quinta-feira, 31 de março de 2011

Poema


O Macaco (Valsa Lisboeta)


Nunca se sabe até que ponto um macaco
pode chegar na ânsia de nos imitar

Dizem alguns autores ser o macaco
difícil de apanhar - mas não

Em qualquer mundana reunião
num ombro numa frase num olhar
no jeito «humanista» de falar
aí temos o macaco a trabalhar
procurando aproveitar a confusão

Pessoalmente sou de opinião
que o macaco é fácil de caçar
até à mão.

Alexandre O'Neill (in Poemas Com Endereço, 1962)

terça-feira, 29 de março de 2011

Os Falidos do Intelecto


A quantidade de visitantes portugueses e brasileiros que vêm parar ao Cadernos de Daath com pesquisas como «livro-tal sinopse» ou «trabalho sobre livro-assim e assim» ou «tese sobre o-tal-livro» faz-me pensar que anda por aí muito aldrabão nos ensinos secundário e superior.
Já que não querem ter o trabalho de ler os livros, ao menos tenham o de imprimir os vossos mafianços sem os endereços de Internet na margem das páginas. Já muitos falidos do intelecto foram apanhados dessa maneira, santa burrice!...

domingo, 27 de março de 2011

Grendel 2011


As edições Saída de Emergência, através da chancela Camões & Companhia, acabam de publicar uma nova edição do romance Grendel, de John Gardner.
Este título é um dos melhores romances contemporâneos de literatura fantástica e quem acompanha as minhas observações aqui nos Cadernos de Daath, ou em outros veículos de expressão, sabe que não me canso de elogiá-lo.

A capa deste novo Grendel apresenta uma das ilustrações que desenhei para a primeira edição (2007), que também prefaciei.
Como é evidente, a nova edição contém todas as referidas ilustrações e introdução.

Caros leitores, não deixem passar esta oportunidade de enriquecer a vossa biblioteca e de ler um dos melhores romances fantásticos das últimas décadas: corram já para a livraria e levem-no para casa.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Velha Rua Nova de Lisboa


Dois quadros apresentados ao público, em Novembro do ano passado, na exposição Marfins Cingaleses do Século XVI, no Museu Rietberg de Zurique, na Suíça, e disponibilizados pela curadora Ruth E. Bubb, da Sociedade de Antiquários de Londres, mostram visões da nossa Rua Nova pré-pombalina.
A similitude com o registo que António D'Ollanda (pai de Francisco D'Ollanda) nos deixou no quinhentista Livro de Horas de D. Manuel I, na iluminura de uma procissão fúnebre que ilustra um Ofício de Defuntos, é muito grande; em especial os característicos edifícios altos com as suas distintivas arcadas. Não é fácil contextualizar a tela que reproduzo acima, mas, atentando à profusão de sacerdotes inacianos, avanço com a hipótese de que é uma representação da Rua Nova em meados do século XVII ou nas primeiras décadas do século XVIII. O nosso século XVII foi tenebroso, social e culturalmente: um vazio de ideias e progressos, em contraste brutal com o que se passava ao mesmo tempo no resto da Europa e, também, em total oposição com os melhores anos do reinado manuelino.

Os quadros, que se encontravam numa casa senhorial inglesa, apresentam - para minha satisfação - imagens de Lisboa que vão ao encontro das descrições que se podem ler nos meus romances Lisboa Triunfante (2008) e O Evangelho do Enforcado (2010).

«Miranda sentia-se tão forasteiro como as negras que vendiam favas, camarões e chicharros cozidos e fritos pelas ruas, como os negros que andavam pela cidade com brochas e baldes de cal às costas ou como os mouros das galés. É que a "cidade das sete colinas" não se parecia nada com o resto do país; nem sequer com Coimbra que também era uma cidade grande. Portugal ajeitava-se num espaço peninsular exíguo em pequenos aglomerados de gente, mas Lisboa era gigantesca; um enxurro de todo o tipo de pessoas.
As casas de pedra preta do irregular centro gótico contrastavam com as moradias de três andares da Rua Nova dos Mercadores e da Rua Nova dos Ferros todas pintadas de azul, vermelho e amarelo; os vários arcos e portas da cidade possuíam santos, estátuas e brasões pintados de cores vivas. (...) Apesar da abundância de gente que enchera a arena do Terreiro do Paço para ver o combate dos colossos, a Rua Nova dos Mercadores estava pejada de pessoas àquela hora. O mercado da hortaliça e da fruta, mais o do pão, enchiam-se de citadinos que queriam comprar o maior número possível de alimentos antes que os preços voltassem a subir; os novos-ricos saíam e entravam nas joalharias e das ourivesarias, ora para comprar, ora para penhorar. A vozearia dos comerciantes e clientes ecoava pelas arcadas harmoniosas que serviam de lojas e sustinham os edifícios de três andares; nas paredes coloridas podia ver-se palavrões e caricaturas garatujadas a carvão e giz. A estrada de terra batida estava atulhada de detritos e emporcalhada pela água suja que as escravas despejavam para o chão, mas em nenhum lado o pivete era pior que na praça e no açougue - era impossível não passar pelas bancadas do peixe e da carne sem ficar sujo de sangue e escamas. vendilhões ambulantes furavam caminho entre os indivíduos, incluindo os magríssimos mestiços do Norte de África que deambulavam com um pequeno forno de ferro à cabeça e assavam línguas de borrego por três reais e meio; traziam-nas dentro de um saco que levavam às costas, mas também cozinhavam a carne e o peixe que os clientes compravam no mercado.»
(in A Lição de Arquitectura. Lisboa Triunfante.)

«A alma é um mecanismo, sujeita aos fins para os quais foi criada, pensou Nuno, ao caminhar sozinho pelas ruas de Lisboa, pela primeira vez em cinco anos. Essa é uma verdade que deve ser levada muito a sério. O Sol forte magoava-lhe a vista, mas que dor tão doce era essa. Como mel - e tão dourada quanto ele. Acho que... que vou passar na Rua Nova.
Encontrou uma nova Rua Nova, pintada de tons quentes e cheia de casas soberbas, suportadas por arcadas que ainda luziam dos polimentos; o pavimento era o mesmo, contudo - sujo como o fundo de um barril. Observou os rostos dos indivíduos como se fossem criaturas de outro mundo: até eram, pois o mundo dele ruíra com a velha rua e o regedor.
Aquela Lisboa e aquele tempo não lhe pertenciam.
Pôs-se de frente para o sítio onde ficava o seu armazém e descobriu que fora ocupado por uma nova casa. Passou por baixo do arco e olhou para cima: viu um pombo a dormitar em cima de um capitel; a sombra era fresca e o ar, recheado de ruídos cristalinos, cheirava a fruta fresca.»
(in Espadas: Surgite ad Judicium. O Evangelho do Enforcado.)


terça-feira, 22 de março de 2011

Leituras

Leituras: neste momento, vou a meio de Kraken, de China Miéville.
A lista das leituras seguintes contém títulos como Hadrian the Seventh de Barão Corvo, Giles Goat-Boy de John Barth, The Hidden Reality de Brian Greene, The Stuff of Thought de Steven Pinker, Moby Duck de Donovan Hohn e The Book of Universes de John D. Barrow.

Epifania

Talvez tenha tido uma epifania (a palavra vulgarizou-se tanto, por isso quem sabe?), mas quase que tenho a certeza de que se se olhar com atenção para o quadro As Rosas de Heliogábalo, de Alma-Tadema (1888), a pintura nos desvendará todos os segredos do universo.

sábado, 19 de março de 2011

"Lisboa: Estado Sólido"

Quarta e última observação do meu spoken word Lisboa (2002), com textos e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias, intitulada Estado Sólido. No seguimento do terceiro capítulo Hep, Hep, Hep!, consiste numa ficção sobre o terramoto de 1 de Novembro de 1755, no qual ele surge como um vórtice onde vertem, em coexistência e no mesmo plano, diferentes Lisboas e diferentes datas, numa intrincada tapeçaria de correspondências. Um texto simbólico que não versa tanto sobre o terramoto real, como versa sobre a própria arquitectura da história.


sexta-feira, 18 de março de 2011

"Lisboa: Hep, Hep, Hep!"

Terceira observação do meu spoken word Lisboa (2002), com textos e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias, intitulada Hep, Hep, Hep!. No seguimento do segundo capítulo O Corvo e a Rosa, consiste numa necroscopia do anti-semitismo lisboeta, e europeu, numa sobreposição, no mesmo plano, de várias épocas e lugares.

quinta-feira, 17 de março de 2011

"Lisboa: O Corvo e a Rosa"

Segunda observação do meu spoken word Lisboa (2002), com textos e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias, intitulada O Corvo e a Rosa. No seguimento do primeiro capítulo A Arquitectura da História, consiste numa invocação alquimitológica sobre os corvos de Lisboa, mais uma vez feita de história, mitos e universo autoral.

"Lisboa: A Arquitectura da História"

Em 2002, gravei o spoken word Lisboa: um ensaio mitológico sobre a cidade, que mistura história, mitologia e o meu universo de autor. Quatro observações o compõem, num entretecer e baralhar de épocas, datas e lugares, às vezes coexistentes no mesmo plano. Este é o primeiro capítulo: A Arquitectura da História. Texto e voz meus e misturas e produção de Fernando Matias.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Regresso às origens


Descobri hoje que a Central de Cervejas lançou uma nova cerveja Sagres: uma novidade com sabor a chocolate.
Diz a notícia que consiste numa «inovação exclusiva e pela primeira vez em Portugal».
Quanto a ser a primeira vez em Portugal, não sei, mas tenho a certeza de que não é uma inovação exclusiva...
É que o chocolate bebido pelos Maias (desde 100 d.C.) e pelos Aztecas (por altura do século XIV) era, com efeito, uma bebida alcoólica, feita de feijão ou milho fermentados, à qual água e grãos torrados e moídos de cacau eram adicionados, assim como malaguetas. Em suma: era uma cerveja picante de chocolate.
Em língua nahuatl (a língua dos povos meso-americanos pré-colombianos), a bebida era chamada de xocoatl: uma beberagem que nenhum paladar contemporâneo (à excepção, talvez, do de Anthony Bourdain) seria capaz de apreciar. Os invasores espanhóis provaram-na pela primeira vez na corte de Montezuma, no século XVI e, embora tenham ficado enojados, acharam que o cacau tinha possibilidades e lembraram-se de substituir as malaguetas por açúcar e canela.
O mais curioso é que os sacerdotes aztecas consumiam uma variante especial desta cerveja de chocolate, temperada com o veneno alucinogénio do sapo-cururu (bufo marinus): as glândulas e a pele do sapo eram misturadas à solução durante a fermentação da cerveja e, posteriormente, ela era tomada através de clisteres.
A absorção dos compostos alucinogénios da poção pelos vasos sanguíneos do intestino era rápida e os efeitos muito intensos. (Ainda hoje, os clisteres de bebidas alcoólicas são prática frequente em outro tipo de celebrações.)

Debaixo do Domo

As 877 páginas de Under the Dome, de Stephen King, acabam por ser poucas para contar uma história que tem muito para oferecer.
A premissa é elegante: a cidade de Chester's Mill vê-se, de um momento para o outro, coberta por uma redoma invisível e indestrutível.
Quem a ergueu?
Qual é o objectivo?
As personagens não sabem. Porém, algumas são capazes de adivinhar. E o leitor, se pensar um bocadinho, também será.
O início e o desenvolvimento do livro são interessantes, pontuados por pormenores muitíssimo realistas de caracterização de personagens e de ambientes, embora a prosa - simples, mas não simplória - pejada de referências à cultura popular norte-americana, não se apresente muito "sofisticada" aos olhos de um leitor europeu. Contudo, do meio para o fim, Under the Dome ganha uma força tremenda e cresce imenso, dando-nos a ler, de certeza, uma das catástrofes mais violentas que já foram imaginadas na literatura.
O romance beneficiaria de uma revisão mais atenta, mesmo assim, que evitasse algumas incongruências (o cão Horace é chamado de Hector durante umas páginas, por exemplo) e linhas de raciocínio que, acho eu, devem ter permanecido de certas partes entretanto suprimidas pelo autor, aquando da preparação da versão final. Ademais, não deixa de ser inesperado que um romance tão grande tenha um ritmo tão acelerado e eu acho que isso também acaba por prejudicar Under the Dome, porque certos pormenores, como os efeitos a médio prazo que a cúpula invisível opera na cidade e região florestal limítrofe, mereciam mais atenção. De maneira geral, King está mais interessado em analisar o comportamento dos indivíduos, levado ao extremo por esta circunstância extraordinária, que em especular sobre a origem e a razão do surgimento da cúpula - embora elas sejam apresentadas e explicadas.
Under the Dome poderia muito bem ser um argumento para um episódio da série televisiva Twilight Zone, imaginado por uma consciência traumatizada pelos contemporâneos atentados terroristas, mas, embora possa ser lido como uma alegoria aos Estados Unidos quando governados pela administração do anterior presidente, é muito mais uma reflexão sobre o mal que os homens são capazes de fazer quando, de repente, se vêem sem restrições. Se a ideia principal por trás dos crimes de Mr. Griffin, em The Invisible Man de H. G. Wells, é a de que somos capazes de fazer tudo quando já não temos que nos encarar ao espelho, a ideia principal de Under the Dome é a de que somos capazes de fazer tudo quando já não temos que sair de nós próprios - quando o simples acto de comunicar com o outro se tornou obsoleto. É, também, uma obra muito mais lúcida e honesta que outras que tocaram em alguns dos mesmos botões, como a série televisiva Lost, por exemplo, para invocar um título mediático. Só que em Under the Dome cada homem é que é uma ilha; o que daria, sem dúvida, que pensar a John Donne.

Uma adenda: Apesar do título, o misterioso campo de forças que isola Chester's Mill não é uma cúpula, mas um invólucro completo, já que o subsolo da cidade também se encontra under the dome.

terça-feira, 15 de março de 2011

Mudança

A única maneira de mudar a sociedade é a mesma maneira de mudar-se seja o que for: através do exemplo do indivíduo. Alguém sonha e faz - e ao fazer não só mostra a forma como se faz, como, mais importante ainda, mostra que é possível fazer.
A sociedade não muda com manifestações derivativas, nem com manifestos. Muda quando alguém, no isolamento do seu génio, pensa e aplica o pensamento em algo que perdure no tempo. Se perdurar, mais cedo ou mais tarde vai servir de exemplo e o exemplo é que é mimetizado, não são as palavras.
Talvez nunca como neste período, em que todos os indivíduos se acham inteligentes e bem-informados só porque a profusão de informação à sua volta lhes oferece essa ilusão, a sociedade exigiu tanto dos seus elementos constituintes: dos seus "heróis" individuais. Querem mudar o estado das coisas? Então leiam mais, opinem mais, trabalhem mais, criem mais e, dentro da área em que estiverem inseridos, seja ela qual for, tentem ser os melhores naquilo que fazem.
Comecem por mudar, para melhor, aquilo que podem, com efeito, mudar.
O resto vem a seguir.

Cabaret Seixal 2011

Um pequeno excerto da primeira vaga do festival de spoken word Cabaret Seixal 2011, realizado no dia 25 de Fevereiro, no Cinema São Vicente (Seixal). Com música de Charles Sangnoir e textos de David Soares e Fernando Ribeiro.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Os Livros das Minhas Vidas

Para ser sincero, um convite para falar sobre os livros da minha vida soa como o som trítonocárpico das falanges da mão da morte a bater-me à porta, pois se a invitação se refere aos livros da minha vida, então tenho de aceitar que ela está perto do fim e não vou ter tempo de ler mais nenhum título: mortis en solatium. Talvez. De qualquer das formas, os livros da minha vida – no mínimo da que vivi até este momento; e no limite até ao final da escrita deste texto – não são apenas os livros que eu li, mas aqueles que escrevi. De uma forma ou de outra, os livros são uma parte muito importante da minha vida, porque a leitura e a escrita são duas ocupações às quais devoto a maioria das horas. No início deste parágrafo empreguei o verbo falar, porque é isso mesmo que estou a fazer convosco: a contar-vos um bocadinho de que é feita a minha experiência com os livros. Apenas um bocadinho – é, somente, uma precaução da minha parte, de modo a evitar a insolvência de memórias e garantir que me sobra algo sumarento para pagar ao barqueiro, porque o maior pecado que se pode cometer, mesmo depois de morto, é o da negligência.

Aprendi a ler com a banda desenhada Donald e as Formigas, de Carl Barks, publicada em Portugal pela Editora Abril/Morumbi no número 1500 da série quinzenal Pato Donald. Decorria o ano de 1981, e eu, sentado no sofá da sala de estar da casa dos meus pais, observava com atenção as vinhetas e tentava decifrar as palavras contidas nos balões. Então, num momento inesquecível, que eu só posso comparar com o acender de uma luz dentro da minha cabeça, as personagens deixaram de falar para os balões e começaram a falar para mim: compreendi que não estava a inventar os diálogos, como costumava fazer, mas a ventriloquar as verdadeiras vozes das personagens – estava a ler. O mérito foi, também, da minha mãe, porque ela mantinha a rotina de sentar-se comigo para me ler histórias; do Pato Donald, mas também do Mickey, do Musti e do Petzi. Ela ensinava-me a sonoridade das letras e como elas se harmonizavam e esses ensinamentos fizeram com que eu aprendesse a ler sozinho. Essa conquista primeva de infância foi um dos momentos mais importantes da minha vida, porque aprendi a lidar com palavras antes de ser capaz de me desembaraçar sozinho na casa de banho. Se a vida e a morte são um único movimento circular, prefiro, em simetria, no meu último leito, seja ele qual for, perder a elasticidade entérica em vez da elasticidade da imaginação. Por tudo isso, de modo inexcedível, esse número 1500 do Pato Donald, com uma capa que, à distância, me evoca até a heteronímia pessoana na multifaria de Donalds diferentes que a decoram, é um dos livros da minha vida.

Outra memória mucípara, resgatada desses tempos das criancices, prende-se com O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico, publicado pelas Selecções do Reader’s Digest, em 1977. Descobri-o em casa de uns tios, em meados da década de oitenta, e fiquei apaixonado pelos relatos assustadores que continha: vampiros, fantasmas, assassinos em série, exploradores do passado e do futuro, demónios e bruxas, monstros humanos, invenções fabulosas, extraterrestres, animais quiméricos… No final dessas visitas, os meus pais vinham resgatar-me do meu refúgio chegado à varanda, onde me sentava com o livro no colo, e eu, mais desconsolado que Jeremias, tinha que me separar dele. Passados poucos anos, em outra visita, convenci os meus tios a emprestarem-mo. (É claro que ainda o tenho.) Muito, muito, muito texto desse livro saboreei ao longo de tardes que pareciam imensas, enquanto comia bolachas Catraias da Triunfo, com os signos do Zodíaco, barradas com manteiga. Acho que aquilo que esse livro me mostrou foi que era possível as maravilhas e as monstruosidades existirem no mesmo mundo: uma histonomia excêntrica, composta de sofisticação cosmopolita e folclore medonho. Também é um livro que, de certo modo, me influenciou a ser céptico, porque apresenta inúmeras secções que desmistificam historietas e lugares-comuns da História: verbetes que eu acho fascinantes. A mistura de proto-esoterismo, História, ciência e fantasia abarcada pelo O Grande Livro do Maravilhoso e do Fantástico faz dele, sem dúvida, outro dos livros da minha vida.

A memória é a única língua com a qual podemos falar com os mortos e os sonhos são os únicos lugares em que os podemos encontrar; às vezes, perder alguém é perder uma âncora que nos agarrava a um determinado local e encontrar o pé, novamente, dá trabalho, mas encontrá-lo é preciso. O terceiro livro da minha vida que me lembrei de vos falar é um pequeno volume, que estava na casa do meu avô, e que se chama Doenças dos Bichos de Nogueira de Araújo, publicado pelo Ministério da Educação Nacional, em 1973. O subtítulo é Memórias de um Veterinário Rural e consiste num comedido compêndio no qual as informações zooterapêuticas são veiculadas através de histórias ilustradas. Não faço ideia porque é que os meus avós tinham esse livro, mas sempre o achei hipnotizante; em especial, a ilustração de um cavalo infectado com tétano, acompanhada pelo retrato detalhado do bacilo anaeróbio responsável. Lembro-me de passar uma tarde de Sábado em casa dos meus avós a ler o Doenças dos Bichos e a desenhar o Homem Elefante, do filme homónimo de David Lynch, que passara à noite nessa semana. Lembro-me desse desenho: era uma criatura careca e deformada, com mãos minúsculas e olhos tão esbugalhados quanto os do Cão Grande do conto fantástico de Andersen – muito diferente do protagonista da película, mas era assim que eu achava que um verdadeiro Homem Elefante deveria ser. Com curiosidade, procurava no Doenças dos Bichos a sua estranha patologia, que um vizinho que estava de visita erroneamente me disse ser elefantíase.

Os livros da minha vida são, também, como indica o título desta rubrica, os das minhas vidas, porque as pessoas que fui quando os li e quando os escrevi são um pouco diferentes da que sou neste instante. Porém, tanto uns como os outros são melhores que os sonhos em que podemos visitar os nossos mortos, porque basta tirá-los das estantes para conversarmos com versões mais jovens, mais optimistas e mais ousadas de nós próprios. Versões que já morreram, evidentemente, mas é mantendo essas presenças do passado na biblioteca que construímos carácter e perduramos no tempo. Escrever é trancar a porta pela qual a morte quer entrar, mas ler é abrir janelas.

(Texto publicado originalmente no número nove da Revista BANG!, editada pela Saída de Emergência.)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Tudo o que existe


Andar a pé por uma cidade antiquíssima, como Lisboa, é meio-caminho andado para se sentir uma tristeza profunda pela efemeridade do nosso próprio mundo: onde estão os nossos sítios, os nossos mortos, esses pontos de contacto entre o nosso coração e o território? Como continuar a caminhar, quando grande parte do que amámos já se foi embora? Quem estuda a história não se pode dar ao luxo de ser nostálgico, mas eu não sou historiador, sou escritor e por isso posso ser nostálgico à vontade. E nem toda a tristeza é má. Continuam perto de nós, essas âncoras de osso e pedra, de palavra e memória - camufladas no território, como um vasto sistema nervoso sob os músculos. Continua-se a caminhar, porque o território é tudo o que existe: é tudo o que sempre existiu e continuará a existir; mesmo depois das mortes daqueles de quem gostamos e da ruína dos locais onde vivemos. Somos sílabas e iluminuras num texto redigido pelo tempo sobre a terra que nos viu nascer, como tinta sobre um pedaço de papel. Nós secamos, como a tinta - embaciamos. O território fica - mas nós ficamos nele. Ressequidos. Translúcidos. Como folhas mortas. Não há nada mais para além disso.

domingo, 6 de março de 2011

Moby Duck


Yeah!
O epítome de fixe? Nem mais!
Quando o ler, comento...

sexta-feira, 4 de março de 2011

David Soares no "Café Com Letras" de Carlos Vaz Marques


Novo romance: "Batalha"

O Café Com Letras correu muito bem: obrigado a Carlos Vaz Marques pelo convite e moderação, à Biblioteca Municipal de Algés pelo acolhimento e a todos os leitores e amigos que apareceram e contribuíram com entusiasmo.
Como prometido, ficou a revelação de que o meu novo romance, a editar neste semestre, se intitula Batalha (Saída de Emergência) e consiste numa história sobre religião e linguagem... observadas pelo ponto de vista dos animais. Mas não esperem uma fábula comum: o livro é bem negro!
Mais detalhes para breve.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Hoje no "Café Com Letras"


Hoje, às 21H30, estarei na Biblioteca Municipal de Algés para participar na tertúlia literária Café Com Letras, numa conversa moderada por Carlos Vaz Marques. Será uma conversa informal sobre o meu trabalho e prometo revelar o título do meu novo romance, a ser publicado neste primeiro semestre pelas edições Saída de Emergência.

terça-feira, 1 de março de 2011

Hoje é Dia de São David


Hoje é dia de São David!
Patrono dos poetas, dos recitadores e dos fogos-fátuos!
É, normalmente, representado em cima de uma colina elevada, com um livro aberto na mão e com o Espírito Santo d'Orelha, ao ombro, a aconselhá-lo.
No dia de São David, realiza-se o tradicional festival Eisteddfod: um evento que mistura literatura, música e declamação.
Fitting, é tudo o que posso dizer...