quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Alfacinha

(Retrato de um Lisboeta?)

Uma alcunha muito mal explicada, cuja origem nunca foi apurada...
Que eu saiba, surge pela primeira vez no livro Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, publicado em 1846. Diz ele na já famosa passagem que «Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando que todas as praças deste mundo são como a do Terreiro do Paço (...)» (Guimarães Editores, 2001. Capítulo VII, páginas 39-40). Será que a alcunha já existia em uso corrente ou foi uma completa invenção do escritor? E a sê-lo, qual o sentido que ele lhe quis dar? Antes desta passagem, ele tem outra: «Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar (...)» (pág. 39). O certo é que se tornou a alcunha dos lisboetas, para o bem ou para o mal, mas tenho dúvidas quanto às histórias de embalar que contam que éramos uns inveterados comedores de alfaces ou que as alfaces eram muito populares na cultura dos saloios dos nossos arrabaldes. Já agora: alface deriva da palavra árabe al-khass.
saloio tem outra origem, mas também árabe: vem da palavra çahrauii que significa apenas homem que habita no deserto e acho que surge pela primeira vez como çaloio no final do século XVIII. Em vista disso, é legítimo achar que os proverbiais saloios de Lisboa começaram por ser alguns mouros (vindos do Norte de África, talvez?) que habitaram nas mourarias medievais e se dedicaram, entre outras actividades, à agricultura; mas foi, de certeza, uma agricultura muito simplória, mais para consumo próprio que para venda. Hoje toda a gente usa a palavra saloio para designar, de maneira geral, um agricultor, seja ele de Lisboa ou não; ou até, de modo pejorativo, quando se quer chamar parolo a alguém.
Vale bem a pena recordar algo que eu não me canso de dizer: a maioria das coisas que nós achamos que são tradicionais, castiças, antigas, etc., foram inventadas há pouco mais de cento e cinquenta ou duzentos anos. Tripeiro, por exemplo, embora exista desde o século XV, só passou a ser usado como sinónimo de "portuense" no século XIX.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Os cangalheiros da literatura

Aparentemente, este artigo sobre eReaders e a suposta "morte do livro", publicado a 21 de Setembro no site Technology Review do Massachusetts Institute of Technology (MIT), contém argumentos muitíssimo semelhantes àqueles que já tinha expressado no meu artigo Sobre eReaders, a 18 de Agosto. É sempre uma felicidade ver as nossas opiniões corroboradas por fontes independentes e credíveis. É sinal que pensou bem nos assuntos e que não se anda com areia nos olhos.

Como já tive oportunidade de escrever noutro sítio, àqueles que deliram em propagandear a suposta morte do livro, eu chamo-lhes os Cangalheiros da Literatura: muito gostam eles de dizer que o livro está morto, como se isso fosse uma coisa boa... É uma das provas cabais que atestam que quem não tem qualidades para escrever (ou para criar, num sentido lato) aceita de bom grado regozijar-se com a ruína da imaginação, como se encontrasse na esterilidade um local para nidificar.

Acho que a ideia de livro é o próprio livro enquanto objecto físico: o códice (do latim codice que significa, entre outras coisas, livro; o latinismo dex, com o mesmo significado, só entrou na nossa língua na segunda metade do século XVIII). Existe uma grande diferença entre ler um texto escrito num volume (ou seja, num manuscrito enrolado - do latim volumine que significa coisa enrolada), por exemplo, e ler um texto escrito num códice (um livro). A experiência é completamente diferente - e só a partir da difusão do conceito do códice é que se pode, com efeito, falar em leitura, no sentido que lhe é dado presentemente. Só a partir dessa difusão é que surgiram conceitos como autor e publicação, por exemplo.

Não estou inteiramente de acordo com a noção popular de que os papiros e os anteriores suportes de registo manuscrito, que podem ser traçados até à civilização suméria ou até tempos muito anteriores, se quisermos, são proto-livros: acho que eram coisas muito diferentes e que serviam objectivos diferentes, como enumerar, contabilizar e anotar, mas não eram veículos para a leitura reflexiva de interpretação como os códices vieram a tornar-se. É por esta razão que eu acho que a conversa que se ouve nos meios de comunicação de que o advento dos eReaders consiste num salto tecnológico da mesma ordem que aquele que se deu de prancheta para volume e de volume para códice e de códice manuscrito para impresso é uma arenga publicitária: a prancheta, o volume e o códice são coisas muito diferentes entre si e que serviram para coisas diferentes. Ler num
eReader não é a mesma coisa que ler num livro. Por isso, não será, de facto, leitura. É outra coisa que, neste momento, ainda não sabemos - assim como os efeitos que irá operar nas futuras gerações.

Estou a pensar na evolução de vinil para CD e de CD para MP3... O que interessa neste exemplo, ao fim e ao cabo, é a música e essa continua imutada: o que mudou foi apenas o suporte, porque quando se põe a tocar um vinil ou um CD ou um MP3, o resultado (com as devidas diferenças de qualidade de som) é o mesmo: continuamos a ter ondas sonoras a ser enviadas aos nossos tímpanos para serem codificadas em impulsos nervosos e transformadas em música pelo cérebro). A transmissão pode ser menos ou mais satisfatória, ou menos ou mais definida, mas o resultado é o mesmo. Quanto a livros e
eReaders, o resultado final já não é o mesmo.

É por isso que não compreendo o entusiasmo que a suposta morte do livro, e o advento dos
eReaders, suscita em algumas mentes. Acho que a morte do livro nunca poderá ser uma coisa boa (quem é que poderá, mesmo a sério, acreditar numa coisa destas?), acho que os eReaders são, mais uma, invenção desnecessária criada pela indústria e que a serem difundidos vão criar ainda mais iliteracia e afastar ainda mais o público dos textos escritos, por oposição aos meios áudio-visuais.

Liber ABA - trabalho(s) em progresso


Trabalho em progresso: a minha mesa durante a escrita do novo romance.
É o 4º - e conto terminá-lo no início do próximo ano. Até à sua publicação, e saídos ainda este ano, poderão ler um novo livro de contos (A Luz Miserável) e um álbum de banda desenhada (É de Noite Que Faço as Perguntas).

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Ode ao Negro

Em Março, Charles Sangnoir (compositor, músico e vocalista de La Chanson Noire) organizou, dirigiu e musicou um espectáculo de spoken word chamado Cabaret Seixal, que reuniu cinco convidados (Aires Ferreira, David Soares, Gilberto de Lascariz, Hyaena Reich e Melusine de Mattos). A minha contribuição intitulou-se A Ode ao Negro e consistiu num ensaio sobre a cor preta. Aqui fica o vídeo dessa minha performance.

A Ode ao Negro from David Soares on Vimeo.


quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A propósito de "O Homem do Castelo Alto"

A propósito da notícia da publicação de O Homem do Castelo Alto de Philip K. Dick, pela Saída de Emergência, vale a pena reflectir sobre os caminhos alternativos que a história ocidental poderia ter tomado se, em momentos de charneira, as circunstâncias tivessem sido diferentes das factuais. Neste romance de Philip K. Dick, as forças do Eixo ganham às dos Aliados, imprimindo um inédito planisfério no qual, após a Segunda Grande Guerra, os Estados Unidos foram esquartejados e partilhados entre a Alemanha e o Japão imperiais.
Vale a pena, pois, falar sobre outro Philip: Philip Ball, autor de Critical Mass: How One Thing Leads to Another (Farrar, Straus & Giroux, 2004). Neste livro de divulgação científica sobre a aplicação da física ao estudo das dinâmicas sociais, Ball parte de uma visão mecanicista do mundo, inaugurada por Thomas Hobbes em Leviathan, e atravessa, entre outros campos, os estudos estatísticos do astrónomo belga Adolphe Quetelet e as ciências económicas desenvolvidas por Adam Smith sempre estabelecendo analogias entre fenómenos físicos e o comportamento das populações, no sentido de se construir uma «física da sociedade». Embora as intenções do autor não se encontrem despoluídas de alguma temeridade, vale muito a pena falar sobre um exemplo intrigante que ele desenvolve no Capítulo 12 (Join The Club — Aliances in Business and Politics) e que endereça a previsão de cenários históricos possíveis. Um exemplo que nos diz respeito, enquanto portugueses.
Substituindo densidade e pressão por ano e configurações, dois investigadores da universidade do Michigan usaram um programa utilizado para testar o comportamento de moléculas gasosas para prever as possíveis alianças entre países europeus durante a Segunda Grande Guerra e concluíram que poderiam ter acontecido dois cenários.
Craig Reynolds já realizara algo parecido quando estudou o comportamento de bandos de pássaros em voo, usando um programa de computador semelhante: os seus Boids, neologismo criado com o recurso aos nomes bird e android, simulam na perfeição os movimentos de um bando de pássaros e são capazes de tomar decisões baseadas em apenas três configurações, 1) voar à mesma velocidade do pássaro (ou do agente, no caso do próprio software) mais próximo, 2) manter a proximidade e 3) evitar colisões. Os morcegos virtuais que podemos observar no filme Batman Returns, de Tim Burton, assim como diferentes criaturas de outros filmes, foram desenvolvidas com o recurso a este programa. Pensem no ainda mais perfeito Massive, concebido por Stephen Regelous para a Weta Digital como uma ferramenta que pudesse criar os exércitos dos filmes que compõem a trilogia The Lord of the Rings de Peter Jackson, e podem imaginar o grau de complexidade que o comportamento desta espécie de indivíduos virtuais pode assumir.
As configurações escolhidas para pautar o comportamento dos dezassete países europeus que integraram a experiência foram as suas religiões e disputas territoriais, identidades nacionais e culturais, economias e histórias. Com base nestas informações, o software mostrou que poderia, de facto, existir um conflito entre dois conjuntos de países arrumados desta forma: o do Eixo (do lado de Hitler) e o dos Aliados (ao lado da França e dos Estados Unidos). Só que nesses conjuntos alternativos, Portugal faz parte do Eixo. Surpreendentemente, Ball diz-nos que o facto de Portugal ter sido escolhido pelo programa para fazer parte do Eixo é uma anomalia, pois éramos parceiros da Inglaterra, o que, só por si, nos colocaria do lado dos Aliados e nos excluiria da amostra de nações neutras, como a Suíça e a Suécia (pág. 286). Ao que parece, a simpatia que o Estado Novo sentia pelo regime alemão não passou despercebida pelo programa, que, repito, analisou um número generoso de características importantes para chegar a esse resultado. O estudo destas análises históricas contra-factuais é ainda o assunto de um livro curioso que vale a pena ler: Virtual History: Alternatives and Counterfactuals, editado pelo historiador Niall Fergusson (Basic Books, 2000) e que contém dois capítulos que poderiam ser satélites de O Homem no Castelo Alto. São eles Hitler's England: What if Germany Had Invaded Britain in May 1940? de Andrew Roberts e Niall Fergusson e Nazi Europe: What if Nazi Germany Had Defeated the Soviet Union? de Michael Burleigh (págs. 281-347).
A segunda conclusão da experiência relatada por Ball foi a de que outro conflito, desta vez com catorze países associados contra a União Soviética, a Grécia e a Jugoslávia, poderia ter irrompido em 1936. Ball acredita que estes modelos podem ser uma ferramenta importante para clarificar situações futuras: «But the model might be of greatest value looking forward. What can it teach us to expect of relations in the volatile Middle East, where for example Israel, Syria, Iran and Jordan are locked into a frustrated mutual antipathy? Might religious similarities and fear of Western interference outweigh political differences in creating an alliance of Islamic states? Where would that leave Turkey?» (pág. 293).
Todavia, não existem modelos perfeitos; sobretudo se forem produzidos por um programa de computador que aponta cenários possíveis — lógicos, seria mais correcto — suportados por apenas seis ou sete ou quinze configurações. Em oposição aos pássaros que Reynolds estudou com os Boids, os seres humanos geralmente não agem de forma lógica e os seus comportamentos podem tomar contornos imprevisíveis. Nada garante que duas nações inimigas não venham a reconciliar-se no futuro para combater um inimigo comum com maior poder de fogo; ou que um país aparentemente amistoso não declare de surpresa guerra a um país vizinho, iniciando uma catástrofe a grande escala.


Esta espécie de simulações são fascinantes, e até oferecem ocasião para se passar o pano na gordura que ofusca a bola de cristal, mas não dispõem de autoridade —falta-lhes precisão para, se possível, diagnosticar o futuro de forma científica. Consistem, somente, em exercícios; nos quais se projectam as premissas da Psycohistory: ciência fictícia envisionada por Isaac Asimov, no primeiro volume da sua série de ficção científica Foundation. Nessa história, o psico-historiador Hari Seldon descobre que, daí a 500 anos, uma nova idade das Trevas irá ensombrar a raça humana e tem a ideia de salvar todo o conhecimento num empreendimento gigantesco: a Encyclopedia Galactica. Ora, o tipo de modelos que Ball nos apresenta serão mais úteis se forem utilizados para regressar ao passado e desfiar outras hipóteses dos novelos de informações que já estão arrumados no cesto.
Talvez seja wishfull thinking, mas acredito que podemos aprender muito com essas hipóteses não-nascidas e compreender por quais motivos a história tomou um determinado rumo em prejuízo de outro.

O Homem do Castelo Alto


No próximo mês, a editora Saída de Emergência vai publicar um clássico da ficção científica: The Man in the High Castle de Philip K. Dick, autor de, entre outros títulos essenciais, Ubik, Do Androids Dream of Electric Sheep e The Three Stigmata of Palmer Eldritch. Em O Homem do Castelo Alto, a tónica não é colocada sobre a tecnologia e o impacto que tem na sociedade, mas numa hipótese que remete para a história alternativa: as forças do Eixo venceram a Segunda Grande Guerra e repartiram entre si os territórios dos Aliados, ficando a América do Norte dividida em partes mais ou menos iguais que se tornaram coutadas dos alemães e dos japoneses. Acompanhando o percurso de diversas personagens, vamos entendendo como é que essa situação foi criada, desde meados do século XX. O mais curioso é que Philip K. Dick afirmou ter escrito O Homem do Castelo Alto com base em decisões encontradas no I Ching, oráculo chinês que permeia profusamente este romance; daí o final inesperado: o I Ching "mandou-o" interromper a escrita.

Embora possa ser confundido por um arremedo de revisionismo histórico pelos leitores mais desatentos, O Homem do Castelo Alto é um romance que é, sobretudo, mais uma variação de um dos temas de charneira do seu autor: o peso que o elemento humano (as emoções, as inclinações pessoais, a irracionalidade) tem no statu quo, seja ele tecnológico ou, neste caso, político. Em suma: enquanto esse elemento for equacionado, as coisas acabarão sempre por funcionar mal. O problema é que é esse mesmo elemento do qual depende a salvação do sistema, mesmo que o humano seja, na maioria das vezes, um canal para passar o transcendente. Para quem está familiarizado com temas esotéricos será fácil ver que este livro contém algumas referências para-gnósticas e mais não digo para não arruinar a leitura.

Uma edição importante de ficção científica que fazia falta em português e que, felizmente, nos chega na peugada da recente edição portuguesa de Dune de Frank Herbert, publicado também pela Saída de Emergência. O Homem do Castelo Alto conta com um ensaio do jornalista e comentador Nuno Rogeiro como prefácio. A tradução é minha.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Um romance que não é de quinta-categoria


A editora portuguesa Ahab vai publicar em Outubro um dos melhores livros que li nos últimos tempos: Fifth Business de Robertson Davies, a primeira parte da chamada Trilogia de Deptford, prosseguida com The Manticore e World of Wonders.
Fifth Business é um trabalho superior, muito bem escrito, que eu recomendo de viva voz: leiam-no, porque é genial. O título em português é O Quinto em Discórdia, adaptação do título espanhol.
Nesta ligação podem ler a crítica que escrevi, vai fazer um ano na próxima terça-feira, a Fifth Business.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A força da etimologia


Outro dia comprei um marcador de livros dos pastéis de Belém e numa das pausas na leitura dei por mim a pensar na força da etimologia: é que, em hebraico, Belém significa casa do pão. Ora, qual é a padaria mais famosa de Lisboa e onde é que ela fica?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

10 Livros de Horror

O meu novo livro de contos de horror, A Luz Miserável (Saída de Emergência), está quase a sair e será apresentado em exclusivo no próximo Fórum Fantástico. Até lá, lembro dez livros de horror que qualquer fã do género deveria ler.

Books of Blood, Clive Barker
Partindo de uma premissa que faz lembrar The Illustrated Man, de Ray Bradbury, o carnaval horrível que Barker nos apresenta nestes livros é, provavelmente, o melhor exemplo que temos sobre o Horror como gerador de diversidade. Enquanto bestiário é riquíssimo e enquanto exercício literário é poderoso. Depois da sua publicação, Barker já escreveu melhor, no que alude ao estilo e à forma, mas Books of Blood continua intocável. É o trabalho de um escritor único no topo dos seus poderes criativos.

Histoires Désobligeantes, Léon Bloy
Em La Femme Pauvre, publicado em língua portuguesa pela Ulisseia, Léon Bloy diz-nos pela voz do narrador: «O autor nunca prometeu divertir ninguém. Prometeu muitas vezes o contrário e cumpriu fielmente a sua palavra.» É a tagline perfeita para caracterizar Histoires Désobligeantes. Pequenos contos sórdidos, sempre entre a imundície e a redenção, escritos com uma espécie de realismo simbólico em mente. Escamoteada a carapaça de lixo que envolve estas histórias, testemunhamos o talento literário de um autor incisivo e, surpreendentemente, optimista. Possui uma linha de diálogo que poderia servir para cartão de visita da ficção de horror: «O meu amor por ti tem tenazes de caranguejo!» Macabro e com muito humor negro.

Swastika Night, Katharine Burdekin
Livro terrível sobre um mundo nazi onde os homens são educados para serem soldados brutais e as mulheres estão reduzidas ao estatuto de gado parideiro. A Europa de Swastika Night vive a Era de Hitler, sete séculos depois da morte do ditador, agora adorado como uma divindade que nasceu da cabeça do próprio Deus do Trovão – logo despoluído do contacto com carne feminina. Escrito durante a consolidação dos regimes fascista na Itália e nacional-socialista na Alemanha, antes da Segunda Grande Guerra, este é um livro no qual Burdekin expande as ideias misóginas dos discursos de Hitler para criar um pesadelo insuportável. É preciso compreender que, naquele momento, não se sabia se os nazis iriam perdurar ou não e o temor de uma iminente ocupação global era sentido à flor da pele por todos aqueles que não simpatizavam com as ideias do III Reich. Mas por mais assustador que o livro de Burdekin seja, a realidade foi muito mais temível: Hitler esterilizou em segredo milhares de alemães durante os anos em que foi chanceler; e se as medidas eugénicas não alcançaram o resultado esperado foi graças às substâncias e métodos envolvidos: chumbo, raios-X e até alguns venenos feitos com plantas da América do Sul. Na sua ideia, somente oficiais nazis seriam autorizados a procriar e para isso criou centenas de bordéis onde as suas altas patentes, em verdadeiras linhas de montagem, engravidavam prostitutas, voluntárias e adolescentes raptadas. Eram as chamadas Lebensborn: as Fontes da Vida.

The Night Land, William Hope Hodgson
Estranhíssimo romance sobre um futuro longínquo em que o Sol morreu e os poucos sobreviventes da espécie humana, que não se cruzaram geneticamente com alienígenas, resistem aos ataques insondáveis de leviatânicas criaturas inescrutáveis dentro de um refúgio piramidal. Às tantas, um deles tem uma visão de que existem mais sobreviventes humanos noutro local e um grupo sai para o exterior com o objectivo de encontrá-los. Para o gosto contemporâneo, a prosa de Hodgson é pesada - e deliberadamente artificial, já que o narrador é, supostamente, um indivíduo do século XVII -, mas àquilo que lhe falta em estilo, Night Land compensa em imaginação e invocação de impending doom. Um romance underrated que merece ser mais conhecido.

The Monk, Matthew Lewis
Epítome da verdadeira literatura gótica e muito provável blueprint para o horror contemporâneo, The Monk tem de tudo: incesto, violação, satanismo, homossexualidade e tortura. O (bom) equivalente literário de um torture porn setecentista, escrito com um estilo endiabrado e refinado. Existe uma edição recente em português pela Bonecos Rebeldes.

La Luna e il Falò de Cesare Pavese
Último romance do escritor e poeta italiano Cesare Pavese, publicado em 1950, poucos meses antes do autor se suicidar. La Luna e il Falò é o relato simbólico do trágico regresso a casa de Enguia, personagem principal que decide voltar à terra natal, a região rural de Langhe, após ter feito vida nos Estados Unidos. Mas o que Enguia encontra não o reconforta e, na companhia de Nuto, o seu melhor amigo de infância, mergulhará numa crescente depressão, fortalecida pela melancolia que as searas desertas e os campos abandonados lhe provocam. Romance alegórico, inquieto, quente, de uma ilusória simplicidade e cujo final não trará nenhuma reconciliação a Enguia. E nós, leitores angustiados, descobriremos que as fogueiras a que o título alude podem ter diversos significados.

La Tour d'Amour, Rachilde.
Rachilde foi o pseudónimo de Marguerite Vallette-Eymery, autora integrada no Movimento Decadente, no qual figuram artistas tão diversos como Isidore Ducasse (Conde de Lautréamont.), Joris-Karl Huysmans ou o pintor Franz Stuck. La Tour d'Amour é uma história de travestismo e necrofilia, passada num farol isolado na costa de França, cujas personagens principais são Mathurin Barnabas, o faroleiro que pesca corpos destroçados dos escolhos para os usar nas suas sevícias, e Jean Maleux, o jovem aprendiz, simultaneamente repugnado e seduzido pela conduta do velho mestre. Numa sequência inesquecível, Rachilde conta-nos que Barnabas guarda uma cabeça decepada, em avançado estádio de decomposição, para se masturbar: jogos mais arrojados que as púdicas brincadeiras de Herbert West: Reanimator, de Lovecraft — e escritos por uma mulher no último ano do século XIX. Ambiente gótico sem folhos e com profanação de cadáveres.

Frankenstein, Mary Shelley
Frankenstein não é o nome da criatura feita de pedaços de cadáveres, mas o do seu criador. É engraçado descobrir que o monstro de Frankenstein é um homem sensível e bem falante (quando não lhe chega a mostarda ao nariz, pelo menos…), enquanto que as adaptações teatrais e cinematográficas o transformaram num golem imbecil e trapalhão: a imagem mais conhecida do monstro de Frankenstein, com a testa alva, cabelo oleoso e eléctrodos no pescoço, deve-se a James Whale e Jack Pierce, realizador e caracterizador que trabalharam na primeira adaptação cinematográfica desta história, e não se parece em nada com aquilo que o livro nos apresenta. Neste, o monstro aprende a ler com os grandes clássicos da literatura (encontrados num baú abandonado) e a falar inglês de ouvido. Tudo o que quer é encontrar o seu lugar no mundo e que Frankenstein o reconheça como humano. Mais tarde, o monstro assume a sua condição maldita, mas exige que Frankenstein lhe faça uma companheira que o acompanhe no exílio. A casmurrice do cientista terá consequências terríveis.
Na minha opinião, o final do livro, passado no deserto gelado do Pólo Norte, faz de Frankenstein a obra de transição entre um horror clássico e naturalista e o moderno horror interior.

Dr Jekyll and Mr Hyde, Robert Louis Stevenson
Toda a gente conhece o livro Dr Jekyll and Mr Hyde, seja por o ter lido ou visto alguma das suas diversas adaptações cinematográficas, mas poucos leitores devem saber que Stevenson já tinha escrito, dois anos antes da publicação desse título, uma peça de teatro intitulada Master Brodie, or The Double Life. Escrita em parceria com William Henley, a peça conta uma história baseada na vida real de um criminoso escocês chamado William Brodie, que vivera um século antes. Maçon, cavalheiro respeitado na sua comunidade, Brodie escondia uma natureza turbulenta sob a pele da diplomacia e entregava-se em segredo ao roubo e ao jogo. Mr Hyde é, largamente, mais violento que aquilo que Mr Brodie poderia alguma vez ter sido, mas foi a dualidade do segundo que inspirou Stevenson a escrever a peça e, posteriormente, a criar a figura miserável do Dr Jekyll. Hyde começa por ser um anão simiesco, traquinas, mas à medida que Jekyll lhe vai dando rédea solta ele transfigura-se num musculado monstro assassino. Um clássico simbólico, por excelência.

Ghost Story, Peter Straub
Quem estiver à procura de algo que pudesse ter sido escrito por M. R. James ficará confuso: Ghost Story não é uma história de fantasmas. No mínimo, no sentido tradicional. Na verdade, nem sei definir o que é. História de vingança além-túmulo? Compêndio impressionante de todos os elementos da ficção de horror num microcosmos de quinhentas e cinquenta páginas, à la The Monk, de Matthew Lewis? Revisão moderna de The Great God Pan, de Arthur Machen? Não nos vamos preocupar com definições. A prosa de Straub é arisca e o início do livro é exigente; contudo, assim que as personagens nos são apresentadas, Ghost Story transforma-se num verdadeiro page turner. Muito interessante.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"A Luz Miserável" no Fórum Fantástico 2010


«Enquanto esperava por Joni, o grupo reunido na suite do último andar do hotel procurava decifrar os sons remissos que atravessavam o chão alcatifado. Mulheres elegantes, acompanhadas por homens vestidos com roupas escuras, olhavam para as pontas dos sapatos, e consultavam os relógios, enquanto dois serviçais deambulavam pela sala com tabuleiros nas mãos: um com comida e outro com bebidas; hoplitas do catering. Atrás da assistência disposta em círculo no centro da sala, em volta de um candelabro com velas acesas, as janelas estavam fechadas e o calor, mesmo com o ar condicionado ligado, era torturante. Um homem novo levantou-se da cadeira para que um velho, suado e cansado de esperar em pé, se sentasse e fez sinal ao criado para pedir uma flute de champanhe. O ruído dos hóspedes do piso inferior continuava a arrogar as atenções dos convidados e a despertar-lhes os nervos: era possível distinguir música e algo orgânico escondido entre as notas; como larvas alimentando-se de uma carcaça. Encostado a uma parede, um dos homens escrevia uma mensagem no telemóvel; outro chocalhava suavemente o porta-chaves que tinha no bolso. Então, Joni entrou na suite. Mortellite não vinha com ela.
'Boa tarde’, disse. ‘Obrigado por terem vindo.' Caminhou até ao centro da sala e esclareceu: ‘A Madame Mortellite não se sente bem, mas realizará a sessão. Peço-vos que aguardem uns minutos.'
'Que se passa?', perguntou uma mulher, com sotaque americano. 'Adoeceu?' A anfitriã respondeu:
'Felizmente, não.' Joni sabia que Mortellite estava deitada no quarto, cheia de dores menstruais. 'Ela está a caminho.' Agradeceu a paciência do público e saiu.
Desceu as escadas e avançou pelo corredor bem iluminado até ao quarto de Mortellite onde a encontrou de pé junto à janela. Estava a vestir um blazer branco.
'Podes fazê-lo?'
'Claro', anunciou a outra. 'A dor ajuda.' Puxou as mangas da camisa e compôs o blazer. Entrou na casa de banho por uns momentos e saiu com o cabelo amarrado num rabo-de-cavalo. O seu perfume cheirava a madeira verde. Bateu palmas e fez sinal a Joni para que abrisse a porta.
'Comeste alguma coisa?', perguntou-lhe Joni, apontando para o cesto cheio de frutas que estava em cima da cama, ainda com o revestimento de celofane inviolado.
'Não’, respondeu Mortellite. ‘Não comi.’ Subiu as escadas atrás de Joni, em direcção à suite onde os convidados a esperavam; olhou para a superfície espelhada das fotos penduradas nas paredes em busca da sua própria imagem, mas o vidro era anti-reflector.
Quando entrou no aposento sentiu a antecipação da assistência e alguma raiva. Avançou até ao centro, abanando a luz das velas com o vento dado pela sua deslocação, e, sem dizer nada, fitou com os olhos bem abertos os pavios incandescentes. Uma cãibra beliscou-lhe o ventre e o mênstruo verteu-lhe para as cuecas: esquecera-se de usar um tampão. Antes do silêncio submergir a suite, ouviu um homem ser calado de modo brusco por uma mulher; o ruído que assolava do piso inferior desapareceu progressivamente, como música afastando-se dos tímpanos de um ouvinte para seduzir outro. Enquanto se concentrava, viu um homem nu, encostado à parede do fundo da sala. Tinha cabelo e barba brancos e parecia exausto. Não estranhou a presença dele.
Encostada à porta, atrás do público, Joni apagara as luzes e observava o espectáculo: os pormenores fantásticos nunca falhavam em capturar a imaginação. Tudo tinha início inesperadamente, como se o momento tivesse esperado uma parteira desde sempre. Sentia um amor impetuoso durante as sessões. Poderia o interior do seu corpo preencher-se de amor como o fumo de tabaco preenche uma suite? Se sim, talvez fosse melhor deitar fora as fotografias e substituí-las por radiografias.
Uma matéria branca apareceu de repente sobre as pessoas.
Assustadas, elas levantaram-se das cadeiras, mas Joni sossegou-as.
'Sentem-se, por favor', disse com um sorriso. 'Não lhe toquem...', e apontou para a substância que rolava no ar. Cheirava a baunilha. 'E não serão tocados.'
Alheia aos movimentos do público, Mortellite continuava a dormir de olhos abertos. Estendeu os braços, mostrando a mão direita enluvada de branco, e a bola de matéria flutuou na sua direcção. Desfez-se em fatias como um novelo de minhocas sobre as palmas e assumiu rapidamente outra forma. Mais manifestações de matéria principiaram a aparecer na sua órbita; e no momento em que terminou a metamorfose, solidificando-se numa morfologia artropodiana, elas também se ossificaram em silhuetas raras, boiando no ar quente da respiração dos convidados: a excitação contida nesse bouquet podia ser provada.»

Um excerto do meu novo livro de contos de horror, editado pela Saída de Emergência, que será apresentado em exclusivo no próximo Fórum Fantástico.
O livro intitula-se A Luz Miserável e será composto por três contos: A Sombra Sem Ninguém (do qual é retirado o excerto reproduzido acima), A Luz Miserável e Rei Assobio.
Fiquem atentos porque, em breve, darei mais novidades sobre este lançamento.

(Imagem: The Witch of Endor Raising the Spirit of Samuel. William Blake, 1800)

Mais confusões g(l)óticas


De quando em quando, o mercado livreiro lembra-se de inventar rótulos novos para vender coisas novas e outras que não são assim tão novas. Quase sempre esses identificadores acabam por ser de carácter redutor para com o conteúdo daquilo que está a ser promovido sob a nomenclatura e, na maioria das vezes, relacionam-se com o género em que as obras, supostamente, se inserem, de forma a serem compreendidos e aceites com facilidade pelos leitores.
Sobre géneros literários, pode ler-se em Theory of Literature de René Wellek e Austin Warren (Harcourt Brace & Company, 1962): «Genre should be conceived, we think, as a grouping of literary works based, theoretically, upon both outer form (specific metre or structure) and also upon inner form (attitude, tone, purpose - more crudely, subject and audience)» (pág. 231). E ainda: «With the vast widening of the audience (...) there are more genres; and, with the more rapid diffusion through cheap printing, they are short-lived or pass through more rapid transitions. (...) we are conscious of the quick changes in literary fashion - a new literary generation every ten years, rather than every fifty» (pág. 232). É certo que a imutabilidade não é uma característica formativa dos géneros literários, que, enquanto entidades vivas (no mínimo, entidades culturais - ou meméticas) são de natureza proteica. Mesmo assim, o principal agente responsável pelas mutações que se verificam neste campo é o mercado e isso corresponde-se com muitas variáveis de ordem de sobrevivência comercial, nas quais pouco ou nada afloram preocupações de índole artística e intelectual. Além de ser um objecto comerciável, um livro é uma manifestação artística, mas o acto de designar um determinado romance com um género ou sub-género em particular tem tanto de artístico como rotular um frasco de salsichas com o logótipo da fábrica onde são feitas; consiste numa identificação dirigida ao leitor (consumidor) e que lhe transmite uma série de conceitos que ele, à partida, considera positivos. É aqui que deve ser considerado o argumento de Wellek e Warren, do qual se aduz que «Genre should be conceived, we think, as a grouping of literary works based, theoretically, upon (...) subject and audience». Acrescento que também o selo editorial de uma obra serve os mesmos propósitos que o género: é também uma marca (como a das salsichas) que cria um conjunto de expectativas nos leitores que dela se aproxima. Daí que a subvalorização ou sobrevalorização de um título literário pode estar - e muitas vezes está - em directíssima comunicação com a editora que o põe à venda: ou seja, essas apreciações são trajectórias exclusivas entre Editora e Leitor, pois não passam por nenhuns pontos que se encontrem no caminho do próprio livro. É uma questão que se pode considerar como sendo paralela à dos géneros e que prova como o mercado é um campo polimorofo.

Neste momento, está na moda um quinhão de denominações para uma série de supostos géneros literários, entre eles, no espectro da Literatura Fantástica, o dito romance paranormal que, pelo que eu entendo, é utilizado para catalogar histórias que, embora contendo elementos sobrenaturais, têm lugar num espaço e num tempo comuns. A minha primeira pergunta é esta: porque é que se inventou (mais) uma designação para denominar obras que já estavam incluídas, ou que podem perfeitamente ser incluídas, nos géneros fantásticos já existentes? A resposta atende à vibrância do mercado livreiro que precisa, de modo constante, de cunhar os seus produtos com o cariz de novidade, de exclusividade, de maneira a titilar o interesse dos consumidores - basta ler qualquer manual de marketing para percebê-lo. O problema é que quanto mais géneros e sub-géneros se inventam, à medida que as criações publicitárias pretéritas vão ganhando desgaste, mais a identidade dos livros se aliena dos leitores; levados a ignorar certas obras porque elas não lhes são apresentadas de acordo com os seus catálogos de nomes reconhecíveis ou predilectos.
Analisando a proposta de romance paranormal percebe-se, de imediato, como ela não se sustenta, pois a raiz da palavra paranormal (que entra no léxico da língua inglesa algures no segundo decénio do século passado) significa o oposto daquilo que se quer veicular: paranormal tem o sentido de próximo do normal, já que o prefixo para, em grego, significa próximo. É sempre arriscado inventar novas palavras quando não se sabe o que se está a fazer. Provavelmente criada com o sentido de ser um sinónimo de sobrenatural (palavra do glossário eclesiástico do século XVI que só no final do século XVIII passou a ser usada popularmente para designar fenómenos inexplicáveis, relacionados com espíritos e criaturas mágicas), a palavra paranormal traduz o contrário: algo que está ao nível da normalidade (do latim normalis que significa conforme o esquadro - que em latim se diz norma). Em suma: dizer-se que um romance que tem criaturas sobrenaturais como personagens é um romance paranormal não faz sentido nenhum.
Porque é que não se chama, simplesmente, romance gótico? Seria mais acertado, atentando até à possível etimologia da palavra gótico, sobre a qual escrevi em pormenor nesta ligação.
Mas romance gótico (ou de horror, ou até de suspense), apesar de ser correcto, não tem o verniz límpido do efeito de novidade que o mercado livreiro precisa para vender. Entretanto, vai-se contribuindo para o baralhamento das palavras e seus significados.