quarta-feira, 27 de junho de 2018

Os animais de Tischbein, de Joyce e a barbárie da reflexão



Ainda na preambular fímbria do seu magnífico e voluminoso The Anatomy of Melancholy, o obsessivo fazedor de listas Robert Burton averiguou as copiosas causas da desgraça humana; entre doenças e pragas, também se ocupou das espécies animais e vegetais que, nas suas palavras, estão em guerra com a humanidade: «lions, wolves, bears, etc., some with hoofs, horns, tusks, teeth, nails (…) noxious serpents and venomous creatures, ready to offend us with stings, breath, sight, or quite kill us (…) pernicious fishes, plants, gums, fruits, seeds, flowers, etc., could I reckon up of a sudden, which by their very smell, many of them, touch, taste, cause some grievous malady, if not death itself!». Falecido em 1640, este académico inglês deixou como testamento um exuberante enciclopedismo que suplanta os de outros compiladores coevos, como De rerum varietate do polímate lombardo Jerónimo Cardano e De rerum natura iuxta propria principia do filósofo calabrês Bernardino Telésio, ambos tratados intensivos sobre a natureza; contudo, Burton, na predominância que instala sobre os aspectos melancólicos, prefigura a frieza do materialismo setecentista que pode encontrar-se, entre outros casos, no pensamento do filósofo neerlandês Bento Espinosa e, em maior espessura e inflexibilidade, no do enciclopedista franco-germânico Holbach, autor do influente Système de la nature. Se o cristianismo filtrado pela cosmovisão franciscana anunciava que a natureza era nossa irmã (pedra de toque para o moderno método cientifico), Holbach almejava autonomizar o homem em relação a ela: no mínimo, o homem novo, racional, chocado na incubadora das Luzes; aquele a quem, por ter-se libertado das antigas superstições, era dada a chave para entender a natureza como sendo um previsível sistema de verdade. De igual modo inquieto com os dons de observação da natureza, e com a idade de dezanove anos à altura da publicação do livro de Holbach, o artista alemão Johann Wilhelm Tischbein estava prestes a iniciar uma curta viagem aos Países Baixos para estudar a arte dos antigos mestres; na verdade, quando contemplo os seus quadros não posso deixar de vê-lo como um Miguel Ângelo do bestiário, analogia conforme à diligente e dinâmica musculatura dos seus animais, comprovada pelas telas em que o raposo Reynard é levado para a forca pelo urso, pelo lobo e pelo gato, e na dramática cena de caça ao urso, com cães e homem a cavalo – sob o pêlo, a carne torce-se e encarquilha numa instável energia maníaca, como as palavras no livro de Burton.

No entanto, o quadro A Vingança dos Animais Caçados, que exibe uma cena de mundo às avessas, com um caçador a ser assado por animais, singulariza-se no cômputo da sua obra: não me suscita a sátira, mas a perturbação; desencadeada, não pelo caçador churrascado por um porco e uma cabra – numa composição grotesca, mas, ainda assim, caricatural –, mas pela minúcia macabra de dois cães de caça enforcados num ramo de uma árvore por duas raposas e um macaco, enquanto outros dois cães aguardam, abatidos, a sua vez de ser dependurados. É impossível não lhe aglutinar em perfeita proporção as sinistras imagens monocromáticas desenhadas febrilmente pelo pintor aragonês Francisco Goya, reunidas sob a designação Los Desastres de la Guerra: aqui, os animais selvagens enforcam, exultantes, os animais traidores, os cães fiéis ao caçador. Esta é uma imagem do mundo natural que se ergue em absoluto sinal contrário ao emitido pelas profecias de Holbach e seus pares enciclopedistas: a natureza é tudo menos previsível e verdadeira – é irrefreável, retaliativa, impiedosa. Os negríssimos desenhos de Goya retratam que o homem é o pior inimigo do homem, juizo com o qual Burton encerrou a sua passagem sobre os animais em guerra com a humanidade: «The greatest enemy to man is man, who by the devil’s instigation is still ready to do mischief, his own executioner, a wolf, a devil to himself and others». Porém, a excêntrica visão de Tischbein mostra que não existe nenhuma solidariedade entre os animais; empregando conceitos posteriores à execução da pintura, é sedutora a leitura de ver os cães a ser enforcados pela comunidade de tovarishes, ou camaradas, depois de serem rotulados de burzhooi, aquela proteica categoria soviética de inimigo do povo, transversal a todos os grupos sociais, na qual, arbitrariamente, qualquer indivíduo poderia cair. Dos participantes neste zoológico charivari, somente o elefante guarda no olhar um resquício de respeitabilidade; de postura pacífica, ainda é possível musicar a sua marcha ao som do quinto movimento de Le carnaval des animaux, do compositor francês Camille Saint-Saëns, que, para esse breve andamento, reduziu a velocidade e adicionou gravidade a trechos endiabrados de Berlioz e Mendelssohn. Mas a atonalidade da ópera Moses und Aron, do compositor austríaco Arnold Schoenberg, será mais adequada a uma orquestração deste grand guignol – até em relação ao tema plasmado na pintura, que parece ser o do idealismo abstracto em confronto com a crua realidade, incluso no conflito fraternal entre a metafisica de Moisés e a materialidade proposta por Araão. Um deus anicónico contra um ídolo que se possa tocar. Uma natureza calculável e ordeira, face a uma natureza desgovernada e sanguissedenta. Não é à toa que o bezerro é feito de ouro, porque esse metal valioso evoca a substância de um pretérito precioso que, debalde, se intenta readquirir em períodos de caos (como no quadro de Tischbein).

O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen escreveu um fantástico conto que me obcecou na infância e que me sugere, neste instante, uma reflexão sobre essa ida idade dourada: em O Acendedor, um soldado regressado da guerra encontra num bosque uma bruxa que o contrata para descer a uma subterrânea câmara de tesouros com o objectivo de resgatar um acendedor que a sua avó lá deixara; em câmbio, o soldado pode trazer todas as moedas que desejar. No interior, depara-se com três portas, cada qual dando passagem para uma sala cheia de moedas; sobre os amontoados de dinheiro encontra, vigilantes, três grandes cães que a bruxa lhe ensinou a amansar: os olhos daquele que guarda as moedas de cobre têm o tamanho de pires de chá; os do que guarda as moedas de prata são enormes como noras; e os do que guarda as moedas de ouro têm o diâmetro de uma colossal torre. Mais à frente, depois de decapitar a bruxa para ficar com o acendedor, o soldado descobre por acidente que este tem o condão de chamar os cães da câmara de tesouros, bastando raspar o número de vezes necessário para recorrer ao animal pretendido: uma para chamar o cão mais pequeno; duas para o cão de tamanho médio; e às três, o maior cão. No decurso da história, o soldado cria laços com um único cão: o mais pequeno, de olhos do tamanho de pires de chá, que guarda as moedas de cobre. O que significará isto?

Outros três cães, igualmente expressivos, encontram-se em Ulysses, de James Joyce: retrovertidamente, eles são Garryowen, um velhaco irish setter, propriedade do velho Giltrap; um cão malhado, sem nome, pertencente a um casal que passeia na praia; e um cão meio-putrefacto, jazido na mesma praia. É Leopold Bloom que encontra Garryowen no bar de Barney Kiernan, dialogando em língua canina com o ultranacionalista Cidadão – de facto, é-nos narrado nesse momento que versos da autoria de Garryowen já foram traduzidos para inglês por um académico incógnito; e o exemplo escolhido pelo autor conta-nos as angústias do cão, que nunca tem nada de jeito para beber e para comer naquele bar malfadado. As qualidades coloquiais de Garryowen (que os bêbedos do bar chamam de Owen Garry) são sublinhadas algumas páginas à frente: «grandpapa Giltrap’s lovely dog Garryowen that almost talked, it was so human». Por outro lado, o cão observado a correr na praia por Stephen Dedalus, que parece ser mais pequeno que Garryowen, é-nos descrito como «trotting, sniffing on all sides. Looking for something lost in a past life». Com efeito, o cão fareja a carcaça inchada do cão morto, desprezada sobre as bodelhas: «He stopped, sniffed, stalked round it, brother, nosing closer, went round it, sniffling, rapidly like a dog all over the dead dog’s bedraggled fell. Dogskull, dogsniff, eyes on the ground, moves to one great goal. Ah, poor dogsbody. Here lies poor dogsbody’s body». Um cão maior, de capacidades comunicativas extraordinárias; um cão médio, de características comuns; e outro cão, reduzido a polpa pela decomposição: tríade que se assemelha a de Andersen, composta pelo maior cão do ouro, o médio cão da prata e o menor cão do cobre.

Três tamanhos distintos, três metais de desigual valor e três díspares estádios de desenvolvimento. São alegorias para a trilogia de idades ou tempos do mundo proposta pelo filósofo napolitano Giambattista Vico em Principi di Scienza Nuova: o tempo dos deuses, o tempo dos heróis e o tempo dos homens, num movimento contínuo de curso e recurso (corsi i ricorsi) – finado o terceiro tempo, o ciclo reinicia-se novamente com um novo tempo dos deuses.

Joyce conhecia a teoria de Vico, pois logo no início de Finnegans Wake escreveu: «riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, bring us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs». Não só esta frase inaugural é a sucessão da última frase do romance, «A way a lone a last a loved a long the», como o anunciado «commodius vicus of recirculation» é uma alusão à teoria viconiana de curso-recurso. Muito mais à frente, somos informados que «the Vico Road goes round and round to meet where term begin. Still onappealed to by the cycles and unappalled by the recoursers we feel all serene, never you fret, as regards our dutyful cask». Esta Vico Road existe, de facto, mas, aqui, trata-se de uma Estrada Viconiana mítica, intemporal, curso-recursiana, cujo refluxo nos devolve a um tempo incial. Incólume a este movimento, parece ser o narrador, indiferente aos ciclos e desassombrado pelos recurseuntes; sereno – que não nos preocupemos – no seu confiável caixão, à guisa de Christian Rosenkreutz no túmulo da falsa morte. O tema da viagem cursiva-recursiva é, explicitamente, referido num dos enigmáticos diálogos entre intérpretes polissemânticos: «-Hail him, heathen, heal him holystone! / Courser, Recourser, Changechild................. / Eld as endall, earth.................». Pode ser que a «changechild» – a fazer lembrar o bebé espacial do final de 2001: A Space Odyssey, de Stanley Kubrick – seja o titular gigante ultra-humano Finnegan, vazado num avatar de muitos nomes, mas sempre reconhecível pelo acrónimo HCE. No primeiro capítulo, é tentador ver o mitológico gigante Finnegan, derruído após uma queda iniciática, na iminência de ser consumido ou repartido pelos seus pares, antes de despertar e ver-se confrontado com a vontade destes em que permaneça entorpecido. Um dos trechos da Ciência Nova comunica directamente com esta imagem: «Em seguida, os gigantes pios, que estavam colocados nos montes, devem ter-se ressentido do fedor que exalavam os cadáveres dos seus antepassados, que apodreciam perto deles sobre a terra; pelo que se puseram a sepultá-los (dos quais foram encontrados e ainda se encontram muitos crânios e ossos, a maior parte das vezes no alto dos montes, que é um grande argumento de que, apodrecendo insepultos os cadáveres dos gigantes ímpios, dispersos por todo o lado pelas planuras e pelos vales, foram os crânios e os ossos ou levados para o mar por torrentes ou, por fim, macerados pelas chuvas) e espargiram os sepulcros com tanta religião, ou seja, divino pavor, que quedaram denominados pelos Latinos religiosa loca, por excelência, os lugares onde estivessem os sepulcros». Confronte-se com o excerto seguinte, quando Finnegan (denominado de Avô) é preparado pela sua consorte/sósia feminina (a Avó) para ser consumido/repartido: «Grampupus is fallen down but grinny sprids the boord. Whase on the joint of a desh? Finfoefom the Fush. Whase be his baken head? A loaf of Singpantry’s Kennedy bread. And whase hitched to the hop in his tayle? A glass of Danu U’Dunnel foamous olde Dobbelin ayle. But, lo, as you would quaffoff his fraudstuff and sink teeth through that pyth of a flowerwhite bodey behold of him as behemoth for he is noewhemoe.»

A neológica e propositadamente visual linguagem de Joyce em Finnegans Wake, somente compreensível pela leitura em voz, corresponde à linguagem hieroglífica do tempo dos deuses, delineado por Vico; seguir-se-iam a linguagem simbólica do tempo dos heróis e a linguagem vulgar do tempo dos homens. Ao mesmo tempo, a sublime eufonia do texto joyceano vai ao encontro da ideia viconiana de o verso anteceder a prosa: a primeira linguagem seria a poesia. Assim, o cão putrefeito na praia e o cão das moedas de cobre serão alegorias para o tempo dos homens: material, frágil, mortal. Garryowen, o cão eloquente, e o mastim das moedas de ouro serão, em contraposição, parémias para o tempo dos deuses – o tempo em que os animais falavam.

Enquanto intersecção dos dois planos aqui explanados: o do tempo dos deuses – em que os animais falavam – com o de um movimento histórico cursivo-recursivo, poucos exemplos se cifrarão com o primor dos diálogos iniciais de El Coloquio de los Perros, do escritor castelhano Miguel de Cervantes, integrado no livro de contos Novelas Ejemplares. No descerramento do diálogo, os cães Cipión e Berganza descobrem atónitos, certa noite, que são capazes de falar como os seres humanos; o segundo, inclusive, confessa que, desde que começou a roer ossos, sempre sonhou em falar. Por iniciativa de Cipión, contarão um ao outro as suas vidas – mas, o que é curioso e pertinente para esta análise, é que eles não têm a certeza se terão capacidade para falar na noite seguinte. Entre si, concordam que a súbita loquacidade é um portento, sem garantias que venha para ficar. Sem o saberem, Cipión e Berganza poderão ter dado início a um novo curso viconiano: de bestas brutas – cães do cobre ou carcaça canina despojada na praia – ascenderam, pela calandragem cíclica, a Garryowens ou cães do ouro, de verve desaçaimada. O início de um tempo dos deuses, aqui, revela-se não sob a alteração física da matéria, mas na mudança de mentalidades; tal como o tempo do caos representado no quadro de Tischbein.

No livro Viagem a Itália, 1786-1788, o escritor germânico Johann Wolfgang von Goethe descreve a viagem que fez pelos territórios italianos na companhia de Tischbein; a dada altura, na entrada referente a cinco de Março de 1787, escreve o seguinte: «Pouco depois, [Filangieri] apresentou-me a um escritor cuja insondável profundidade deleita e edifica estes novos amigos da lei italianos; chama-se Giovanni Battista Vico [falecido há quarenta e três anos], e eles preferem-no a Montesquieu. Uma leitura apressada do livro que me deram a conhecer como uma relíquia permitiu-me perceber que há aí pressentimentos sibilinos do que de bom e justo um dia virá ou deve vir, fundamentados na séria observação da tradição e da vida. É bonito ver que um povo tem um mentor como este (…)». O Romantismo não conheceu grande expressão nas letras italianas, mas talvez Goethe tenha pressentido que Vico tinha algo de proto-romântico; no mínimo, não se deixava iludir pela religião do progresso que se começava a desenhar. Vico sabia que a barbárie da razão – chamava-lhe barbárie da reflexão – seria tão feroz quanto a a barbárie irracional: «Mas, se os povos apodrecem naquele último mal-estar civil, que nem dentro consentem um monarca nativo, nem chegam de fora nações melhores para os conquistar e os conservar, então a providência, a este seu mal extremo aplica este extremo remédio: que – uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tenham acostumado a não pensar em mais nada senão nos seus próprios interesses particulares, e cada um tenha atingido o cume das comodidades ou, para melhor dizer, do orgulho, à maneira de feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim, na maior celebridade ou loucura dos corpos, viveram como animais imanes numa suprema solidão de ânimos e vontades, acabando por não conseguirem pôr-se duas de acordo, cada uma das duas o seu próprio prazer ou capricho –, por tudo isto, com obstinadíssimas facções e deseperadas guerras civis, passam a fazer das cidades selvas e das selvas covis de homens; e, desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão do que tinham sido com a primeira barbárie do sentido».

O quadro de Tischbein retrata o nosso tempo: nem selvagem, nem civilizado; onde homens e animais sofrem, arbitrariamente, às mãos e patas uns dos outros. É o tempo da barbárie da reflexão.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

O cão de Santo Agostinho



Uma das melhores – e insuspeitas – histórias de ficção científica foi escrita por Geoffrey Chaucer em The Canterbury Tales: intitulada The Squire’s Tale é, por razões estilísticas, um relato inacabado de como o rei Cambiuskan, da Tartária (espécie de avatar chauceriano para Gengis Khan), recebe no seu aniversário a visita de um enigmático cavaleiro que se apresenta como rei da Arábia e da Índia; esta personagem traz alguns presentes espantosos, como um teletransportador cavalo de ferro – controlado por joystick – e um espelho cujos molde e propriedades antecipam os dos actuais ecrãs de toque. Porém, o anel que o cavaleiro-rei oferece a Canacee, filha de Cambiuskan – uma admirável jóia que obsequia ao proprietário o condão de falar na orfeica linguagem dos pássaros (e, ainda, conhecer os atributos de todas as plantas medicinais) – é que se relaciona directamente com estas linhas. Mais à frente, Canacee e seis damas de companhia encontram uma aflita falcoa ferida; auxiliada pelo poder do anel, a princesa descobre que a ave padece de amor atraiçoado, sangrando de própria iniciativa. De facto, a falcoa aquiesce em contar-lhe as mágoas, para que estas sirvam de exemplo, evidenciando que os grandes devem aprender com o mal dos pequenos – e para o efeito serve-se de uma singular expressão: «as by the whelp is chasted the leoun / right for that cause and that conclusioun, / whil that I have a leiser and a space, / min harm I wol confessen, er I pace». Ou seja: a falcoa arroga tempo e ocasião para, antes de finar-se, concretizar o intento de instruir com a sua desventura a princesa, tal como um leão aprende com o castigo dado ao cão.

Este vetusto provérbio, que põe o ferocíssimo leão a temer antecipadamente castigos corporais, pela prévia exibição de força sobre o frouxo cão, não se aplica a outra história que também possui esses dois animais como protagonistas. Pintada em 1502 pelo artista veneziano Vittore Carpaccio, a tela Santo Agostinho no seu Estúdio, só pode ser decifrada na sua elíptica composição por quem conhece a vida desse doutor da Igreja: rodeado de livros, de instrumentos científicos e alfaias eclesiásticas, numa demonstração soberana do espírito humanista da Renascença que Carpaccio quis manifestar, um varonil Santo Agostinho interrompe a escrita de uma carta endereçada a São Jerónimo para mirar, de repente, pela janela; ainda temulento pelo lavor intelectual, Agostinho semicerra o olhar para melhor indagar o que se desdobra diante de si, capacitando-se nesse instante que se trata de uma visão do seu destinatário, que veio comunicar-lhe a sua morte, em Belém, e consequente ascensão ao empíreo. A luz tornada rarefacta pela peneira da vidraça faz lembrar o que Dante escreveu no início do segundo canto do Purgatório: «E eis como já, no amanhecer vizinho, / em vapor grosso Marte ruboreja / e a oeste vai, sobre o solo marinho, / tal me aparece, que inda agora o veja, / lume veloz que pelo mar desata, / e a voo algum o seu mover inveja». Não é líquido, pois, que Agostinho veja Jerónimo pela janela, como um «lume veloz» que «a voo algum o seu mover inveja», ou se o o dom do fogo é contemplado somente na mente. Um imprevisível elemento pintado na tela provoca esta leitura: é um pequeno cão, situado à esquerda e numa cota inferior às de Agostinho e da sua estupenda esfera armilar.

O filósofo Wittgenstein escreveu que as cores são formas – e, com efeito, este cachorro, este volpino, nome de raça que se traduz por “raposinho”, é pura cor branca esculpida: somente pela aproximação obsessiva do olhar ele robustece em delicada musculatura, estofada de espontâneos enchumaços de pêlo crespo. A sua expressividade, plasmada com perícia por um brilho prudente na pupila, é mais cautelar que desconfiada; suavemente reclinado, num apontamento de hesitação, dir-se-ia que o cão de Agostinho foi, na verdade, o primeiro a chegar à cena: aquele cujo faro ou audição aguçados detectou a chegada da sobrenatural correspondência entre dono e moribundo. É uma suposição credível, pois no décimo quinto capítulo do terceiro livro de A Cidade de Deus, Agostinho já questionara qual seria o homem capaz de superiorizar-se aos cães no sentido do olfacto.

Contudo, a sua amabilidade para com os cães extingue-se nessa sugestão, considerando que cada vez que fala neles utiliza-os como péssimos exemplos: seja para empossar a doutrina dos filósofos caninos, ou cínicos, com maiores graus de imundice e imprudência, como no vigésimo capítulo do décimo quarto livro; ou como alegoria do desgosto de confraternizar com um estrangeiro, cuja língua não se entende, alegando que se sente mais satisfação em estar com o cão, segundo o sétimo capítulo do décimo nono livro. No entanto, em oposição ao que Carpaccio pintou, nunca se leu em nenhum testemunho – nem mesmo na carta agostinha apócrifa, publicada no final do século XV, onde surge pela primeira vez a lenda da hieronimofania – que Santo Agostinho tivesse tido um cão. Nas suas Confissões lemos no décimo capítulo que costumava ir ao circo (romano) para assistir aos cães perseguirem as lebres, mas não nos diz nada sobre sua raça. O mais coerente é que seriam lebréus – galgos –, dos quais o espanhol, da cor da espelta e da textura da estopa, sugere maior sanguinidade com os cães coevos de Agostinho – este galgo peninsular é a espécie profetizada por Dante no primeiro canto do Inferno como sendo o mensageiro da paz: «A muitos animais dá coito hirsuto / e mais serão ainda, té o Lebréu / chegar que a vai fazer morrer de luto. / Não sendo estanho ou terra o cibo seu, / sapiência será, e amor, virtude, / e seu país será de céu a céu». Por outro lado, poderiam ser molossos, robustas feras de caça, metidas também nos circos para debulharem com as suas presas ursos e touros. Pese a falta de informação sobre o facto, é lícito pensar que o cão que o anfitrião novo-rico Trimalquião manda trazer efusivamente à sala de jantar, durante o capítulo do seu banquete no livro Satíricon de Petrónio, é um molosso desse género: desmedido, pesado, mas desastrado e desanimado. A chegada deste brutamontes (baptizado de Scylax, nome que significa “cachorrinho”), aferrolhado ao pescoço por uma pesadíssima corrente, lembra-me sempre o 'leitmotiv' com que Fafner e Fasolt são apresentados em O Ouro do Reno, primeira parte da tetralogia O Anel dos Nibelungos, de Wagner: um compasso falsamente majestático, que evoca bárbara força física, mas exiguidade de espírito – decalque impresso com maior propriedade ao desfecho em que Scylax faz em fanicos um perro obeso que lhe foi atiçado, arrojando na conturbação uma candeia ao chão e aspergindo de azeite fervente alguns dos convidados do banquete.

Falando em ópera, o apelido Carpaccio (anexado desafortunadamente a uma estafada especialidade de gastropub, inventada nos passados anos sessenta por Giuseppe Cipriani, proprietário do Harry’s Bar de Veneza) soa desarticulado da realidade, circunjacente à galeria de pérfidos protagonistas de palco, como Spoletta, Sciarrone e Scarpia, todos da Tosca, de Puccini. Ainda assim, tanto o prato como o nome mantêm na sonoridade uma inelutável e profunda conexão sinestética à cor vermelha: vermelha é a identidade cromática dos quadros do pintor que deu o nome às vermelhas e finíssimas fatias de carne de vaca polvilhadas de lascas de parmesão. E vermelhas são as almofadas dos assentos e cadeiras dos grandes teatros de ópera europeus – só para não deixar órfã a minha associação operática explanada atrás. A gradação de vermelhos das telas de Carpaccio tem a suavidade e o deslustre das excêntricas porcelanas sang de boeuf – aplicando a máxima wittgensteiniana, o vermelho carpacciano, é um objecto por mérito próprio, tão oxigenado e heliófilo quanto o ocre ferro de uma ponte suspensa.

Em excepção, a sua obra da qual os vermelhos conspicuamente se ausentam é São Jerónimo e o Leão, segundo episódio de uma série de pinturas dedicadas à vida do santo: nesse quadro, um venerável e paternal Jerónimo debuta em Belém o seu querido leão domesticado, mas os monges aos quais a fera mansa é apresentada chispam apavorados. A composição fervilha de pathos humorístico: o leão faz um flagrante e humano esgar de desprezo pela fuga dos monges cobardes, enquanto Jerónimo exibe estupefacção; um dos monges fugitivos ainda calca, digitígrado, o primeiro plano da cena, mas o resto do corpo já se baldou para uma perspectiva mais afastada, em típica encenação looneytoonesca, de inteira velocidade e anedota.

Outra ausência é a do leão no quadro da visão de Agostinho: tudo leva a crer que quem lá chegou primeiro e compreendeu a situação foi o cão, inversamente à moral do provérbio de Chaucer. Aliás, o mesmo cão também aparece, imperturbável, numa gôndola no quadro O Milagre da Cruz em Rialto, à direita de um gondoleiro negro: mais um branco-objecto que perluz numa intrincada colgadura de carmins, escarlates e encarnados, sobre a qual impera uma densa massa de caliginosas chaminés; e, aproximando as margens do Grande Canal, uma ponte de Rialto em madeira – sem a leveza de brocado da de pedra, engendrada por António da Ponte, no final do século XVI.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Deuses e gatos - apontamentos:



Na sarcástica letra de uma das canções que a banda americana Bad Religion gravou em meados dos passados anos noventa, Deus expressa, contrito, arrependimento à humanidade, que se sente muitíssimo ofendida por ter sido excluída de opinar sobre a elaboração de uma Criação que considera politicamente-incorrecta (essas linhas poderiam, com maior propriedade, ter sido escritas hoje, como corolário do contraditório clima de vigilância da linguagem que atravessamos). Porém, se este exemplo extirpado da lavra musical punk/hardcore evidenciar um parentesco demasiado próximo da cultura popular para o palato de alguns leitores, vale a pena recordar que, em cronologias mais recuadas, à distância dos nossos dias quase esquecidas no occipício da história, outras vozes, projectadas de posições sociais mais elevadas, expuseram idêntico desconforto com a realidade; no caso que se segue, com a realidade enquanto sinónimo do domínio de um rei, posto que resgato a anedótica declaração de Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela, que, desafiado pelos complicados cálculos exigidos pela leitura da ciência ptolemaica de desencriptação do universo, terá desejado que o Criador tivesse falado com ele antes de iniciar os trabalhos, de molde a que ambos chegassem a soluções mais simples.

Em ainda maior retrocesso temporal, encontramos na literatura mitológica da Antiguidade a ideia de uma reiterada rejeição da celestial Criação, da parte de agentes terrenos; sejam eles homens ou criaturas ctónicas – aliás, narrado por Ovídio, é paradigmático o confronto de uma musa anónima que, provocando Atena/Minerva, lhe entoa em blasfema variegação a primeva desventura gigantomáquica dos Olímpios, acobardados pela emergência do seu flagelo Tifão, abrolhado das entranhas do subsolo. Revertendo a representação teriomórfica de Tifão, exposta originalmente por Hesíodo, a musa ovidiana atribui apanágios animais aos deuses em fuga para o Egipto, lugar onde assumem diversos zoomorfismos para se camuflar do carrasco titânico que os persegue, operando a narrativa poética uma transmigração nos deuses clássicos das hipóstases animais das suas correspondentes divindades egípcias. O conceito de os deuses serem obrigados pela violência dos homens a disfarçar-se de bestas foi entendido por David Hume como alegoria de um vero ateísmo das antigas comunidades humanas, ignaras de um ímpar princípio divino na criação e administração do mundo.

Na supracitada fuga dos deuses para o Egipto, Artemisa/Diana metamorfoseia-se em gato. Já Heródoto sinalizara a paridade absoluta entre Artemisa/Diana e Bubastis/Bastet, a deusa de cabeça de gato, cujo onfalo cúltico se encontrava no templo de Bubastis, no Baixo-Egipto; admissivelmente, o maior gatil do mundo antigo, onde miríades de gatos seriam criadas para serem oferecidas ritualmente, a pedido de peregrinos e também no decurso do festival dedicado à deusa – nas ruas, uma cadência folclórica de flautas e matracas sustenta os cânticos ardentes, enquanto no silencioso santuário milhares de pequenos pescoços são gazofilados por cordas ou, sobriamente, torcidos, para satisfazer necessidades sacrificiais.

Como fuligem que vai vestindo de preto velhas dedadas, encontram-se resquícios deteriorados de antiga ailurolatria nos cruéis jogos populares que os rústicos europeus ainda vão praticando, de modo mais ou menos clandestino, sob a forma de infames façanhas como as de gatos sovados dentro de barricas com hulha ou inflamados num pote ou no pêlo – extirpado do significado do seu nome, o sacrifício, que se traduz por “sacralizar”, ou seja “fazer sagrado”, é transmutado em tortura, sem outro objectivo a não ser o de recolher sem sobressaltos o ânimo colectivo da comunidade e exsudá-lo em inócua efluência, abonando em coreografada catarse a dubiez do tempo próximo.

No entanto, o gato já estava feito antes de nós – deus ou bobo, não o moldámos. Neoténico por natureza, de infantes características corpóreas e comportamentais, o gato é e sempre foi um leão anão, um tigre talismânico; imaginado, talvez, por deuses em fuga ou por outra qualquer inteligência preternatural que viu com bons olhos a existência de felinos em ponto pequeno.
Qual especial ausência foi, assim, colmatada?
Que enigma foi resolvido pela sua vinda ao mundo?
Construímos a juvenilidade do lobo, no invólucro do cão, mas o gato tomámo-lo tal como foi descoberto; infantil, impecável e impoluto desde o dia inaugural – é um anel que nos liga a um território e um tempo sem os quais contabescemos na mais consumada barbaridade. Precisamos do gato, em virtude da mesma razão pela qual o mundo o criou. Como observou Montaigne, é o gato que brinca connosco, em vez de sermos nós a brincar com ele. Foi para isso que ele foi feito: para o mundo ter com que brincar.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Novas rotas de medo e interdição


 A cultura de entretenimento agiliza-se em detectar renovações prototípicas nos procedimentos psicossociais das comunidades; sob esse enunciado, uma tendência que está a consolidar-se, em determinados filmes e livros de terror e de ficção científica, é a comutação do espaço, enquanto porosa fronteira do desconhecido, pela – igualmente inescrutável – imensidão virtual contemporânea; somando-se-lhe todo o costumeiro repertório de acessórios tecnológicos que a ela estão associados, como robôs, computadores, programas informáticos.

Provavelmente, a mais incontestável exteriorização desta mudança de pólo magnético encontra-se nos filmes que Ridley Scott se encontra a realizar actualmente no âmbito do mundo das personagens que concebera no filme Alien (1979): a nova grelha de referências aplicada em Prometheus (2012) e Alien: Covenant (2017) flutua como escuma sobre a nova psique global que, aceleradamente, abandona a noção de que o perigo reside sob formas extraterrestres no bioma espacial, em favor do fatalismo sentido à aproximação de ameaças procedentes de supositícios progressos nos campos da robótica e da inteligência artificial. Não deixa de ser curioso que a efeméride dos duzentos anos da publicação de Frankenstein de Mary Shelley escorregue neste momento por baixo da baia que delimita um terror do outro, à guisa de emblema do período neo-paracelsiano que atravessamos, no qual o horror homuncular se cifra como astro-rei – pois o que são os antropomorfizados cérebros electrónicos e robôs da hodiernidade, plenos de percepções, instintos e motivações puramente humanos, senão novíssimas representações do mito da concepção na retorta?

O labéu que perpassa toda a condenação moral do ofício paracelsiano sustenta-se na noção que a criação de um homem artificial – ou de uma inteligência artificial – por outro homem será sempre um empreendimento torpe e ímpio, destinado ao fracasso; mas, facto que não escapará aos observadores atentos, o processo da selecção natural depende, em exclusivo, de fracassos pontuais: leia-se, de mutações – imperfeições.
Em suma, a vida deseja a imperfeição; em última análise, nem sequer existe sem ela.

O que diferencia as diversificadas criações naturais das criações operadas por mão humana não é, como se poderia pensar, a imperfeição destas face àquelas, mas o problema de uma delineação inicial: é que no mundo sujeito à selecção natural, a forma antecede a função; no sentido que uma qualquer imprevista imperfeição numa cópia de material genético pode apresentar-se vantajosa para que, num curto intervalo de tempo, o indivíduo que dela concorra possa antecipar-se aos outros na propagação do seu próprio material genético imperfeito. Ora, no múnus da criação paracelsiana – artificial, mecânica, industrial, científica – é sempre a função que antecede as formas: não existe desenho sem objectivo, a forma subordina-se à função. Porém, na natureza, não existe nenhuma contiguidade pré-planeada ou fabricada que aproxime, a priori, objectos tão dissemelhantes como causa e consequência, forma e função. A beleza e o sucesso da criação por selecção natural reside na sua cega arbitrariedade: de facto, a forma vem primeiro – depois logo se verá o que é possível fazer-se com ela.

Na tradição esotérica, os homúnculos costumam, em regra, ser representados como tendo somente quatro dedos em cada mão: a razão para que isto aconteça relaciona-se directamente com a ideia numinosa de o número de cinco dedos ser a marca do ser humano – logo, um homem artificial, fruto da concepção laboratorial, seria imperfeito, exibindo apenas quatro dedos. Os velhos caricaturistas e autores de banda desenhada conheciam esta noção e é por isso que as personagens mais antigas, em particular homúnculos de jaez zoomórfico, como o Rato Mickey ou o Pato Donald, para restringir a amostra a algumas das mais conhecidas, só têm quatro dedos em cada mão. Pelo contrário, homúnculos actuais, como os robôs David 8 e Walter 1 dos recentes filmes de Scott, assumem uma extrema contiguidade com o molde humano – ao ponto de, no caso de Walter 1, serem capazes de digerir alimentos orgânicos sólidos, truque que, dispensado pela ausência de biologia, só se justifica pela função de mimarem, na perfeição, o humano. Na criação paracelsiana, artificial, a função precede e subordina a forma.

À medida que, gradualmente, o elemento robótico (que aqui nem sequer nada tem de orgânico, compondo-se, totalmente, de constituintes sintéticos) vai ocupando o espaço outrora reservado aos antagonistas alienígenas, compreende-se a mudança que efervesce na mente do público, habitante num mundo globalizado por canais virtuais de comunicação: já não é o mundo que é estranho, muito menos o espaço, mas os próprios canais. Estes, virtuais, ariscos, volúveis, é que são, em simultâneo, as rotas recém-descobertas e as áreas em branco povoadas por dragões.
O xenomorfo mete menos medo que o robô. Este é um poderoso sinal dos tempos.


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Entrevista na Livraria Ideal


Para os meus leitores que, na altura (2012), não viram a emissão - e para os leitores que desejem rever -, deixo a ligação para o vídeo da minha segunda ida ao programa Livraria Ideal, de João Paulo Sacadura, que volta a estar disponível online (a entrevista tem início aos 04:40 minutos de duração). Falei sobre vários livros, como Batalha, É de Noite que Faço as Perguntas e, ainda, do meu disco de spoken word Os Anormais. A ver nesta ligação.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Ler para os meus mortos


Hoje, sem quaisquer presságios ou sintomas que a anunciassem, senti uma vontade profunda de ler para os meus mortos. Uma vontade fina e funda como uma agulha introduzida no peito.
Ler apazigua, porque não pede nem obriga à resposta. Os mortos não respondem. Mas poderão ouvir? Só quem já não tem vivos compreende a inutilidade daquele perfunctório vento a que chamamos diálogo, palavras em refluxo, cuja caligrafia se apaga da memória a cada terrível e rutilante passagem. Pode-se falar na escuridão, mas só pode ler-se à luz: essa luz em flor, formidável, tão translúcida quanto celofane, que serve de farol para os nossos mortos, agora naturais de um mundo feito de silêncio. Linguagens sem tradução: a luz da nossa leitura; o frígido silêncio do seu consentimento.

(Ilustração: Eric Lacan.)