quinta-feira, 30 de maio de 2019

Fragmento de queijeira da Serra de Monsanto (3000 a.C. a 1000 a.C.): algumas sobreposições históricas




O objecto deste texto, integrado no espólio arqueológico do Museu de Lisboa, convida-nos a pensar na estação arqueológica de Montes Claros, na Serra de Monsanto, porque é aí que começa o seu exame, mas, ainda assim, vamos olhar durante um momento para, literalmente, além Tejo, no sentido da vila de Arronches, da qual à antiga capital da província romana da Lusitânia, Emerita Augusta, ou Mérida, fundada em 25 a.C., se vai num fôlego. Não muito longe dessa vila alentejana, na orla do Parque Natural da Serra de São Mamede – nome que tanto evoca o leão sagrado, que no brasão da antiga freguesia homónima de Lisboa agarra uma palma de martírio, como a batalha vimaranense que espoletou a fundação de Portugal –, alcandora-se um antro mais vezes sobrevoado por abutres que pelos gaivões que lhes estão no nome. Na Lapa dos Gaivões (não confundir com gaviões) pode observar-se um conjunto pictórico datado do terceiro milénio antes de Cristo: pintado a zarcão, plúmbeo pigmento que os monges medievais chamavam minium e que está na origem da palavra miniatura, encontra-se um grotesco grafito que mais parece um borrão feito pelo iluminista António d’Ollanda no trapo de limpar os pincéis. E, no entanto, esse borrão, tão indeciso entre o Neolítico e o Calcolítico quanto um hipnopompo na fronteira entre o sono e o despertar, é uma imagem simultaneamente sacrossanta e vanguardista.

Mais carácter que figura, somente os cornos lhe denunciam a condição totémica à qual ainda está arreigado, mas já é uma forma de transição entre aquilo que se vê e aquilo que se imagina; um tipo de representação gráfica que está a caminho da caligrafia, do alfabeto. Flanqueado por dois antropomorfos acéfalos, esta personagem pertence à linhagem ilustre de imagens que inclui os ideomorfos da gruta francesa de Chauvet, o Homem-Leão de Hohlenstein e os pictogramas da gruta indiana de Bhimbetka, mas, mais do que isso, é um dos símbolos mais desenhados e esculpidos pela humanidade: o Homem-Cornudo. Este glifo da Lapa dos Gaivões, pintado num local adequadíssimo para nos deixarmos devorar pelas ideias, é mais autêntico que o espalhafatoso feiticeiro do santuário cavernícola de Trois-Frères, em França, a mais conhecida imagem do género. Autêntico, porque é despojado de quaisquer ideologias, senão a dos próprios cornos: são eles que interessam, verdadeiramente, estejam numa cabeça humana ou animal. São símbolos de soberania sobrenatural e sexual, instrumentos de revelação, e desde a alvorada da imaginação foram respeitados e reverenciados pelos nossos rupícolas antepassados. Facto que nos conduz de volta à Serra de Monsanto e ao fragmento calcolítico de queijeira.

Não pode assegurar-se por que razão é que nos lembrámos de começar a beber leite, mas no resultado de recentes análises a diversos fragmentos de cerâmica datados do sétimo milénio antes de Cristo, sabe-se que pertenceram a recipientes usados para guardar leite e para fazer queijo, por isso tudo indica que nos tornámos galactófagos – ou seja, capazes de digerir a lactose –, logo que aprendemos a domesticar cabras, ovelhas e vacas. Comparativamente à criação de gado para consumo de carne, as rotinas relacionadas com a produção de leite são muito exigentes; nesta perspectiva, interrogo-me sobre se poderia ter estado envolvido algum sentido simbólico ou religioso nestas práticas. Um novo tropo cultural capaz de conquistar a nossa intolerância inata à lactose para, a partir daí, tornar-se, simplesmente, outro aspecto da vida quotidiana? Se sim, isso poderia dissipar a dúvida sobre por que é que se continuou a tentar beber leite, depois de se ter ficado indisposto nas primeiras vezes. Se sim, qual a natureza da comunhão que desejava cumprir-se mediante a ingestão de leite? Com que espécie de divindades se tentava comunicar?

Perto de 3500 a.C., antes da construção da esfinge e da época das pirâmides, os primitivos agricultores e pastores que habitavam nas margens do fértil delta do Nilo idolatravam uma divindade chamada Bat, representada com um rosto feminino, orelhas de vaca e pulcros cornos curvados; mais tarde, quando essa civilização se converteu numa monarquia, os faraós passaram a ser solenizados à nascença com o epíteto sagrado de “touros de sua mãe Bat” (ou Hathor, como veio a ser chamada nesse período): mitopoesia concebida para transmitir a mensagem de que descendiam da velha vaca deusa. As ossadas de vaca achadas em escavações arqueológicas nesses cenários mostram que os bovinos só eram abatidos quando envelheciam e existe a teoria de que o gado era inicialmente criado não só para se beber o leite, mas principalmente o seu sangue – tal como as tribos subsarianas Batemi e Masai ainda hoje fazem para enriquecer dietas que não se afastam dos moldes em que era constituída a dos avoengos egípcios. Antes da criação e difusão dos suplementos alimentares contemporâneos, foi frequente a prática de equilibrar os regimes cruelty free com a imisção de sangue ou acrescentando tutano à confecção dos pratos; foi neste feitio que a cozinheira austríaca Constanze Manziarly confeccionou as refeições de Hitler – que, apesar de vegetariano, comeu conservas Atum Ramirez enquanto esteve escondido no bunker berlinense.

Todavia é persuasivo considerar que não estamos, somente, a falar de nutricionismo neolítico: sangue e leite sempre foram observados como sendo médiuns da força vital. Se há verdade no pregão que anuncia que se é aquilo que se come, então ser-se uno com o divino, por ingestão, é devoção no seu estado mais primário e impetuoso. A profusão de religiões baseadas na bovinolatria que podem contabilizar-se a partir deste período demonstra a importância que esses animais tiveram no espaço económico e cultural das novas civilizações sedentárias. Escutam-se ecos destas espiritualidades no episódio tauróctono descrito por D. Mariana Vitória, nora de D. João V, à sua mãe, D. Isabel de Farnésio, segundo o qual o rumor de encomendar-se um grande boi para abri-lo e introduzir lá dentro o rei, de maneira a curá-lo da lástima provocada pela apoplexia, era falso, porque o boi não era para ele, mas para o príncipe D. José meter lá dentro o braço e a sanar a mão enferma. Nos antigos cultos solares, como o de Mitra, o tirocínio a que está sujeito o Deus-Sol durante o Inverno é ensaiado sob a forma de um festim no qual os iniciados consomem um touro sacrificado: é uma representação da morte que abre caminho à ressurreição; noção que no cristianismo já encontrava um correlativo na história da crucificação. Em síntese, é uma variação do influente mitema a que se deu o nome de “rei adormecido” ou “encoberto”: após um estágio na entenebridade, o protagonista desperta, transformado em Rei – a origem destes cerimoniais salvíficos é, evidentemente, a vitória da Primavera sobre o Inverno, o ressurgimento radiante do Sol. Os homens têm uma tendência inata para segui-lo – inclusive nos rituais que vão formando para dar luz a um mundo brumoso e adverso. Mas de que espécie teria sido ordenhado o leite com o qual se fez o queijo que fermentou na nossa queijeira da Serra de Monsanto?

A teoria de que os bovídeos domésticos europeus descendem de auroques domesticados na Mesopotâmia entre 7000 a.C. e 6500 a..C. está comprovada por análises de ADN mitocondrial. Foram encontrados ossadas de auroques peninsulares em escavações na Sé de Lisboa, nas camadas referentes aos primórdios da Idade do Ferro, mas não existem provas de que esta espécie tenha contribuído para o genoma dos nossos bois contemporâneos; é uma descoberta que somente comprova a coexistência – não é surpreendente, porque o auroque só se extinguiu no século XVII. Porém, existem raças cujo genoma sugere outras familiaridades, como a ascendência Turdetana da raça bovina alentejana, que chegou já domesticada à Península Ibérica, vinda do Egipto – e, nem de propósito, as comoventes esculturinhas de barro que datam dos tempos pré-faraónicos, figurando bois jugados a pastar, mostram que essa espécie egípcia, de cornos largos e revirados para baixo, talvez descendente de um extinto antepassado africano (1), se assemelha muitíssimo aos touros típicos das regiões que os romanos cognominaram de Tarraconense, Bética e Lusitânia. Apesar de tudo, o gado bovino nunca terá sido abundante nesta altura (2) e é mais provável que os criadores de animais que foram amáveis o suficiente para deixarem-nos os seus restos mortais na estação arqueológica dos Montes Claros fossem simples pastores de caprinos: criaturas capazes de sobreviver com os arbustos alcantilados das mais sáfaras serranias. Por conseguinte, o queijo que nos traz aqui à colação foi, certamente, feito com leite de uma cabra calcolítica.

O nome Calcolítico é formado por duas palavras gregas: calkos, que significa cobre, e lithos, que significa pedra. É um período intermediário entre o Neolítico e a Idade do Bronze, denominada Eneolítico (a palavra grega eneo significa bronze), e assinala o aparecimento de objectos manufacturados em metal (o cobre), ao mesmo tempo que a pedra permanece em uso; logo, estamos na madrugada metalúrgica da humanidade, mas os velhos modos de vida ainda não foram substituídos, como atesta o nosso fragmento de queijeira. Ao mesmo tempo que se fala em cobre, pode falar-se, por exemplo, de estanho ou de chumbo: metais dúcteis e fáceis de fundir a baixas temperaturas, ao contrário do ferro, que precisa de uma temperatura de 2000º para fundir-se. Quando se diz que o cobre é dúctil, isso não significa que seja uma espécie de não-metal: é preciso considerar que os netos dos adoradores de Bat construíram as pirâmides com ferramentas de cobre muito elementares – mas extraordinariamente eficazes –, tornadas ainda mais afiadas em conjugação com o efeito abrasivo da areia. Mas o bronze, que é feito ligando-se cobre com estanho, revolucionou os estilos de vida das civilizações; principalmente, permitiu-lhes investir em algo que já andava a ser adestrado desde que as inaugurais sociedades sedentárias levaram a extremos, até então nunca vistos, as noções de “meu” e “teu”: a arte da guerra. As armas que fazem as delícias dos leitores de A Ilíada, por exemplo, são todas feitas de bronze. Existe uma correlação entre o nosso queijo calcolítico e as armas de bronze: são proveitos de uma economia de mercado. No caso das armas, povos do Mediterrâneo Oriental, como os fenícios, trocavam os seus produtos autóctones por estanho, que iam buscar a litorais longínquos, como o paredão pedregoso da Irlanda ou as enseadas encantadoras da occídua fronte peninsular. Mas no que concerne ao queijo, o segredo é o sal.

Na Ilíada, que mencionei há poucas linhas, Hecamede, capturada por Nestor para ser sua criada, inaugura uma combinação gourmet que ficou famosa até hoje, ao servir um bom queijo de cabra com um bom vinho de Lesbos (o facto dela ter ralado o queijo para dentro da taça de vinho não provou ser nenhum impedimento). Todavia, A Odisseia revela-nos que Polifemo, o ciclope que quer devorar Ulisses, é, apesar da sua imbecilidade ovina, um extraordinário queijeiro: tem a caverna cheia de enormes queijos deixados a curar, cujo cheiro faz crescer água na boca aos companheiros de Ulisses. Sem desconsideração para Homero, é mais provável que o queijo tenha sido descoberto por acidente como consequência do costume de beber leite – e de maneira muito semelhante à forma como se descobriu a cerveja, porque ambos são fruto da fermentação –, do que inventado por um gigante antropófago. Tudo terá começado quando algum antigo pastor se esqueceu de beber o leite que guardou num odre feito de estômago de cabra ou de ovelha: ao permanecer mais tempo em contacto com esse revestimento rico em quimosina – enzima que possui propriedades coagulantes –, o leite, simplesmente, coalhou. Não terá demorado muito tempo até que, por experimentação, se tenha concluído que mergulhando no leite as coalheiras de crias por desmamar se acelerava e aperfeiçoava o processo (a coalheira é a última câmara do estômago dos herbívoros ruminantes: os restantes compartimentos gástricos chamam-se pança, barrete e folhoso). A nossa queijeira calcolítica seria mais ou menos assim: um coador cilíndrico de cerâmica com duas bocas para introduzir a coalhada e paredes perfuradas para que o soro do leite escoasse. Parece ser uma tecnologia muito básica e ineficiente, mas até os queijos industriais continuam a ser feitos segundo estes princípios básicos. Objectos desta natureza assinalam a chamada "Revolução dos Produtos Secundários", na terminologia do arqueólogo inglês Andrew Sherratt.

Os romanos foram, como os gregos, apreciadores de queijo e o nome em latim para este género de queijeiras é forma, do qual derivam os nomes italiano e francês para queijo: formaggio e fromage. A nossa palavra queijo não originou desse nome em latim para queijeira, mas do nome romano para o próprio produto: caseu, que significa amargo. É, de facto, muito parecido com as palavras em latim para choça e infortúnio: casa e casus. A primeira é, como é evidente, a nossa palavra casa, que os romanos nos deixaram quando por aqui passaram. É que, em latim, a palavra domus, popularizada por tantos livros e filmes como sendo a palavra para “casa”, significa uma grande propriedade abastada, mais a familiae (escravos) que lhe está agregada, e relaciona-se com a palavra dominus, que se traduz por amo ou proprietário. Segundo o latim, todos nós vivemos em choças.

Será que existe uma analogia significante entre estes étimos em latim para as nossas palavras “queijo”, “casa” e “infortúnio”?
Em A Anatomia da Melancolia, Robert Burton medita sobre as faculdades morbígeras do queijo e das restantes «viandas de leite», como lhes chamava D. Duarte – o nosso rei mais “burtoniano” –, porque sendo alimentos “frios” têm o poder de estimular o frio humor «merencórico» (outra designação “duartiana”, anotada em O Leal Conselheiro). Que afinidade se aglutina entre o queijo e a amargura? Desfraldo neste instante um parêntesis para pensar sobre a influência que poderão ter tido nesta matéria uns hipotéticos e rústicos queijeiros, trabalhando amargamente em choças de colmo – não dissemelhantes às dos pastores portugueses, que perduraram até ao século XIX – para produzir agres queijos que iriam vender no mercado.

No seu Livro das Grandezas de Lisboa, Frei Nicolau de Brito garante que os queijos do reino de Portugal são «os mais estimados e nomeados que há no mundo». Descontado o pendor que o cronista tinha para o exagero, esse engrandecimento encerra uma pequena verdade: poderão não ser os melhores do mundo, mesmo que o da Serra de Estrela – feito a partir de leite de ovelhas que Gil Vicente chamou de «meirinhas» (que é como quem diz “lanudas”) – e o de Serpa (também de leite de ovelha) mereçam essa distinção, muito cobiçados são, sem dúvida.
Então e o da Serra de Monsanto?

Infelizmente ou felizmente, esse ficou, em rigor, para a história. Aquilo que nos desvendou sobre as incipientes lactoindústrias do Calcolítico, nas suas dimensões mitológicas e práticas, aplanou-nos o degrau cronológico pelo qual ascenderemos a uma Lisboa ainda longe de ser a nossa, mas muito próxima do protótipo cosmopolita, tal como o petroglifo cornuto da Lapa dos Gaivões se declina de desenho para carácter. O sal, como vimos, é o segredo – do queijo e do aplainamento do nosso degrau.

Os caçadores-recolectores nunca trocaram nenhuns objectos por sal, como os agricultores e os pastores fizeram, porque eles encontravam sal, naturalmente, na dieta variada que colhiam e capturavam; em semelhança, os animais selvagens não precisam que lhes dêem sal a engolir, como precisam os domésticos. Para manterem-se vivos, espécies corpulentas como bois e cavalos precisam até dez vezes mais sal do que nós – é indispensável. A falta de sal dá dores de cabeça e tonturas, provocadas por hipotensão arterial, depois vêm os vómitos, porque sem sal não se é capaz de digerir uma simples passa; em seguida, deixa-se de pensar com clareza, num torpor irascível, e é-se derrotado por uma estranha exaustão que, por mais que se repouse, não desaparece. Finalmente, cai-se num coma e morre-se, porque sem sal as células não são capazes de nutrir-se e expiram de desidratação. É uma morte traiçoeira, porque nunca, em momento algum, se sente vontade de comer sal. Hoje, felizmente, os alimentos que consumimos e a água que bebemos das nossas torneiras, cheia de sais e minerais fundamentais, ajudam-nos a manter equilibrado o nível de duzentos e cinquenta gramas de sal que precisamos para sermos saudáveis, mas que os nossos metabolismos gastam com celeridade. Os romanos não foram nenhuns tolos ao preocuparem-se tanto com esta questão, ao ponto de pagarem aos soldados em sal.


(1) No sítio arqueológico Ouede Mathendous, na Líbia, é possível observar várias gravuras de animais, feitas em rochas de arenito, datadas de há oito mil anos; entre elas, a de uma espécie extinta de bovino (auroque ou búfalo) que poderá ser o antepassado dos primitivos bovinos egípcios.

(2) As escavações supramencionadas no início do parágrafo, no estrato referente à Idade do Ferro investigado na Sé de Lisboa, desvendam que o gado bovino continuava a ser pouco consumido, em relação ao ovino e ao caprino.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Estrangeiro do presente


Somos holoedros anfíbios: vivemos multifacetadamente, em simultâneo, no presente e em outro tempo — no tempo exterior e num tempo interior. Um mede-se pelos ponteiros e é afectado pela atracção da força gravítica; o outro não se deixa agrilhoar pela física e mede-se com hieróglifos secretos que desenhámos a lápis e a giz na infância, mede-se através da aceleração do músculo cardíaco cada vez que rompemos num mergulho essa membrana feita de memórias. A relação axissimétrica entre ambos os tempos define o modo particular como nos comportamos no plano espacial: em harmonia com o presente ou estrangeiros do presente. O presente e nós como capitéis perclaramente nivelados ou, então, parêntesis afastados por sucessivos graus de infinitude.
O tempo interior é congénito, cronóvoro, eléctrico-resinoso de tanto se esfregar no âmbar em que se cristalizaram os nossos diversos eus: a genealogia das nossas identidades e idades é feita da impressão dessa cromatófora faísca com o pó das nossas células mortas, à guisa de dendrites lichtenberguianas — à primeira observação tão confusa quanto a turfa de Dürer, na remistura de ramagens, caules e raízes, mas única, com a singeleza e a autoridade mansa de um equinodermado borrão de tinta, pejado de fiordes, rombos e escolhos microscópicos que algum tipo de forma de vida, à sua escala, irá um dia navegar. Essas amorfidades falam connosco. Dizem-nos que o nosso tempo não é o tempo do mundo. O tempo do mundo será o nosso caixão, mas não foi o nosso berço, pois de outros tempos interiores nascemos — e para um outro tempo seu cognato viajaremos.
Por conseguinte, a obsessão em ser-se do tempo do mundo, um tempo que não é nosso, é uma moléstia bem miserável.

O sonho é um órgão autopoiético


O sonho é um órgão autopoiético: cada persona, cada panorama patenteado durante o sono, encerra parte de um padrão numa particularíssima e pessoal topologia que o próprio órgão vai desenvolvendo em detalhe. O órgão do sonho é, pois, físico e diáfano, em simultâneo: não flui sangue nas suas veias, mas memórias dos nossos mortos; e, assim como uma esponja se fragmenta ao ser coada, mas se regenera de imediato do lado oposto da malha de arame, o órgão de sonho dissolve-se quando despertamos, mas reintegra-se intacto cada vez que adormecemos. Este comportamento não é guiado por nenhum sistema nervoso — o órgão de sonho é antigo, primevo e pristino, parente de uma era em que luz e treva eram as coordenadas espaciais existentes. Uma era frondejante de simbolismo — substantivo que, aqui, volta a ser substância, pois simbolismo é metabolismo.
Os mortos por ele são atraídos: não os mortos, em suma, mas os vestígios que deixaram em nós — cada sonho a que o órgão de sonho dá o ser é um icnofóssil: resquícios de vidas que abandonaram a nossa companhia ocultam-se nas suas pregas e arquivoltas; vozes ainda familiares; gramática de cor e artefactos; gestos que pensávamos nunca mais voltar a ver. Serão os nossos mortos invocáveis a partir destas translúcidas palinfrasias? Destes duplos que, como esponjas e remanescentes teriomorfos pré-câmbricos, se dissolvem e sublimam constantemente?
Os pulmões oxigenam o sangue. Os olhos deixam passar a luz. Os sonhos ligam a vida à morte.

terça-feira, 21 de maio de 2019

Histórias de café e tabaco


Da mesma maneira que as pessoas, a história nem sempre diz aquilo que pensa; daí ser preciso reparar nos pormenores. Um dos detalhes mais significativos do ascendente de Leni Riefenstahl sobre Adolf Hitler é visível por poucos segundos na segunda parte do documentário Olympia, intitulada Festival de Beleza: passados vinte minutos desde o início, durante a sequência da competição de vela, podemos ver um atleta vestido de preto a manobrar com energia o velame do seu barco enquanto fuma um cigarro. Enquadrado com esmero, o plano exsuda solicitude para com o tripulante tabagista que ocupa a dianteira da composição e nela tudo concorre para que o cigarro refulja como um pirilampo. A sempre sartorial Riefenstahl (embora – por culpa da sua inexpressão cubiculária – nunca se libertando de invocar uma peculiar imagem a que, posteriormente, Russell Hoban daria existência no romance Turtle Diary para caracterizar a quarentona Neaera H.: «parece a mulher de alguém sem o alguém») não se coíbia de ser fotografada de cigarro na boca, num contexto político hostil para fumadores: Hitler abominava tabaco (vira grandes fumadores, como o pai, mais o mentor político Dietrich Eckart, morrer tormentosamente) e as campanhas anti-tabagistas nacionais-socialistas eram as mais duras até à data.
Com efeito, Hitler orgulhava-se do facto de ele e dois ditadores seus próximos, Mussolini e Franco, não fumarem, ao mesmo tempo que líderes adversários, Churchill, Roosevelt e Estaline, não terem vergonha de mostrar-se em público como repugnantes viciados em charutos e cigarros. Profundo conhecedor e grande admirador de Westerns, Hitler gostava de definir o tabaco como «a fúria do Pele-Vermelha contra o Homem Branco, a vingança por todo o uísque que lhe fora dado a beber». Descrita como a medicina do estado, promovida por Himmler e Hess, a recrudescência da homeopatia acompanhou a guerra nacional-socialista contra a outrora chamada erva-santa; em principal, a homeopatia era utilizada contra casos de cancro causados por uso de tabaco, diagnósticos em que a iátrica nazi se especializou. A fumadora Leni, contratada por Hitler para lenificar (nunca um verbo terá feito tanto sentido como neste caso) os estragos morais provocados pela exibição do filme A Oeste Nada de Novo, de Lewis Milestone (baseado no romance do escritor alemão Erich Maria Remarque, veterano da Primeira Grande Guerra), realizou com enorme êxito dois documentários laudatórios da cosmovisão nacional-socialista, Triunfo da Vontade e Olympia, tornando-se, inclusive, uma influente mensageira do regime nazi em Hollywood, onde alguns grandes estúdios aquiesceram a colaborar regularmente com a agenda política alemã.
Em simetria, outra substância que Hitler considerava venenosa para a população adolescente era a cafeína – afortunadamente, a Alemanha havia inventado há umas décadas a descafeinação, processo que, a partir dos anos 30, foi sendo alvo de sucessivas pressões administrativas para tornar-se mais biológico.
Em contraste total com os ideais homeopáticos e holísticos dos protagonistas nacionais-socialistas, outros alemães alimentaram no passado relações menos obstinadas com os seus vícios – e o exemplo que resgato neste momento é o melhor de todos, porque mata dois coelhos com uma só cajadada: Bach, matemaníaco compositor barroco, autor de ascencionais e majestosas sinfonias e sonatas,  escreveu, precisamente, divertidas cantatas para celebrar com alegria o seu amor pelo café e pelo tabaco. Inveterado bebedor de café (e amante de vinho), em bachica (ou báquica) verve escreveu versos como «café, café, tenho de bebê-lo / se alguém me quer bem / então dê-me café», mas de igual modo não dispensava o cachimbo: «é sempre com o meu tabaco / que tenho as melhores ideias / e contente fumarei muito / na terra, no mar e em casa». Na verdade, o texto da cantata do tabaco constrói uma alegoria muito agradável entre a fragilidade do cachimbo, feito de barro, e a debilidade humana, também proveniente da argila: homem e cachimbo estão destinados a partir-se, a repulverizar-se no retorno à terra, mas felizmente serão o aconchego um do outro até chegar esse destino.