terça-feira, 30 de julho de 2019

Fundo de garrafa de vidro da Casa dos Bicos (sécs. I-II) – Museu de Lisboa - Palácio Pimenta



A translucência do passado

Vivemos num período permeado por ficções, principalmente televisivas e cinematográficas, mas, por mais engenhosas que pareçam ou por mais lucrativas que provem ser, nenhuma define a nossa cultura como os mitos da madrugada da humanidade enriqueceram o dia-a-dia dos nossos antepassados; esses foram os tempos prévios ao perecimento das metanarrativas, vaticinado por Jean-François Lyotard no livro A Condição Pós-Moderna, e, em prática, o mundo ainda era mágico, com cada canto possuindo a sua feérica fauna. Aqui, nesta malha mundana que, a cada século, vai crescendo mais um pouco a partir do Tejo translúcido, em jeito de tinta espremida com preguiça sobre papel-cavalinho (o mais adequado do ponto de vista alegórico, como irá ver-se), o mito teve configuração de zebro.

Sabe-se que foi essa a configuração, porque a lenda é anterior à chegada dos burros à península, cortesia dos fenícios, que trouxeram com eles os descendentes dóceis do asno selvagem da Núbia, domesticado pelos egípcios por alturas de 4500 a.C. – no norte de Portugal, a palavra núbio significa nublado: extremamente apropriada a esse animal, presumivelmente extinto. Os zebros também se extinguiram, mas estes, da história que se segue, continuam vivos, porque foram imaginados – mais do que isso, foram notabilizados a ferros-quentes no espaço mitopoético da nossa cultura ocidental, através de apostilas de autores tão mal-lembrados, mas insignes, quanto Varrão Reatino que, no século I a.C., foi o primeiro a glosar em livro a lenda das éguas olisiponenses a serem fecundadas pelo vento Favónio. Em Sobre a Agricultura, pode ler-se: «na Lusitânia, junto ao Oceano, naquela região em que se encontra o oppidum de Olisipo, no monte Tagro, algumas éguas concebem do vento, em certa altura, como também acontece aqui com as galinhas (…) Mas os potros que nascem dessas éguas não vivem mais do que três anos». Reconhece-se com facilidade que o Favónio não é outro senão o Zéfiro, esse vento quente, oriundo do ocidente, associado pelos gregos ao protótipo da prosperidade e que figurava como pai dos potros nas primeiras versões de uma lenda raptada pelos romanos olisiponenses, como patenteia o fundo da garrafa de vidro, encontrado em escavações arqueológicas na Casa dos Bicos e datado da viragem do século I para o II, que mostra um zoomorfo em movimento, muitíssimo parecido com um cavalo. Esta é a marca d’água do vidraceiro: um símbolo que identifica instantaneamente a cidade com o seu próprio mito e comunica confiança ao consumidor. Cronistas clássicos como Columela ou Plínio-o-Velho, mas também escribas posteriores, como Virgílio e até Agostinho de Hipona, mantiveram viva a história das éguas “lisboetas” que engravidavam do vento e pariam potros velozes, vencidos também velozmente pela morte; às vezes, trocando a localidade de Olisipo por outras bandas, mas preservando aquilo que é fundamental na fábula.

Exagero ao promover este vínculo? Então que outro encadeará o emblema no fundo da garrafa de vidro à trademark de olaria no suporte púnico de ânfora que pode observar-se no núcleo arqueológico da Rua dos Correeiros, atribuído aos séculos IV a.C. e III a.C., e que mostra dois selos com cavalos desenhados?
São demasiadas cabeças a pensar da mesma forma.
Tem de existir uma ligação mais profunda que a despida coincidência.
Olisipo, terra de equídeos eólicos, irradiados por todo o império pela imaginação de oleiros e vidreiros – que outra marca, sem ser tão antiga e tão apetecível quanto esta, teria idêntica credibilidade?


Por um vidro opacificado
 
Sem chegar aos dez centímetros de diâmetro, o escaqueirado fundo de vidro com o cavalo em proeminência, pertenceu a uma garrafa prismática; no sentido geométrico e não no cromático, porque este naco de vidro não reflecte sete cores, mas apenas uma, o verde: uma variedade de verde mais sulfúrica, aliás, que a plúmbica pigmentação do verde que dá cor às bojudas garrafas inglesas de vidro, encontradas no mesmo reservatório de relíquias transtemporais, mas datadas do início do século XVIII. Sabemos que estas conservavam licor para ser combinado com chocolate quente – a bebida preferida de D. João V, como assegura a miniatura pintada sobre marfim por Castrioto, em 1720, que mostra o seu meio-irmão D. Miguel a servir-lhe uma chávena –, mas qual o líquido que a garrafa romana teria preservado? Licor para ser misturado com qualquer bebida tão exótica quanto o chocolate? Defrutum para adicionar ao vinho? Talvez garum, por que não? Ou água? É um segredo que não se sabe, mas o mesmo objecto deixa desencobrir outros sigilos.

Há poucas linhas, quando apliquei os adjectivos “sulfúrica” e “plúmbica” referi-me à acção dos corantes empregados no manufacto vidreiro: na sua História Natural, Plínio-o-Velho descreve a produção do famoso colorante verdigris, colhido da corrupção do cobre, mas a coloração da nossa garrafa romana deriva de misturar-se enxofre ao carbonato de sódio; por outro lado, a cor “caribenha” das supracitadas garrafas britânicas delata um compromisso entre o cobre e o chumbo, metais que, como já vimos, nos colocaram na rota dos fenícios. Hoje, através de programas digitais de ilustração e de manipulação de imagens, ou ainda com os velhos lápis de cores, todos somos capazes de pintar o mundo a gosto, mas, em meados do século XV, quando D. Afonso V criou a lei que proibia os estrangeiros de virem às nossas praias algarvias procurar a planta que, depois de queimada, facilitava a fusão do vidro, as coisas não eram tão simples. Que planta foi esta, cujas cinzas continham crípticas propriedades concatenadoras?

Foi a chamada erva-maçaroca, rica em carbonato de sódio, precisamente; e a proibição a que acabei de aludir, coincide com o início do trabalho dos vidreiros no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, entre os quais os mestres Luís Alemão, Guilherme e Ambrósio. Mas outras plantas poderão ter tido um papel importante a desempenhar nesta indústria, no que concerne à coloração. Em 1445, este rei deu ao seu tio, o Infante D. Henrique, o monopólio da indústria relacionada com a apanha e a transformação do pastel: o oculto pastel-dos-tintureiros, cujo nome erudito é isatis tinctoria, planta de cujas folhas maceradas se extrai um corante azul, empregado, em principal, na tinturaria têxtil; como no caso dos famosos panos de Alcobaça, que Gil Vicente criticou, na sua Farsa dos Almocreves, por encolherem com a lavagem: «não tendo as terras do Papa, nem os tratos de Guiné, antes vossa renda encurta como os panos de Alcobaça», queixa-se o Capelão sobre o Fidalgo falido que lhe está em dívida. Em oposição, a apanha da (também cobiçada) urzela – de apelido igual ao do pastel, mas chamada roccella –, líquen frequente nas fragas atlânticas dos litorais açorianos e madeirenses, do qual se obtinha uma nobre tonalidade de castanho, consistiu num ofício perigoso, com os apanhadores a serem descidos por cordas, desde o alto dos penhascos, até aos paredões onde o líquen se encarrapitava – topónimos como Rocha dos Dependurados e Malbusca, na ilha açoriana de Santa Maria, denunciam as desgraças sofridas por estes proto-rappelistas.

Talvez o segredo etimológico do nome Açores esteja também relacionado com a cor azul, porque nessas ínsulas nunca existiram açores, mas ao longe, observadas a meio do Atlântico, as suas silhuetas ainda hoje surgem aos navegantes e aos turistas num enfeitiçante recorte azurro: nome genovês para azul, língua dos prováveis descobridores do arquipélago, ao serviço do nosso D. Afonso IV. Poderia o pastel e a urzela terem sido usados como corantes para o vidro, como os dos vitrais que o mestre Francisco Henriques pintou para o Mosteiro da Batalha e para a Igreja de São Francisco de Évora (onde está o nosso mais famoso ossuário)? Não é uma hipótese descartável, porque a própria designação vidro, derivada da palavra em latim vitriu, tem como origem, afinal de contas, o antigo nome romano para o pastel – e, de facto, os primitivos vidros romanos são, predominantemente, azuis: da mesma cor que os primevos vidros egipcíacos, também azuis, e cujo nome designa essa cor. O nosso fundo verde de garrafa assinala o período em que o vidro romano começou não só a adquirir uma paleta sortida, mas a transluzir-se.

No entanto, as janelas das casas de Olisipo nunca tiveram vidraças, porque, apesar dos romanos conhecerem a cana de soprar, invento sírio que veio possibilitar o fabrico de objectos muito mais refinados, ainda não dominavam a capacidade de afeiçoar grandes pranchas de vidro; apenas peças pequenas, como unguentários, lacrimatórios, copos e, claro, garrafas com cavalos em relevo no fundo. As janelas de vidro romanas eram diminutas e foscas, colocadas para efeito decorativo. As janelas de vidro em Lisboa foram uma adição tardia: na Lisboa pré-terramoto de 1755, os gatunos ganhavam a vida saltando sem esforço da janela de uma casa para a de outra, não só porque as ruas eram muitíssimo estreitas, mas porque as janelas não tinham vidros; apenas cortinas e, às vezes, nem sequer isso. De qualquer forma, o Sol não conseguiria iluminar convenientemente esses aposentos, com vidros ou sem eles, porque o acanhamento das vielas, associado aos numerosos balcões dos edifícios, já de dois ou três andares, impediria a luz de preencher esses espaços. Se viajássemos no tempo até à Lisboa medieval ou até à Lisboa barroca ficaríamos surpreendidos ao descobrir o quão escuras eram: pensem nos centros históricos de cidades como Toledo – ou Jerusalém. É intuitivo achar que os lisboetas dessas épocas nunca consideraram que as suas ruas fossem abafadiças. De facto, quando se pensa nas primeiras cidades, como Catal-Hüyük, datada de 9000 a.C., descobre-se que o delineamento enredado da Lisboa medieval consistiu num grandioso progresso em relação ao desenho dessa urbe inaugural, porque esta, simplesmente, não tinha ruas nenhumas: foi uma cidade-colmeia, na qual os cidadãos entravam em casa por escadotes espalhados por múltiplos telhados-pátios; a vida urbana era toda feita em interiores mal-iluminados por estreitas janelas (sem vidros), abertas nos níveis mais altos das paredes. (Entre vizinhos, as lutas por direitos de passagem ou por questiúnculas territoriais seriam constantes, porque as ossadas encontradas nas escavações arqueológicas apresentam inúmeras lesões cranianas; além de múltiplas fracturas provocadas por quedas de degraus mais altos e de telhados.) A planta sufocante desta cidade terá sido projectada como sendo uma estratégia de defesa contra populações rivais, mas, independentemente da inexpugnabilidade, a total ausência de ruas comprova que até elas – espaços públicos que tomamos como garantidos – não deixaram, também, de serem aperfeiçoadas ao longo da história, como qualquer outro objecto inventado pelo homem. E, com efeito, falando nisso, vale a pena perguntar: quem inventou o vidro?


Magia à transparência
 
Os raros vidros formados em diferentes circunstâncias pela Natureza já eram usados como lâminas ou como bric-à-brac pelos nossos fazedores de bifaces e pelos nossos pré-históricos criadores de gado, mas quem – em que altura – descobriu o segredo de fazer vidro? A ideia de que foi inventado por acidente, ao revolver-se numa manhã o borralho de uma fogueira feita numa praia na noite anterior não se sustenta, porque um fogo simples como esse nunca atingiria as temperaturas necessárias e a resposta mais verosímil para desfazer esta dúvida relacionar-se-á com a antiquíssima indústria vidreira egípcia, no sentido em que o vidro poderá muito bem ser resultado de experiências realizadas com sal e areia nos fornos dos primitivos alquimistas egípcios.

Para quem não está familiarizado com os universos ditos esotéricos, esta hipótese poderá parecer bizarra, à primeira vista, mas a alquimia nasceu no Egipto, como consequência do acumular de saberes técnicos associados às artes de trabalhar materiais tão intrigantes quanto o ouro. Os mais antigos papiros referentes ao trabalho alquímico, conservados na biblioteca da universidade da cidade holandesa de Leiden e no museu universitário da cidade sueca de Uppsala, não contêm nenhuma alusão a rituais “iniciáticos” de “escolas mistéricas”, nem sequer referências ao “desenvolvimento espiritual dos adeptos”, mas, somente, pragmáticas e precisas fórmulas para a falsificação de gemas, pérolas, ouro e prata, através de ligas metálicas e de corantes. É perfeitamente plausível que, no decurso dessas experimentações, testando temperaturas e ligas variadas, os alquimistas egípcios tenham achado a receita de fazer vidro.

Outro enigma que o relato do fundo de garrafa de vidro da Casa dos Bicos vem esclarecer é o da desflorestação das matas de Lisboa. É que para fazer-se vidro era preciso queimar grandes quantidades de lenha – dia e noite – e a indústria do vidro conflituou com a do pão pelo açambarcar de combustível: ainda hoje, famintas, as fornalhas são feras que nunca dormem e dominam-nas um apetite impaziguável. Foi para contrariá-lo que, no final do século XV, D. João II (formidável refreador de apetites) proibiu a instituição de mais usinas vidreiras, além da já estabelecida em Côvo (no concelho de Oliveira de Azeméis); e, pouco depois, foi nas Cortes de Lisboa de 1496 que se fez a lei que proibiu o corte de árvores pelo tronco, para a indústria do vidro, ordenando que apenas se decepassem os ramos, sob pena de dois vinténs por cada árvore danificada. Apesar de tudo, em 1499, uma segunda vidraria foi fundada, desta feita em Coina: fábrica que se tornou concorrente dos vidros do Côvo. Ao envelhecer do século XVI, brotaram outras unidades vidreiras em Lisboa, como a do Forno do Vidro e a do Beco dos Vidros (este topónimo ainda resiste num beco a norte da Igreja de Santa Engrácia, o Panteão Nacional). Evidentemente, o problema da desflorestação agravou-se – e com a desbastação da paisagem ribatejana, proibiu-se a construção de vidrarias num raio de sete léguas em volta de Lisboa. Foi nessa altura que a fábrica de Coina se transferiu para a Marinha Grande, de maneira a beneficiar de um espantoso manadeiro de madeira: o Pinhal de Leiria.

Em jeito de vento catabático, a produção do vidro olisiponense mergulha numa fatia invisível de cronologia histórica, desde os tempos da ocupação romana até meados da nossa Idade Média; altura em que volta a ser documentada, como na lei formulada por D. Afonso V – simplesmente, o vidro não parece ter sido importante para a economia e a cultura desses séculos de suspensão da actividade vidreira. Porém, não terá desaparecido e uma pista intrigante que nos chega, em relação a isso, está contida no florilégio Cantigas de Santa Maria, compilado no século XIII por Afonso X, o Sábio, rei de Castela.

A composição chamada Esta é Como Santa Maria Evitou que o Filho de um Judeu, que o Deitara ao Forno, Não Ardesse, conta-nos como «um judeu que sabia fabricar vidro» enfiou o filho no forno, como castigo por este se interessar demasiado por companhias e modos cristãos – no forno de fundir o vidro, supõe-se. É do conhecimento comum que os judeus foram rendeiros e comerciantes, em virtude da proibição cristã sobre a prática da usura, mas a verdade é que também foram ferreiros, sapateiros e tintureiros, entre outras ocupações, ditas mecânicas – e esta cantiga de Santa Maria sugere-nos que o ofício de mestre vidreiro também se incluía entre os trabalhos realizados pela comunidade judaica, admitindo nesse conjunto a dos judeus olisiponenses.
 

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Os Silenciosos


O capítulo cinquenta do Livro da minha vida do matemático e físico paduano Girolamo Cardano é uma peça biográfica que deslumbra pelo terror — um terror metafísico, feito de aforismos, uma epitáfia elegia ao seu uxoricida filho executado e um breve, mas arrebatador diálogo entre o próprio Cardano e um figurante fictício denominado S. É este S. que responde à declaração que o autor faz sobre ser uma fonte de infelicidade procurar incessantemente uma boa vida neste mundo, pois nele não existe verdadeira felicidade: diz o tal S. que filosofar daquele modo não basta, que é preciso conhecer o propósito daquilo que se procura, do mesmo feitio que um artífice — tal como um ferreiro sabe fazer pregos, barras, bigornas e marretas. "- Mas vós", queixam-se os artesãos, "não instruís de forma prática. Qual é a função da felicidade? Queremos saber qual é a utilidade das vossas teorias. Pois se nenhuma existe, para quê escrever, ensinar e aprender?"

Pergunta terrível, como um abismo que arreganha a dentuça granítica no fundo de um abrupto penhasco. Nietzsche intuíra esta inquietação permanente entre a abstracção e o utilitarismo no subtítulo de Crepúsculo dos Ídolos, livro escrito já no fio da loucura: é ele Como se Filosofa com o Martelo. Ou seja: como filosofar que nem um ferreiro na sua oficina? Como alcançar a cristalina e estéril simplicidade do artesanato, da técnica ao serviço do receituário? Quando se propunha a usar o martelo para fazer reverberar os ídolos de outrora, qual diapasão, e escutar a veracidade ou falsidade ressoantes era, pois, essa resolução que se procurava? Se, como dizia Cardano, não há verdadeira felicidade neste mundo, em que outro poderá existir?

A corrida ao espaço não respondeu a essa angústia. Tão pouco criou angústias novas: limpa e lisa como aço cirúrgico, foi pura técnica sem filosofia. Só martelo, sem reverberação. Comprova-o o facto de ter cessado sem galas diante do desentusiasmo do público desiludido pela ausência de felicidade no cosmos. Voltou-se, cardaniamente, a procurar-se insistentemente por ela neste mundo.

Não obstante, os animais foram os pioneiros no desbravamento dessa novíssima Nova Terra: cães como a spitz russa Laika, a primeira cosmonauta, o primeiro ser vivo a entrar no espaço intersideral, que sobreviveu seis dias sozinha num claustrofóbico cenóbio até morrer asfixiada quando se esgotaram as reservas de oxigénio; mas também gatos, como a tuxedo francesa Félicette, que foi ao espaço e voltou, de cabeça e cérebro atravessados por uma mão-cheia de desconfortáveis eléctrodos, para ser eutanasiada poucos meses após o regresso para se examinar esse seu cérebro semi-cibernético.

Estas não são as nossas mascotes amabilíssimas — representando-as esteve na Apollo 11 o ursinho de peluche de Neil Armstrong; ícone salvífico levado para absorver o pavor cósmico de se estar sozinho no hiante abismo do universo. Hiante, pois não é silencioso, apenas grita tão alto que só cães como Laika e gatos como Félicette são capazes de ouvi-lo.

No Museu Nacional de Arte Antiga pode ver-se o quadro Interior de Igreja Católica, pintado por Gerrit Houckgeest: no canto inferior direito da imagem está um casal em arroubo espiritual diante de um altar — e atrás do homem e da mulher, contemplativo no seu eterno mutismo de criatura sem fala, senta-se no chão o seu cão, também olhando para a ara devocional. No salto de fé em que consistem todas as íntimas adorações do invisível — sejam prostrações aos deuses ou desesperadas demandas por felicidade em novos mundos e novos planetas — os animais costumam dar o primeiro passo e, pasme-se!, permanecem, acompanham-nos nos interiores das naves: as dos templos, as que navegam e as que voam.

No seu insondável silêncio, na muda e irregular gramática das bestas e dos loucos, os gestos coreografam um código apetrechado de alma: esse período vazio entre cada martelada no ídolo e na bigorna comporta o vácuo do espaço e do abismo. Só na linguagem do silêncio, do pensamento, da introspecção, se poderá animar as empresas puramente tecnicistas que galvanizam no início e estiolam quase a seguir. Os artesãos a que S. deu voz estavam errados: as coisas importantes não se explicam por preceitos empíricos.

Uma cadela sufoca.
Uma gata é trepanada.
Um urso de peluche é vendido em leilão.

Os silenciosos olharam para o abismo e este também os olhou em silêncio.

A costureira da Lua

Na edição de hoje do Jornal i, numa chamada de capa, a NASA diz que não tem ideia de (se eu entendi bem a frase) quem fabricou a bandeira que está fincada em solo lunar. Porém, seria fácil a NASA recuperar essa má memória se olhasse para o Diário de Notícias de 23 de Julho de 1969 e lesse a entrevista dada pela costureira portuguesa Maria Isilda Ribeiro, que, residente nos Estados Unidos desde 1966, trabalhava na fábrica de bandeiras que produziu o mais universal estandarte do século XX. Na altura com vinte e três anos, Maria Isilda Ribeiro não imaginava, provavelmente, que as marcas impressas pelas suas mãos ficariam indeléveis no espaço: existem impressões digitais portuguesas na Lua — romântica coda para a senda renascentista dos Descobrimentos de que fomos pioneiros, se se quiser ver assim.



quinta-feira, 11 de julho de 2019

Barroco: metamorfoses de uma palavra - Parte II



3 – O regresso do extravagante
Barroco, o neologismo de Orta, difundiu-se pela res publica letrada e científica, mercê do fulgurante êxito dos Colóquios […]; em finais de 1564, o físico e botânico flamengo Carolus Clusius adquire um exemplar em Lisboa e traduz o texto para latim, imprimindo-o três anos depois em Antuérpia, na tipografia do humanista francês Christophe Plantin: intitula-o Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud Indios nascentium historia – e na esteira desse best-seller aparecerão rapidamente outras edições, em castelhano, italiano e francês.

Com efeito, no último quartel de Seiscentos, o Dictionaire universel […] do lexicógrafo francês Antoine Furetière (publicado postumamente em 1690, dois anos depois da morte do autor) estabelece a acepção ortaiana da palavra na redacção desta entrada: «BAROQUE. Terme de Joiialillier, qui ne se dit que des perles qui sont pas parfaitement rondes.» Quatro anos depois, o significado conserva-se, pois a primeira edição completa do canónico Le Dictionnaire de l'Académie françoise dedié au Roy contém um verbete muito parecido: ««BAROQUE. Adj. Se dit seulement des perles qui sont d’une rondeur fort imparfaite. Un collier de perles baroques.» Aliás, o mesmo texto é reproduzido verbatim na segunda edição do dicionário, o Nouveau Dictionnaire de l’Académie françoise dedié au Roy, publicado em 1718. Porém, no ano de 1740, na terceira edição do dicionário, de título abreviado para Dictionnaire de l’Académie françoise, pode ler-se o seguinte: «BAROQUE. Adj. Terme qui n’a d’usage qu’en parlant. Des perles qui sont d’une rondeur fort imparfaite. Un collier de perles baroques. BAROQUE, se dit aussi au figuré, pour Irrégulier, Bizarre, Inégal. Un esprit baroque. Une expression baroque. Une figure baroque.» [Sublinhado meu.] Ou seja: é inventariado pela primeira vez o sinónimo alegórico de barroco, enquanto coisa extravagante, fora do normal.

É um significado que, por via autónoma, reconquista o sentido da “ausência de harmonia” que Montaigne aplicara na sua crítica aos escolásticos [ver Parte I]. Que terá sucedido entre 1718 e 1740 para, em França, a interpretação da palavra barroco se ter transformado? A resposta é simples: um quinquagenário professor de música francês começou a compor tragédias musicais.


4 – O excessivo senhor Rameau
Em 1722, Jean-Philippe Rameau publicou um pioneiro livro de ciência musical intitulado Traité de l'harmonie, ápice de uma longa carreira como teórico musical: nesse trabalho, o autor pensava ter encontrado uma espécie de “lei natural” da música – tropo que, acrescente-se, começava ser um indelével ingrediente do espírito “matematizante” desse dealbar de Setecentos, pois que outra coisa não eram os recentes livros de John Locke e Isaac Newton senão tentativas de encontrar leis naturais – repetíveis e universalmente aplicáveis – nos seus respectivos campos de estudo? Em poucas décadas seguir-se-iam, subordinados ao mesmo objectivo, os livros de Adam Smith, David Hume e Jean-Jacques Rousseau – este último, adversário de Rameau nas ideias e nos gostos musicais, como veremos. O acolhimento positivo dado ao singular tratado inspirou Rameau a escrever outro, publicado quatro anos depois, com um título mais programático: Nouveau système de musique théorique – considero que não é acidental o facto de a harmonia estar ausente no novo título e ser substituída por um novo sistema. É que a música que Rameau irá compor e apresentar ao público será radicalmente diferente.

Na verdade, Rameau só se estabeleceu em Paris aos quarenta anos de idade e envolto num certo noli me tangere de provinciano, trazendo uma reputação de instrumentista competente, é certo, mas nada que se guindasse ao génio; ele foi, aliás, um retrato inverso do prodígio que irrompe na infância, à guisa de um Mozart – até exasperou os mestres jesuítas do seu colégio em Dijon, no coração da Borgonha, por culpa da fraca aptidão para o estudo. Dz-se que passava as aulas a cantarolar tolas melodias que inventava… Há, de facto, organismos raros que passam por um período dilatado de estádio larvar; constantemente consumindo, ruminando, aguardando, para, no final, às vezes já muito distantes do fulgor fisico da juventude, romperem o casulo de modo esmagador.

Foi isso, precisamente, que ocorreu a Rameau no dia 1 de Outubro de 1733, com a estreia na Académie Royale de Musique, em Paris, da sua primeira ópera Hippolyte et Aricie: tragédia musical em cinco actos com libreto de Simon-Joseph Pellegrin (adaptação parcial da obra poética Phèdre, de Jean Racine, publicada em 1677). Até esse momento, pouquíssimo – nada – na vida musical de Rameau preparara o público parisiense para a polifónica complexidade e intensidade dramática dessa ópera inicática. Rapidamente, se criou um septo entre as massas agitadas, num lado com admiradores fervorosos de Rameau e o outro eivado de ferinos detractores: estes, apelidados de Lullistes, partidários do compositor Jean-Baptiste Lully (antigo colaborador de Molière) e do estilo de tragédie en musique por ele desenvolvido, caracterizado pela chamada “abertura à francesa” (admirada e glosada por Bach e Handel, por exemplo); e os outros, imediatamente denominados de Ramoneurs – palavra francesa que significa limpa-chaminés e apensa a este fim específico em virtude da homofonia com o apelido Rameau. Só em meados de Setecentos, Rameau principiou a ser valorizado, tornando-se, inclusive, compositor da corte, adoptando a partir daí o título de Compositeur de la chambre du roy. Não obstante, em 1733 e nos anos que depressa se seguiram não era fácil prognosticar esse triunfo e Rameau, do alto dos seus cinquenta anos, poderia facilmente ter-se dobrado às críticas e permanecido um obscuro teorista musical, hoje talvez totalmente desconhecido.


5 - A invenção do Barroco
Aos nossos ouvidos contemporâneos, Hippolyte et Aricie não parece, de facto, tão diferente assim dos trabalhos de Lully, embora já apresente determinados elementos que Rameau consolidará numa identidade própria em óperas posteriores – por exemplo, Les fêtes d’Hébé, ou Les Talents lyriques, de 1739, Dardanus, também de 1739, e Zoroastre, de 1749 – como o abandono total de um prólogo à francesa (em Zoroastre) e a tónica colocada no carácter dramático, “narrativo”, da representação, prefigurando a revolução realizada em 1767 por Gluck e Calzabigi com a versão original, em italiano, de Alceste, que no meu entender é já uma ópera proto-romântica. A abertura de Les fêtes d’Hébé […] afasta-se da matriz lullista, elevando-se até à quase dissonância – um tipo de dissonância ainda harmónica quando comparada com o paradigma contemporâneo, mas antecipando o tipo de difonia que, num registo diferente, telúrico, tenebroso, distinguirá a ópera Tristan und Isolde de Wagner (1865). Sobretudo, a primeira ópera de Rameau é um caleidoscópio de conceitos, riffs e matizes que, às tantas, não podia deixar de confundir a assistência – e os próprios músicos.

Prova disso é a crítica impressa na edição de Outubro de 1733 da gazeta literária Mercure de France, publicação que datava desde 1672 e que é uma das melhores varas de vedor para se detectar as pulsões desta sociedade francesa de finais de Seiscentos e inícios de Setecentos. Nesse texto, o crítico escreveu o seguinte: «On a trouvé la Musique de cet Opéra un peu difficile à executer, mais par l’habileté des Simphonistes et des autres Musiciens, la difficulté n’en a pas empêché l’exécution. (…)» [sublinhados meus]. É tentador cotejar esta crítica com o que diz outro texto, também publicado no Mercure de France, mas na edição de Maio de 1734; nessas páginas, sob o título “Lettre de M. *** à Mlle. *** sur l’Origin de la Musique”, um autor anónimo diz o seguinte: «(…) toujours de la tristesse au lieu de tendresse, le singulier étoit du barocque, la fureurdu tintamare [algaraviada, assuada]; au lieu de gayeté, du turbulant, et jamais de gentillesse, ni rien qui put aller au couer; (…)» [sublinhado meu].

Para mim não é claro que este texto de 1734 se cifre numa crítica directa à música de Hippolyte et Aricie, chamando-lhe barroca, como alguns autores vêem, pois nem ela, nem o seu compositor são chamados à colação numa redacção bastante ambígua. Todavia, é verosímil que, aqui, o emprego de barroco enquanto desqualificativo que carrega o significado de desarmónico se relacione com a estreia em 1733 da obra inaugural de Rameau e com o impacto provocado pela sua música estimada difícil e excessiva por parte do público e pela crítica.

Mais importante é a revelação que esta é, provavelmente, a primeira vez que a palavra barroco aparece publicada enquanto adjectivo (pejorativo) de uma obra artística – neste caso, uma ópera. E sabemos que é assim, porque podemos ler também no Mercure de France, na edição de Junho de 1728, uma adivinha em verso, intitulada “Enigme (de A. B. C.)”, em que a palavra baroque aparece no sentido de “forma imperfeita”, que é o sentido que circulava na altura e que era registado nos dicionários: «(…) a l'étranger je dois mon nom, / comme ma baroque figure (…)» [sublinhado meu]. Novamente no Mercure de France, essa montra de mentalidades de uma comunidade francesa em mudança, a palavra barroco, enquanto depreciativo musical, continua a fazer escola: no primeiro tomo da edição de Junho de 1738, lê-se «(…) et s’y défait du peu que la Musique Italienne peur avoir de baroque, surtour à nos oreilles, a contrebalance le Clerc en France (…)». Só posso concluir que a estreia de Rameau em 1733 como compositor de óperas consistiu numa micro-revolução epistemológica, porque entendo que foi a partir desse momento no tempo que começou a materializar-se na mente do público o nítido nominalizante de uma nova linguagem artística, que na música – mas não só – parecia pugnar pelo excesso, pela desarmonia; em suma, pelo rompimento do cânone classicista. Pela primeira vez existe um nome para denominar essas múltiplas aportações de uma nova realidade artística que radicam nas quinhentistas determinações tridentinas fluindo na música francesa do segundo quartel de Setecentos. Dir-se-á que é do estilo barroco.

É isso mesmo que fará o conservador Jean-Baptiste Rousseau, numa carta que escreve a 17 de Novembro de 1739 a Louis Racine, filho de Jean Racine, o autor de Phèdre, a obra em verso parcialmente adaptada por Rameau e Pellegrin em 1733. Nessa composição, redige um verrinoso poema em que ataca Rameau indirectamente: «Distillateurs d’accords baroques. / Dont tant d’idiots sont férus, / Chez les Thraces et les Iroques / Portez vos óperas bourrus. / Malgré votre art étérogène / Lulli de la lyrique scène / Est toujours l’unique soutien. / Fuyes, laissêz-luis son partage, / Et n’écorchez pas davantage / Les oreiiles des gens de bien.» [Sublinhado meu.] Este poema também não é uma crítica à ópera Dardanus de Rameau, como alguns autores vêem, porque a carta data de 17 de Novembro de 1739 e a ópera estreou em Paris dois dias depois, logo Jean-Baptiste Rousseau não a poderia ter ouvido – é, evidentemente, uma crítica a Hippolyte et Aricie, já que o destinatário da missiva é o filho do poeta cuja obra estava agora associada a uma ópera que ambos consideravam desprezível.

Assim, torna-se mais claro o caminho que levou a que a palavra barroco fosse mimoseada em 1740 na terceira edição do Dictionaire de l’Académie françoise com o significado novo de coisa irregular, bizarra, desarmoniosa – em espírito, em expressão e em figura.


6 - Aqui jaz o deus da harmonia
Outro Rousseau, mas chamado Jean-Jacques, tão revolucionário quanto o Jean-Baptiste era tradicionalista, também criou um dicionário – de música – em que não deixou de censurar o estilo pelo qual era cógnito o compositor de que desgostava: pode ler-se no seu Dictionnaire de Musique, de 1768, «BAROQUE: Une Musique Baroque est celle dont l’Harmonie est confuse, chargée de Modulations & de Dissonnances, le Chant dur & peu naturel, l’Intonation difficile, & le Mouvement contraint. Il y bien de l’apparence que ce terme vient du Baroco des Logiciens.» [Sublinhados meus.] Afasta-se do âmbito desta análise discorrer sobre as facções musicais que Rameau e Rousseau representavam (questão que explodiu na chamada Querelle des bouffons, em meados de Setecentos, com a representação em Paris no ano de 1752 da opera buffa de Pergolesi La serva padrona), mas pode resumir-se deste modo: para Rousseau, a música de Rameau era a música da desordem, do irracional, da hipérbole, elementos disruptivos que obstaculizavam a “boa razão”, a ortogonalidade e matematização do tal pensamento das leis naturais repetíveis e universais, a parcimónia do homem civilizado em contraste com a conduta desbragada de um bárbaro. Não é diferente da crítica que farão depois os adversários dos românticos, defensores de valores caros ao classicismo.

No final do século XVIII, a definição de barroco como antítese do classicismo – na música, nas letras e em todas as artes – está plenamente estabelecida. No célebre Dizionario delle belle arti del disegno […], de 1797, publicado pelo historiador de arte italiano Francesco Milizia, campeão do neo-classicismo e incansável adversário de estilos artísticos considerados “barrocos”, pode ler-se «BAROCCO è il superlativo del bizzarro, l’ eccesso del ridicolo . Borromini diede in delirj, ma Guarini , Pozzi , Marchione nella Sangrestia de S. Pietro ec. in barocco.» [Sublinhados meus.]

É vertiginoso pensar que, apesar de tudo, Rameau participou do espírito positivista nos seus tratados de ciência musical – e que o indefectível Mercure de France, um ano depois da sua morte, o recordava ainda com este epitáfio publicado no primeiro tomo de Abril de 1765: «Pour l’épitaphe de Rameau / Chacun exerce son génie : / Un vers suffit : dans ce tombeau / Cy gît le Dieu de l’harmonie.»