarela distintiva: uma estrela judaica, de seis pontas. Como disse o historiador Raul Hilberg no documentário Shoah de Claude Lanzman (1985), «Many such measures had been worked out over the course of more than a thousand years by authorities of the Church and by secular goverments that followed in that footsteps. From the earliest days... Because from the 4th century, 5th century, 6th century... the missionaries of christianity had said, in effect, to the Jews, "You may not live among us as Jews". The secular rulers who followed them, from the late Middle Ages, had then decided "You may not live among us". The nazis finally decreed "You may not live"».

sexta-feira, 21 de maio de 2010

O Estrumpfe Amarelo

Foto da professora Bruna Real (identificada na peça integrante na edição de Maio da revista portuguesa Playboy como Xana Ferreira), com 27 anos de idade.

Foi em 1922 que o jornalista norte-americano Walter Lippmann usou uma palavra que, até então, era coutada exclusiva dos historiadores de arte para designar aquilo que ele considerava ser um modo de pensar muito especial, relacionado com o preconceito: estereótipo.

Em artes gráficas, um estereótipo é a chapa matriz que serve para imprimir diversas cópias de um documento. No livro Public Opinion, Lippmann escreveu que «(...)modern life is hurried and multifarious (...) There is neither time nor opportunity for intimate acquaintance. We notice a trait that marks a well known type, and fill in the rest of the picture by means of the stereotypes we carry about in our heads» (Dover, 2004. Pág. 49).
Mais extraordinário que já se pensar que a vida era apressada e complicada em 1922 é constatar a intuição de que existem várias personalidades típicas e que toda a gente pode ser catalogada a priori dessa forma. Entre os exemplos que Lippmann oferece no seu livro encontramos o estereótipo do Agitador, do Plutocrata, do Intelectual e do Sul Americano. Consistem em generalizações simples para serem aplicadas aos indivíduos pertencentes a qualquer grupo ou associação. «The stereotype not only saves time in a busy life and is a defense of our position in society, but tends to preserve us from all the bewildering effects of trying to see the world steadily and see it whole» (Dover, 2004. Pág. 63). A analogia entre a chapa matriz usada para imprimir milhares de cópias de um jornal e as multiplicidades de indivíduos que podem ser catalogados de acordo com os mais variados estereótipos inventados pelos sociólogos, psicólogos ou homens comuns é evidente, mas será que, tal como Lippmann acreditava, o estereótipo é uma ferramenta útil para compreendermos comportamentos?

Outro livro, mais recente, que discorre com discernimento sobre o fenómeno dos estereótipos é Us and Them: Understanding Your Tribal Mind de David Berreby (Hutchinson, 2006). Entre vários argumentos expostos neste título sobre comportamentos de grupo, Berreby avança com a ideia de que os estereótipos não se relacionam de modo directo nem com os estereotipados nem com os estereotipadores, mas com as diferentes relações que existem entre eles. Essa será uma das razões pelas quais as pessoas, muitas vezes, continuam a achar que determinado estereótipo é verdadeiro: porque mesmo que percebam que um estereotipado, em especial, não se encaixa no perfil imaginado, a relação que mantém com ele não mudou. «Once you see that stereotypes depend on perceived relationships among different human kinds, the question of how objectively accurate they are disappears. We think the human-kind code is based on facts about people. Instead, it's based on facts about how we relate to those people at the moment we categorize them - what we want, or expect, or fear from them. Mental codes interpret human kinds as if they were things that have dimensions and persist through time. But the information that makes the codes work is not about things. It's about actions - what we're doing and planning to do as they relate to waht other people are doing. (...) To this day, most public thinking about human kinds and human-kind emotions focuses on the stereotyper and the stereotypee, ignoring the third, defining variable: the relation that makes them see one another in the first place» (Hutchinson, 2006. Pág. 166).

Com base na informação disponível sobre o caso, toda a gente pode comprovar, no minimo suspeitar, que a professora Bruna Real, que leccionava a disciplina de Actividades Extra Curriculares no liceu de Mirandela até ser afastada do cargo por descobrir-se que posara nua para a edição de Maio da revista Playboy, teve azar em encaixar-se num estereótipo conhecido: aquele que diz que as mulheres sexualmente atraentes não são mulheres de grande probidade. Aparentemente, uma professora sexualmente atraente, e que ainda por cima aparece nua nas páginas de uma revista para homens (logo, um corpo de desejo que pode - ou não - servir de combustível fantasista para a masturbação) não corresponde à chapa matriz das mulheres inteligentes, honradas e capazes de dar aulas com diligência.

Cena do filme Extase de Gustav Machatý (1933), que tornou a actriz Hedy Lamarr famosa por ser uma das primeiras a apresentar-se totalmente nua num filme mainstream e a primeira a simular um orgasmo numa pioneira cena de sexo. Ela tinha 28 anos de idade.

Isto lembrou-me, de imediato, a actriz austríaca Hedy Lamarr (1914-2000): a primeira a aparecer totalmente nua num filme mainstream (não-pornográfico). O filme, realizado por Gustav Machatý, chama-se Extase e foi estreado em 1933. Da noite para o dia, Lamarr passou a ser sinónimo de sexualidade luxuriante; a imagem ideal de uma mulher despudorada. Um estereótipo que nunca iríamos associar a alguém de grande inteligência, mas é aqui que as chapas matrizes descombinam: com um talento inato para a matemática e para a engenharia, Lamarr foi uma das mulheres mais inteligentes do mundo. Na verdade, já é mítico o episódio em que ela, durante um cocktail, usou um guardanapo para traçar o diagrama para aquilo que viria a ser o sistema FHSS (ou frequency-hopping spread spectrum) usado pelo exército norte-americano e que ainda hoje é empregue nas transmissões de rotina de uma grande diversidade de aparelhos electrónicos.

Talvez, num futuro próximo, venhamos a saber que a professora Bruna é tão ou mais inteligente que a Hedy Lamarr e que a escola e a câmara de Mirandela erraram em afastar uma pessoa desse calibre.
Retórica à parte, duvido que isso aconteça, mas o QI de Bruna (ou de Lamarr) não interessa: o que interessa é compreender que as pessoas são fins em si mesmas e, por conseguinte, não se encaixam nos estereótipos que imaginamos. Principalmente, quando a capacidade de imaginar não é muita.
Bem vistas as coisas, a Bruna não foi afastada por mostrar a sua nudez na Playboy. Qualquer aluno de Mirandela com acesso à Internet ou com TV Cabo já viu cenas de maior conteúdo pornográfico que a sessão fotográfica que originou esta patética polémica. Pese o estereótipo de que as mulheres sexualmente atraentes não são mulheres de grande probidade, ela também não foi afastada por causa desse preconceito. Eu acho que ela foi afastada porque cometeu um grande pecado: mostrar que é possível quebrar as regras.

Uma professora que se despe numa revista erótica é uma criatura exótica: tanto quanto um estrumpfe amarelo. Não se encaixa num modelo uniforme de sociedade, sob o qual as pessoas, desde a mais pequena idade, aprendem quais são as regras e a respeitá-las. A última coisa que os reguladores de uma sociedade deste género querem é que apareça alguém para quem as regras não se aplicam. Ou pior: que mostre aos restantes que, se calhar, as regras também não se aplicam a eles!... Que as tais regras são, em última análise, uma convenção e que é sempre possível mudá-las para melhor. O afastamento de Bruna Real das funções de docente é mais um caso de luta de classes entre a casta dominante e o elemento inferior desconforme que um imbróglio moralista sobre sexo.

sábado, 15 de maio de 2010

Questionário sobre hábitos de leitura

Vi este questionário num weblog dedicado à literatura fantástica e achei que responder a estas perguntas podia ser divertido.

Petis­cas enquanto lês? Se sim, qual é o teu petisco favo­rito?
Na generalidade, não como nada enquanto leio, mas quando era miúdo lia muito enquanto comia. Os meus pais nunca me proibiram de ler à mesa e ao almoço e ao jantar tinha sempre um livro, ou vários, ao lado do prato.

Qual é a tua bebida pre­fe­rida enquanto lês?
Café, claro. Bastante! Sem açúcar.

Cos­tu­mas fazer ano­ta­ções enquanto lês, ou a ideia de escre­ver em livros horroriza-​te?
Sublinho o texto sempre que encontro passagens que me interessam e escrevo comentários e observações nas margens. Às vezes, faço desenhos.

Como é que mar­cas o local onde ficaste na lei­tura? Um mar­ca­dor de livros? Dobras o canto da página? Dei­xas o livro aberto?
Marco a página em que interrompo a leitura com o que tiver à mão nesse momento. Normalmente, quando pouso o livro com o objectivo de retomar a leitura daí a pouco tempo, uso um marcador ou a lapiseira com a qual sublinho o texto. Se for para marcar páginas que contenham passagens que quero consultar num futuro próximo uso post-its com anotações específicas, pedaços diversos de papel que tenha nos bolsos ou então dobro os cantinhos das páginas: uma dobra muito pequena que resulta sempre num triângulo perfeito.

Fic­ção, não-​ficção, ou ambos?
Normalmente, leio mais livros de não-ficção. Mas não tenho preferência. Leio tudo.

És do tipo de pes­soa que lê até ao final do capí­tulo, ou páras em qual­quer sítio?
Tento parar no final da frase que me encontre a ler, mas não sou esquisito.

És lei­tor para ati­rar um livro para o outro lado da sala ou para o chão quando o autor te irrita?
Não. Acho que isso seria como dar um pontapé a um cão.

Se te depa­ra­res com uma pala­vra des­co­nhe­cida, páras e vais pro­cu­rar o seu sig­ni­fi­cado?
Claro. Assim é que se aprende e se ganha bagagem cultural. Se estivesse a ler para ficar na mesma, mais valia ir cavar batatas.

O que é que estás a ler actu­al­mente?
Muita coisa ao mesmo tempo. Um dos últimos livros que acabei de ler foi o Our Posthuman Future: Consequences of the Biotechnology Revolution do Francis Fukuyama.

Qual foi o último livro que com­praste?
Acho que foi esse que acabei de referir.

Lês só um livro de cada vez, ou con­se­gues ler mais que um ao mesmo tempo?
Leio vários ao mesmo tempo, por razões diferentes. Alguns porque são materiais de pesquisa para escrever os meus romances e outros porque os temas me despertam uma curiosidade muito especial. Mas, para ser sincero, acho que me interesso por quase tudo. Um escritor tem de ser uma pessoa erudita, não lhe basta ser inteligente.

Tens um lugar/​altura do dia pre­fe­rido para ler?
Não. Leio em todo o lado. Não gosto muito de ler na cama, todavia, porque como tenho muita dificuldade em adormecer, prefiro ir deitar-me só quando estou a cair para o lado com sono e a leitura não me dá sono nenhum. Pelo contrário.

Pre­fe­res livros incluí­dos em séries ou inde­pen­den­tes?
Acho que prefiro os independentes. Não tenho paciência para sagas, porque não me posso dar ao luxo de demorar muito tempo a ler só sobre um universo em particular.

Existe algum livro ou autor espe­cí­fico que este­jas sem­pre a reco­men­dar?

Alguns, alguns. The Third Policeman do Flann O'Brien, por exemplo. O Darconville's Cat do Alexander Theroux, também. O New Grub Street do George Gissing devia ser leitura obrigatória para todos os candidatos a escritores e suas famílias. Aconselho sempre os livros do Léon Bloy que, mais que o Lovecraft, escreveu algo que encerra na perfeição aquilo que o horror é e deve transmitir ao leitor: «O meu amor por ti tem tenazes de caranguejo!» Melhor definição sobre o que é o horror não há.

Como é que orga­ni­zas os teus livros?
Nesta altura do campeonato, organizo-os onde tenho espaço disponível. Já perdi a esperança de ter uma biblioteca organizada por autores, géneros, etc. Tenho uma vaga estrutura baseada em temas, mas é impossível mantê-la, porque a biblioteca é uma coisa viva. E ainda bem!

terça-feira, 4 de maio de 2010

Para uma nova etimologia do Gótico

É consensual apontar-se o livro The Castle of Otranto de Horace Walpole (quinhentos exemplares publicados em 24 de Dezembro de 1764) como sendo o primeiro romance gótico (The Castle of Otranto - A Gothic Story, como se pode ler no frontispício da segunda edição desse romance, composta por quinhentos exemplares publicados em 11 de Abril de 1765). Filho do primeiro-ministro Robert Walpole, o autor de The Castle of Otranto ingressou no parlamento inglês em 1742. Ora, o sistema parlamentar instituído a partir da Revolução de 1688, revolta que provocou a fuga do rei James II para França e cortou, de modo definitivo, com a influência francófona no território inglês, está, de modo mais ou menos directo, ligado ao emergir da literatura gótica: género inédito até à altura e iniciado com a publicação de The Castle of Otranto, em grande parte através da influência que esse novo modo de fazer política operou nas mentes criativas do seu tempo.

Os pensadores do final do século XVII e início do século XVIII, nos quais se contam tanto políticos como artistas, precisaram de encontrar novos substratos culturais, descontaminados da influência francesa, sobre os quais pudessem assentar os alicerces míticos do novo sistema político. Isso consiste num fenómeno que nada tem de inovador e, para constatá-lo, basta observar com atenção o modo como a cultura e a política se consorciam sempre que se dá uma qualquer revolução. Olhando para a história da Inglaterra com atenção é muito fácil ver que só recuando até à Idade Média (século XI, para ser mais preciso), em especial para o período prévio à conquista normanda, é que se pode encontrar vestígios de uma cultura inglesa livre do jugo francês. Nesse sentido, a literatura gótica de meados do século XVIII e início do século XIX, que vai respigar a cultura medieval de uma maneira muito característica, surgiu como uma espécie de literatura "nacionalista": uma tentativa, senão organizada, no mínimo consciente, de criar um novo cânone literário, verdadeiramente inglês.

Certamente inspirado pela publicação do livro Letters on Chivalry and Romance de Richard Hurd (1762), que ajudou a reavivar o interesse popular inglês pela arquitectura gótica medieval, Horace Walpole, que, de acordo com as suas próprias palavras, era um homem «com a cabeça cheia de história gótica» (desde 1747 que vivia num castelo barroco, em Strawberry Hiil, reformulado, a seu gosto, ao estilo gótico), escreveu um romance em que a narrativa, plena de mistérios sobrenaturais, orbita um castelo medieval que, de certa forma, acaba por apresentar-se ao leitor como sendo o principal protagonista. The Castle of Otranto cifrou um molde que os posteriores autores "góticos" usaram para os seus escritos; com a designação de gótico à guisa de sinónimo de bárbaro, primitivo ou medieval que eram os significados correntes na altura, trazidos à tona pelo movimento romântico do revivalismo neo-gótico. Mas se o movimento foi baptizado como neo-gótico, em que consistia o paleo-gótico?


O termo gótico foi adoptado na segunda metade do século XVI pelo historiador florentino Giorgio Vasari para denominar de forma generalista - e depreciativa - as expressões artísticas que surgiram na Idade Média (entre o período Clássico e o Renascimento), em especial a Arquitectura. O desdém de que a arquitectura medieval foi sendo alvo, desde o Renascimento, perdurou até finais da primeira metade do século XVIII; altura em que foi resgatada pelo supracitado movimento romântico do revivalismo neo-gótico. Importa reter a ideia de que até Vasari ter cunhado a alcunha pejorativa gótico (aparentemente, a maioria dos nomes dos movimentos artísticos começa sempre por ser uma alcunha pejorativa, vá lá saber-se porquê...), esse estilo arquitectónico era conhecido como sendo o estilo francês, porque, de facto, foi criado na França: para ser exacto, na Ilha de França, em meados do século XII, pela mão do abade Suger que orientou a construção da Abadia de São Dinis (a primeira pedra foi colocada em 1140 e o edifício foi consagrado em 1144). É legítimo que se encontrem no estilo francês determinadas influências da arquitectura dos mosteiros que se construíram nos primeiros tempos do Império Romano do Ocidente, durante o reinado de Carlos Magno, por exemplo (o que não consiste em nenhum motivo de estupefacção), mas isso, só por si, não basta para que se denomine o estilo francês de gótico, no sentido de gótico ser, tal como é explicado em diversas fontes, o estilo godo.

Os Godos foram um grupo de povos escandinavos, originários da Gótia ou Gotalândia (Suécia). No século III, dividiram-se em Ostrogodos e Visigodos. Deles, fizeram parte os Gotares que habitaram a Gótia Ocidental e que são os Geatas do poema épico Beowulf (século VIII?). Em regra geral, quando procuramos a definição da palavra gótico nos dicionários e nas enciclopédias, os textos dão-nos respostas relacionadas com os Godos.
O Dicionário Enciclopédico Koogan-Larousse (Selecções do Reader's Digest, 1980), por exemplo, diz o seguinte: «Gótico. Adj. Relativo aos Godos. / Diz-se de um género de arte que floresceu na Europa desde o século XII até ao Renascimento» (volume 1, pág. 417).
A explicação ofertada pelo The New Penguin English Dictionary (Penguin Books, 2000) vai no mesmo sentido: «Gothic. Adj. 1) Relating to the Goths, their culture, or language. 2) Relating or denoting a style of architecture prevalent from the middle of the 12th to the early 16th century, characterized by vaulting and pointed arches. 3) Denoting or resembling a class of novels of the late 18th and early 19th century, dealing with macabre or mysterious events in remote or desolate settings» (pág. 603).
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (Livros Horizonte, 1987), que é a fonte de consulta mais útil que eu conheço para esclarecer todas as dúvidas ligadas à etimologia, diz o seguinte: «Gótico. Adj. Do latim gothicu, «dos Godos», por via culta. Século XV: »pella letra gotica... o costume gotico» (...) Gótigo no século XIV: «Frãça a gotiga... a ley gotiga... por letera gotiga... este feyto gotygo» (...)» (volume 3, págs. 166-167).
No seu Preface to Shakespeare (1765), o escritor e ensaísta Samuel Johnson usa outra grafia para a palavra gothic: «We need not wonder to find Hector quoting Aristotle, when we see the loves of Theseus and Hippolyta combined with the Gothick mythology of fairies» (citado por Coral Ann Howells em Love, Mystery and Misery: Feeling in Gothic Fiction. Athlone, 1995. Pág. 17.) Com efeito, também essa grafia se encontra no The New Penguin English Dictionary: «Gothick. Adj. 1) See Gothic. 2) Relating to or denoting a genre of modern literature, a type of film, video game, etc. featuring the macabre or eerily supernatural events» (pág. 603).
Em resumo: compreender que a palavra gótico passou a ser usada no século XVI para designar um estilo arquitectónico medieval e que, por arrasto, foi aplicada como epíteto para um género literário que foi buscar, precisamente, conteúdos e imagens à Idade Média e à sua arquitectura é fácil. «Politically, it begins as a conservative reaction against a progressive and radical middle class (...) In 1764, with Walpole, it is a new, original, novel and radical genre (...)» (in The Rise of the Gothic Novel de Maggie Kilgour. Routledge, 1995. Pág. 42). «E é com este gótico, sinónimo de bárbaro, que o século XVIII primeiro toma contacto. Arrancado ao seu domínio - a arquitectura - passou a designar tudo o que os clacissistas consideravam de mau gosto, na arte como na literatura e na linguagem, numa palavra, tudo o que era anterior ao século XVII. Mesmo Shakespeare, considerado, é certo, o maior escritor inglês e o único digno de ser recordado, só era apresentado ao público depois de depurado das suas características góticas» (in A Literatura "Negra" ou de Terror em Portugal (Séculos XVIII e XIX) de Maria Leonor Machado de Sousa. Editorial Novaera Lda., 1978. Pág. 26).
Chegamos a essa conclusão seguindo uma linha de raciocínio que se desenvolve sem sismografias e que pode ser corroborada pelas fontes mais credíveis, mas, todavia, não estou inteiramente convencido da solidez dessas ligações.

A minha primeira pergunta é esta: porque razão é que uma palavra aparentemente relacionada com o povo godo, que, como disse o arquitecto inglês Sir Christopher Wren, foi «melhor a deitar coisas abaixo que a construir», passou a ser usada para designar o estilo arquitectónico francês? A acreditar que foi Vasari quem, pela primeira vez, usou a palavra gótico, como nome pejorativo, para desacreditar o estilo arquitectónico medieval, até sou capaz de aceitar que essa escolha se tenha relacionado com o objectivo de fazer passar os arquitectos medievais por canhestros: "Vejam bem que construíam tão mal que nem os Godos fariam pior" ou então "São tão maus a construir quanto os Godos". Faz sentido? Faz. Mesmo assim, não me dou por satisfeito.
Custa-me a acreditar que um homem de cultura, como Vasari, fosse usar um truque de retórica tão pouco subtil - e, pior que isso, muitíssimo rebuscado. Rebuscado e derivativo, bem vistas as coisas, pois o italiano tanto podia ter-se lembrado dos Godos, como de outro povo qualquer que, naquela altura, fosse conhecido pela sua fraca perícia arquitectónica. Na realidade, desconfio que, se formos investigar de modo aturado os compêndios, seremos, com certeza, capazes de encontrar candidatos mais adequados. Em suma: a ligação que, supostamente, existe entre os Godos, a arquitectura medieval francesa e, posteriormente, a literatura gótica, através do nome gótico, sempre me pareceu forçada, artificial e muito mal justificada.

Também não estou a ver Vasari a retirar a palavra gótico da cartola, como fazem os ilusionistas com os coelhos. Aliás, vimos que o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa mostra que a palavra gótico já era conhecida em textos do século XIV, por isso a tese de que foi Vasari a inventá-la no século XVI deve ser observada com muita cautela.
De facto, ele pode ter sido o primeiro a usá-la naquele sentido (o pejorativo), mas não é de todo impossível que ela fosse conhecida e usada por outra gente. Ora quem é que poderia andar com palavras relacionadas com o ofício da arquitectura na boca? Os pedreiros e os arquitectos, como é evidente.
A minha opinião é que a palavra gótico faria parte da gíria dos construtores de catedrais e que Vasari tomou conhecimento dela a partir de fontes coevas, orais ou escritas, ligadas ou familiarizadas com esse universo.

Seguindo este pensamento é preciso esclarecer o significado da palavra gótico, pois «dos Godos» é uma explicação que não se sustenta. Mas a tarefa é problemática, porque todas as fontes - incluindo o dicionário etimológico, vejam bem - insistem nesse sentido. É nestas alturas que, munindo-nos das melhores e mais credíveis ferramentas, vale a pena "pensar fora da caixa".
Se o estilo francês (ou gótico) era o estilo arquitectónico usado para erguer as grandes catedrais, então pergunte-se: o que é, afinal de contas, uma catedral?

A resposta é simples: uma catedral é, antes que qualquer outra coisa, uma gigantesca "antena" para comunicar com o transcendental - com o mundo superior.
Diz George Duby que «Nessa época, aquilo a que chamamos arte - ou, pelo menos, aquilo que dela resta depois de mil anos por ser a parte menos frágil, a mais solidamente edificada - não tinha outra função que a de oferecer a Deus as riquezas do mundo visível, que permitir apaziguar a cólera do Todo-Poderoso e conciliar os seus favores. Toda a grande arte era então sacrifício. Releva menos da estética que da magia. (...) Ora, uma vez que tinha função de sacrifício, esta arte dependia inteiramente daqueles que na sociedade se encarregavam de dialogar com as forças que regem a vida e a morte» (in O Tempo das Catedrais. Editorial Estampa, Lda., 1993. Pág. 19).
A catedral medieval encontra-se dividida em três blocos: o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo. O segundo é a zona onde se situa o altar sobre o qual se realizam os sacramentos. O terceiro consiste no intróito, onde podemos encontrar a pia baptismal. O primeiro é a área central do edifício, onde se cruzam todas as outras e de onde se projectam todas as energias. Sobre esta área encontra-se a cúpula que é, por forma e função, uma enormíssima caixa de ressonância pela qual reverberam as vozes dos fiéis até ao Altíssimo. A arquitectura da catedral é uma "arquitectura mágica".

Inspirados nos textos do Pseudo-Dinis, o Areopagita, o abade Suger e os seus arquitectos conceberam um novo modelo de arte sacra: «A obra de arte, nesse tempo, é uma igreja. A grande arte é sagrada» (ibidem, pág. 51). E ainda: «O tratado atribuído a Dinis oferece com efeito uma imagem hierárquica do universo visível e invisível: Da hierarquia celeste, - Da hierarquia eclesiástica (e Suger sem dúvida nele se inspirou directamente quando concebeu, sob forma hierarquizada, o poder do rei feudal). No coração da obra, esta ideia: Deus é luz. Desta luz inicial, incriada e criadora, participa cada criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina segundo a sua capacidade, isto é, segundo o lugar que ocupa na escala dos seres, segundo o nível em que o pensamento de Deus hierarquicamente a situou. Proveniente duma irradiação, o universo é um fluxo luminoso que desce em cascatas, e a luz que emana do Ser primeiro instala no seu lugar imutável cada um dos seres criados. (...) Desta maneira, o acto luminoso da criação institui por si mesmo uma subida progressiva de degrau em degrau para o Ser invisível e inefável de quem tudo procede. Tudo regressa a ele por meio das coisas visíveis que, nos níveis ascendentes da hierarquia, reflectem cada vez mais a sua luz. (...) Esta concepção contém a chave da nova arte, da arte de França, de que a abacial de Suger propõe o modelo. Arte de claridade e de irradiação processiva» (ibidem, págs. 105-106).

Este é que é o caminho para desvendar o étimo da misteriosa palavra gótico: não o que passa pelos Godos, mas o que se dirige à prática da magia.
No Dictionary of Gnosis & Western Esotericism (Brill, 2006), pode ler-se na entrada correspondente à "Magia na Antiguidade": «The modern term "magic" and its cognates derive, through Latin intermediates (magia), from the Greek magiké, "the art of the mágoi", the Persian priests (magus in ancient Persia). (...) Other terms for the practitioners were the Greek góes (orig. the "wailer", a specialist for the communication with the dead), whence goeteía, "sorcery" (...)» (entrada escrita por Fritz Graf, pág. 719. Editado por Wouter J. Hanegraaff, Antoine Faivre, Roelof van den Broek e Jean-Pierre Brach).
Está encontrada, a meu ver, a primeira pista credível para o étimo da palavra gótico: a palavra grega goeteía que significa feitiçaria. Sobretudo porque um góes (um feiticeiro) era alguém especializado «na comunicação com os mortos». O góes usava a voz para os seus feitiços (daí o significado de wailer descrito por Graf; ou seja: um carpideiro (na pura tradição grega) ou um uivador. É uma argumentação que se harmoniza com aquilo que Duby escreveu: que «esta arte dependia inteiramente daqueles que na sociedade se encarregavam de dialogar com as forças que regem a vida e a morte». Esta noção de diálogo, de verbo associado à prática da magia está presente noutras línguas, também. Em inglês, to cast a spell relaciona-se com soletrar (por via da palavra spell), assim como a palavra francesa para grimório (grimoire), que é um compêndio de feitiços, partilha da mesma raiz etimológica que a palavra para gramática (grammaire). A palavra grega defixiones traduz uma espécie de maldição poderosa que é declamada e escrita, ao mesmo tempo. Até Deus, segundo João Evangelista, criou o universo a partir da palavra. Por conseguinte, não haverá grande diferença entre o ulular lúgubre do góes e o cântico seráfico dos monges: ambos se dirigem ao mundo invisível. Ambos querem operar um efeito mágico.

Que eu tenha conhecimento, o único autor que pensou sobre a etimologia da palavra gótico desta maneira foi o enigmático Fulcanelli que, no livro O Mistério das Catedrais, escreveu: «Antes, porém, devemos dizer duas palavras acerca do termo gótico aplicado à arte francesa (...) Alguns pretenderam erradamente que provinha dos Godos, antigo povo da Germânia; outros julgaram que se chamava assim a esta forma de arte, cujas originalidade e extrema singularidade provocavam escândalo nos séculos XVII e XVIII, por zombaria, atribuindo-lhe o sentido de bárbaro (...) A verdade que sai da boca do povo, no entanto, manteve e conservou a expressão Arte Gótica (...) Há aí uma razão por que tão poucos lexicólogos acertaram? Simplesmente porque a explicação deve ser antes procurada na origem cabalística da palavra, mais do que na sua raiz literal. Alguns autores perspicazes e menos superficiais, espantados pela semelhança que existe entre gótico e goético pensaram que devia haver uma estreita relação entre a arte gótica e a arte goética ou mágica. Para nós, arte gótica é apenas uma deformação ortográfica da palavra argótica cuja homofonia é perfeita, de acordo com a lei fonética que rege, em todas as línguas, sem ter em conta a ortografia, a cabala tradicional. A catedral é uma obra de art goth ou de argot. Ora, os dicionários definem o argot como sendo "uma linguagem particular a todos os indivíduos que têm interesse em comunicar os seus pensamentos sem serem compreendidos pelos que os rodeiam". É, pois, uma cabala falada» (Edições 70, 1998. Págs. 50-51).
No The New Penguin English Dictionary pode ler-se a seguinte definição: «Argot. noun. The jargon or slang that is peculiar to a particular group. From French argot» (pág. 70).
Curiosamente, também o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa contém essa palavra: «Argot. s. Do fr. argot, de origem duvidosa» (volume 1, pág. 302). É conveniente que a origem seja duvidosa, caso se trate de algo que é suposto ser mantido em segredo...

Considero que a tese de Fulcanelli, sobre o étimo argot para a palavra gótico, é demasiado conjectural, apesar de, mesmo assim, fazer muito mais sentido que a ideia de que gótico vem «dos Godos», mas ele intuiu, como ficou demonstrado pela transcrição do excerto do seu livro, a fortíssima ligação que existe entre gótico e goético.
A ideia que avanço com esta exposição é a de que o étimo da palavra gótico é, na verdade, a palavra grega para feitiçaria (goeteía) e que o sentido mágico do termo não escapou aos pugnadores do estilo francês, interessados nestas matérias. Que Vasari, ou outro académico renascentista, tenha ouvido a designação proferida pelos próprios pedreiros ou a tenha lido em algum documento coevo e, depois, a tenha usado no seu tratado aplicando-a com um sentido pejorativo que em nada se relaciona com o verdadeiro significado é muitíssimo provável.
Que, mais à frente, essa palavra tenha sido usada para denominar um género literário preocupado com o mundo sobrenatural e o dos mortos é ainda mais provável e - ainda por cima - adequadíssimo. A língua inglesa tem uma bela palavra para este tipo de descobertas: serendipity.
O mais feliz é que é uma palavra inventada por Horace Walpole.

David Soares.
Lisboa. Maio. 2010.

domingo, 2 de maio de 2010

Novidades

Ontem dei uma das minhas melhores sessões de autógrafos (se não a melhor!...) na 80ª Feira do Livro de Lisboa: foram muitos os livros assinados (e desenhados) que os leitores satisfeitos levaram para casa. Obrigado a todos!

Entretanto, anuncio uma inesperada novidade literária: a edição portuguesa do Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead Para Doenças Excêntricas e Desacreditadas.
Os editores originais são Jeff VanderMeer e Mark Roberts aos quais se junta, nesta versão ampliada (e melhorada, porque não?!...) com estonteantes submissões de autores portugueses, o crítico e autor João Seixas, que teve a árdua, mas muito grata, tarefa de traduzir os contos originais e editar os novíssimos contos portugueses num compêndio coerente e delirante.
A minha contribuição para o volume intitula-se Cerberite. E mais não digo... Terão de ler o livro para descobrir de que se trata...
O Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead Para Doenças Excêntricas e Desacreditadas será, sem dúvida, uma das melhores surpresas do ano, editada pela Saída de Emergência.