quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Crowley, Pessoa e a Criança Eterna*

 
Escreveu o autor português João Gaspar Simões, primeiro biógrafo do poeta português Fernando Pessoa, que «charlatanismo e magia sempre andaram a par»[1], referindo-se ao imprevisível encontro deste com o mago inglês Aleister Crowley. Depois de ter ficado retido um dia suplementar no porto espanhol de Vigo, por culpa de um espesso nevoeiro, o paquete Alcântara finalmente atracou em Lisboa, no cais da Rocha do Conde de Óbidos, no dia 2 de Setembro de 1930 [2]. Ao encontrar-se com Pessoa, Crowley perguntou-lhe: «-Então que ideia foi essa de me mandar um nevoeiro lá para cima?»[3] Esta frase, mais ou menos apócrifa, mais ou menos real, tem-se esgueirado incólume entre as lâminas dos escalpelos empregues pelos exegetas; pois que outra coisa poderá significar, senão o facto de Crowley já ter compreendido, através do ritmo e entrelinhas da sua prévia correspondência com Pessoa [4], que este, de facto, não tinha muita vontade em encontrar-se com ele? Aquele encontro “mágico”, que se desenrolaria a partir daquele desembarque, fora, em larga medida, projectado à pressa por Crowley nos meses anteriores. Não é, pois, surpreendente que, em Setembro do ano seguinte, Crowley se queixaria por escrito a Pessoa por não receber notícias suas há bastante tempo [5]. Assim, por qual razão terá Crowley insistido em encontrar-se com Pessoa em Lisboa? Robert Bréchon, biógrafo francês de Pessoa, oferece uma contextualização lúcida a esse respeito: «É portanto um homem desesperado que, em Agosto de 1930, decide ir a Lisboa encontrar-se com Pessoa.»[6]
 
Crowley, claro, disfarçava esse desespero com atitudes provocatórias e comportamentos excêntricos [7], mas deve ter sentido, muito à flor da pele, que o seu território de caça se cerceava rapidamente: já tinha sido expulso de Itália, em Abril de 1923, por actividades subversivas e suspeita de simpatias comunistas [8]; fora expulso de França, em Abril de 1929, por suspeita de ser um espião a soldo dos alemães [9] (embora Crowley declarasse que o motivo tinha sido o facto de a polícia considerar que a sua máquina de café era, na realidade, um aparelho para destilar cocaína [10]). Em relação à animosidade que o próprio Reino Unido cevava contra ele, o jornal inglês John Bull congratulou-se com uma súmula de todas as proscrições: «Soon Hell will be the only place which will have you. You were driven out of England, America deported you and so did Sicily. Now France has given you marching orders.»[11] Nesta perspectiva aclara-se o motivo pelo qual Crowley decidiu encontrar-se com Pessoa: terá pensado que o poeta poderia ser um bom homem de mão – fluente em inglês – para ajudá-lo a criar em Lisboa (urbe voltada para o Atlântico, placa giratória entre as Américas e a Europa) uma dependência da ordem Argenteum Astrum (ou AA, como costuma ser grafada, de molde a permitir diversas interpretações [12]), que criara a 15 de Novembro de 1907 (conjuntamente com George Cecil Jones e J. F. C. Fuller)[13], e cujo texto basilar foi, precisamente, O Livro da Lei (Liber AL), escrito em 1904.

Investigações contemporâneas sobre o espólio documental de Crowley, referente ao seu encontro com Pessoa, revelam que o poeta português Raul Leal (que assinava com o pseudónimo Henoch e foi autor de Sodoma Divinizada, em 1923, entre outros trabalhos) recebeu Crowley no seu apartamento da Rua das Salgadeiras, no Bairro Alto, em Lisboa, no dia 9 de Setembro de 1930, para se submeter a algum tipo de iniciação de carácter esotérico [14]. Desde o início do ano, pelo menos, que Leal se correspondia com Crowley, visando, em específico, ser iniciado por este num caminho mágico [15]. Mais tarde, em Julho de 1950, o próprio Leal escreveu sobre esse secreto encontro a João Gaspar Simões, referindo-lhe a presença de Pessoa, mas não mencionou qualquer iniciação de pendor esotérico; somente escreveu que Crowley lhes tinha provocado, por via de um «maléfico» sortilégio, uma enigmática doença que, no caso de Pessoa, lhe provocara a morte cinco anos depois [16]. Segundo outra interpretação, o silêncio de Leal sobre a suposta iniciação poderá relacionar-se com o facto de esta ter consistido numa partida que lhe foi pregada por Crowley e Pessoa [17]. No que concerne à iniciação de Pessoa por Crowley numa das suas ordens, o argumento mais conspícuo cifra-se numa circular destinada em exclusivo a membros da AA e enviada por Crowley a Pessoa, datada de 21 de Março de 1932 [18]. Quer isto dizer que Pessoa seria um iniciado – um discípulo formal? Ou seria uma estratégia elegante de Crowley lhe chamar a atenção, sem se comprometer, posto que, como vimos, o poeta lhe deixara de enviar correspondência? Seja como for, o que é verdadeiro é que Pessoa e Crowley não se terão visto mais do que três vezes – no cômputo, um encontro fugidio.

Pese o facto de o encontro entre ambos não ter feito medrar frutos mais férteis, Fernando Pessoa e Aleister Crowley tinham bastantes realidades em comum: ambos foram criaturas moldadas por um rígido sistema educacional britânico, sob o qual era mal visto os rapazes demonstrarem as suas emoções (um sistema que fez Crowley explodir e Pessoa implodir) [19]; e ambos partilharam o mesmo sentido de humor truculento (a comprová-lo, o episódio da suposta iniciação de Leal?), o interesse pelas letras e pelo oculto. Para Pessoa, a iniciação era «uma admissão à conversação com os anjos» e a poesia o canal que conduzia a essa iniciação [20]; tal como para Crowley o canal para a conversação com o Sagrado Anjo da Guarda era a magia [21]. Mas a maior afinidade entre eles foi, certamente, a paixão pela pseudonímia.

 
Pessoa criou dezenas de heterónimos, personagens literárias com biografias, personalidades e estilos autorais distintos, com as quais assinava a maioria dos seus escritos; e Aleister Crowley criou dezenas de pseudónimos para assinar os artigos e ensaios que publicou em The Equinox e diversas personagens com as quais escrevia sobre si próprio nos seus livros. Já em criança, Fernando Pessoa criava personalidades fictícias para assinar pequenos versos, composições ou, simplesmente, para vestir essas peles em brincadeiras com os irmãos: Chevalier de Pas, Alexander Search, Capitão Thibeaut, Quebranto Oessus ou Adolph Moscow são algumas das primeiras personagens da infância pessoana, passada em Durban, na África do Sul [22]. Já em adulto, em Lisboa, Fernando Pessoa iria assumir uma espécie de metempsicose zoomórfica através da figura do Íbis: ave pernalta que na mitologia egípcia é avatar do deus Toth, o criador da escrita e da magia. Durante algum tempo, quando saía com a família, costumava parar de repente na rua para assumir a postura de um íbis, recolhendo uma perna e encostando o dedo ao nariz, para enorme embaraço de quem o acompanhava – era uma pantomima quasi-ritualística, à guisa de santo-e-senha de sociedade secreta [23]. Aleister Crowley tinha, também, uma brincadeira de rua com a qual espantava os amigos e os estranhos a quem procurava convencer da autenticidade dos seus poderes mágicos: consistia em seguir um transeunte, escolhido aleatoriamente, e imitar-lhe na perfeição os movimentos; quando atingia essa sincronia, simulava de repente uma queda e divertia-se imenso a ver o indivíduo desequilibrar-se sem perceber que força indesvendável o fizera tropeçar [24].

Contudo, superiorizando-se a todas estas afinidades de formação e de partilha de senso de humor e gosto pelo universo do oculto assomava uma enorme diferença: Crowley era um homem do mundo, um intrépido viajante, um extrovertido sem limites; Pessoa era um cidadão do imaginário e só viajava por algumas ruas da Baixa Pombalina – o máximo que se afastava de Lisboa era a distância que a apartava da cidade alentejana de Évora. Nem Pessoa seria capaz de acompanhar Crowley, nem Crowley seria capaz de manter-se quedo para fazer companhia a Pessoa. Uma única diferença pode escavar um fosso entre duas almas tão parecidas.

O encontro de Crowley e Pessoa tornou-se conhecido em virtude da brincadeira engendrada em volta do falso suicídio de Crowley no sítio baptizado de modo dramático de Boca do Inferno, em Cascais [25]. O local, acidente geológico em que uma gruta esgaivada pelo oceano Atlântico colapsou deixando aberta uma confragosa concavidade, decorada por um arco natural, impressiona pela força com que as águas chocam com as rochas; em principal, nos meses de Inverno. Hoje, uma placa memorialista recorda aos visitantes o ludíbrio imaginado por Crowley (para divertir-se à custa da sua desavinda namorada alemã Hanni Jaeger [26]) e coadjuvado por Pessoa. No entanto, na nossa opinião, o remanescente mais relevante desse encontro não consiste nesse golpe “publicitário”.

De facto, estudando as biografias destes protagonistas, pode constatar-se que 1930 cifra uma data de charneira nas vidas de Crowley e Pessoa, manifestando-se neles duas mudanças de admirável pendor análogo: ambos perderam rapidamente o interesse que mantinham no comentário político e enveredaram com maior serenidade no caminho esotérico. Em Crowley, essa serenidade é flagrante: o papel de verrinoso profeta do Éon de Hórus, a Idade da Criança Coroada e Conquistadora preconizada n’O Livro da Lei, deu lugar ao de um instrutor, de um mestre de magia – compare-se o estilo intenso e até revolucionário do livro sobredito [27] com a abordagem empática e paciente do livro Magick Without Tears, escrito ao longo da década de 1940 e publicado postumamente em 1954 (Crowley faleceu em 1947). São textos escritos por mentalidades totalmente diferentes. Pessoa, por outro lado, dedicou os seus últimos anos de vida (faleceu em 1935) a desenvolver o seu próprio sistema mágico: segundo alguns autores, denominou esse sistema por Caminho da Serpente [28]. É tentador projectar nestes percursos de vida uma transmigração de um para o outro de, pelo menos, parte das suas atitudes.

Pese a circunstância de a relação epistolar de ambos não ter ido além de 1931, apesar da insistência de Crowley, os dois comparsas provisórios conservaram gestos simpáticos de um para com o outro. Pessoa, por exemplo, ao abrigo da identidade de um detective inglês que inventou para escrever sobre o falso suicídio na Boca do Inferno, numa novela deixada incompleta, deixou um lúcido testemunho sobre Crowley – uma opinião que, sob o resguardo de uma perspectiva ficcional, se assume, parece-nos, com a maior das sinceridades:
«Um homem como Crowley põe um problema insolúvel às pessoas para quem todos os problemas devem ser insolúveis, por direito próprio. Ele apresenta-se ao mundo, simultaneamente, como um profundo ocultista e mago, e como uma espécie de charlatão. Não confirmo nem nego nenhuma das hipóteses. Mas a sua coexistência é perfeitamente possível. Ficaria muito surpreendido se ele fosse uma celebridade em termos práticos, um indivíduo conhecido, como Wells ou Shaw, que são, na verdade e na raiz das coisas, bem menos profundos e mais superficiais do que Crowley.»[29]
Crowley, que compôs uma leitura muito positiva de Pessoa, aquando da passagem por Lisboa, reteve o impacto que lhe provocara a poesia deste, não se coibindo de recomendá-la com entusiasmo a amigos e associados, em mais do que uma ocasião [30].

Em relação à poesia de Pessoa, em múltiplos aspectos ela harmoniza-se, se não com as intenções, no mínimo com a temática crowleyana – com um especial e específico múnus espiritual. Atente-se, em jeito de ilustração, a dois poemas: um do heterónimo Alexander Search e outro do heterónimo Alberto Caeiro, ambos sobre a temática do Puer Aeternus, a Criança Eterna. Em Regret, de Search, pode ler-se o seguinte: «I would that I were again a child / And a child you sweet and pure, / That we might be free and wild / In our consciousness obscure / (...)»[31]. Mais tarde, sob a identidade de Caeiro, Pessoa escreveu: «Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. / Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. / Ele é o humano que é natural, / Ele é o divino que sorri e que brinca.»[32] N’O Livro da Lei, o Senhor do Silêncio e da Força com cabeça de falcão não possui a ludicidade da Eterna Criança pessoana [33], embora seja, também, uma criança eterna – uma versão pós-industrial do arquétipo da Divina Criança, num recorte neojoaquimita [34].



*Texto de minha autoria, publicado originalmente em CROWLEY, Aleister, Liber Al vel Legis, O Livro da Lei, São Paulo, Chave, 2017, pp. 195-203.

 


[1] SIMÕES, João Gaspar, Vida e Obra de Fernando Pessoa. História de uma Geração, Lisboa, Livraria Bertrand, 1980, 4ª edição, p. 593.

[2] IDEM, ibidem, p. 601.

[3] Loc. cit.

[4] Iniciada por Pessoa, com uma carta enviada a The Mandrake Press, a 18 de Novembro de 1929. Cf. ROZA, Miguel (ed.), Encontro Magick de Fernando Pessoa e Aleister Crowley, Lisboa, Hugin Editores, Lda., 2001, p. 60.

[5] Numa carta datada de 18 de Setembro de 1931. In IDEM, ibidem, pp. 378-380.

[6] BRÉCHON, Robert, Estranho Estrangeiro. Uma Biografia de Fernando Pessoa, Lisboa, Quetzal Editores, 1996, p. 485.

[7] Como transformar em galeria de arte o quarto de hotel que ocupava em Londres no Verão de 1930 – foi expulso. In KACZYNSKI, Richard, Perdurabo. The Life of Aleister Crowley, Berkeley, North Atlantic Books, 2010, p. 448.

[8] CHURTON, Tobias, Aleister Crowley, the Biography. Spiritual Revolutionary, Romantic Explorer, Occult Master – and Spy, Londres, Watkins Publishing, 2012, p. 263-267.

[9] SUTTIN, Lawrence, Do What Thou Wilt. A Life of Aleister Crowley, Nova Iorque, St. Martin’s Press, 2000, p. 341.

[10] SYMONDS, John, The King of the Shadow Realm. Aleister Crowley: His Life and Magic, Londres, Duckworth, 1989, p. 437.

[11] Edição de 27 de Abril de 1929. Cf. KACZYNSKI, op. cit., pp. 439-440.

[12] Representações acronímicas pontuadas por triângulos formados por três pontos comportam, em determinados círculos esotéricos, a noção de que a ordem ou sociedade assim grafada se encontra, de um modo directo, na continuidade de Mistérios Antigos, de matriz clássica ou até pré-clássica.

[13] KACZYNSKI, op. cit., p. 173. A sede e o templo-matriz da AA situavam-se num apartamento alugado em Victoria Street, nº 124, na vizinhança dos jardins do palácio de Buckingham, cf. BOOTH, Martin, A Magick Life. A Biography of Aleister Crowley, Londres, Coronet Books, 2001, p. 264.

[14] PASI, Marco, “September 1930, Lisbon: Aleister Crowley’s lost diary of his Portuguese trip” (pp. 255-283), in Pessoa Plural, nº1, Providence, Brown University, 2012, p. 260. 

[15] Loc. cit.

[16] LEAL, Raul, “Carta de Raul Leal a João Gaspar Simões a propósito de “Vida e Obra de Fernando Pessoa” e de Aleister Crowley”, (pp. 54-57), in Persona, nº7, Porto, Centro de Estudos Pessoanos/Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1982.  

[17] DIX, Steffen, “An implausible encounter and a theatrical suicide – its prologue and aftermath: Fernando Pessoa e Aleister Crowley”, (pp. 169-180), in CASTRO, Mariana Gray de (ed.), Fernando Pessoa’s Modernity without Frontiers: Influences, Dialogues, Responses, Woodbridge, Tamesis Books, 2013, p. 180.

[18] ROZA, op. cit., pp. 390-392.

[19] Para Pessoa, ler, por exemplo, BRÉCHON, op. cit., pp. 61-67; e, também, QUADROS, António, Fernando Pessoa. Vida, Personalidade e Génio. Uma biografia «autobiográfica», Lisboa, Publicações Dom Quixote, 5ª edição, 2000, pp. 25-27. Para Crowley, observar o acontecimento fulcral narrado em CROWLEY, Aleister, The Confessions of Aleister Crowley. An Autohagiography, SYMONDS, John; GRANT, Kenneth (eds.), Londres, Arkana Books/Penguin Books, 1989, pp. 52-53. De igual maneira, o argumento expresso em HUTIN, Serge, Aleister Crowley. Le plus grand des mages modernes, Verviers, Editions Gérard & Cº, 1973, p. 74. Sem ser a última palavra sobre este período da vida do protagonista, não se ignore o relato mais “sensacionalista” publicado em KING, Francis, Mega Therion. The Magickal World of Aleister Crowley, s.l., Creation Books, 2004, pp. 9-10.  

[20] BINET, Ana Maria, “Pessoa, Fernando, 13.6.1888 Lisbon-30.11.1935 Lisbon”, (pp. 942-944), in HANEGRAAFF, Wouter J. (ed.); FAIVRE, Antoine; BROEK, Roelof van der; BRACH, Jean-Pierre (col.), Dictionary of Gnosis & Western Esotericism, Leiden, Brill, 2006, p. 943.

[21] Cf. CROWLEY, Aleister; DESTI, Mary; WADDELL, Leila, Magick. Liber ABA. Book Four, Parts I-IV, BETA, Hymenaeus (ed.), York Beach, Samuel Weiser, Inc., 2ª edição, 2000, p.112. Também PASI, Marco, “Crowley, Aleister (born Edward Alexander), 12.10.1875 Leamington, 1.12.1947 Hastings”, (pp.281-287), in HANEGRAAFF, op. cit., p. 285-286.

[22] NOGUEIRA, Manuela, Fernando Pessoa. Imagens de uma Vida, GALHOZ, Maria Aliete (apr.); ZENITH, Richard (pref.), Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, p. 22.

[23] BRÉCHON, op. cit., p. 96; FERREIRA, António Mega, Fazer Pela Vida. Um Retrato de Fernando Pessoa, o empreendedor, Lisboa, Assírio & Alvim, p. 66.

[24] SUTIN, op. cit., p. 272.

[25] Também conhecido por Mata-Cães.

[26] Na verdade, Crowley já planeava forjar o seu suicídio há bastante tempo, cf. PASI, op. cit., p. 259, n. 17.

[27] No início do século XIII, já a reforma de Císter ia a meio-gás, o movimento milenarista medieval reforça-se inesperadamente com o desenvolvimento do Joaquimismo: corrente criada em volta das ideias do frade cisterciense calabrês Joaquim de Fiore, falecido em 1202 (a Calábria é a biqueira da "bota" italiana e nessa altura fazia parte do reino da Sicília). Em essência, o modelo milenarista joaquimita consiste numa visão macro-histórica das origens e destino da humanidade, formada por Três Idades, à semelhança da Santíssima Trindade: a pretérita Idade do Pai (os eventos narrados no Antigo Testamento), a presente Idade do Filho (os eventos narrados no Novo Testamento e a Era da Igreja) e a vindoura Idade do Espírito Santo (um período emergente de profunda contemplação espiritual, perfeição e paz). Joaquim de Fiore criou esta doutrina através do estudo do livro Apocalipse e calculou que a Idade do Espírito Santo despontaria em 1260. Três anos depois dessa data, no Sínodo de Arles, o Papa Alexandre IV condenou o Joaquimismo como sendo uma perigosa heresia. Por que é que uma Idade do Espírito Santo, plena de profunda contemplação, perfeição e paz, consistia numa perigosa heresia? Embora a profunda contemplação, a perfeição e a paz joaquimitas fossem conceitos com os quais, em princípio, a Igreja não teria grandes dificuldades em lidar, Joaquim de Fiore também profetizou que a Idade do Espírito Santo traria o desmantelamento definitivo de todas as estruturas eclesiásticas - e isso é que a Igreja não podia tolerar; daí a condenação tout court do Joaquimismo (na verdade, o Papa Inocêncio III já o tinha condenado, mas apenas em parte, em 1215, no IV Concílio de Latrão). Independentemente disso, o Joaquimismo fez furor entre os franciscanos, que sempre foram, de certa forma, bastante anti-institucionais e, ao longo dos séculos vindouros, o milenarismo joaquimita provou ser um poderoso algoritmo, capaz de adaptar-se e dar sentido a um florilégio estonteante de ideias milenaristas de várias proveniências. Entre elas, o milenarismo crowleyano.

Não reste dúvidas que a narrativa apocalíptica de The Book of the Law (até este título é o mesmo nome que os judeus dão ao Pentateuco) é, em essência, uma nova versão do velho ideal milenarista, apocalíptico – em maior espessura, do milenarismo de recorte joaquimita. Na visão milenarista de Aleister Crowley, desenvolvida em The Book of the Law, pedra basilar do edifício de Thelema, as Três Idades são as seguintes: a Idade da Mãe (uma idade que simboliza uma hipotética madrugada histórica matriarcal, cujo narradora é Nuit, a deusa egípcia da Noite), a Idade do Pai (a idade das religiões patriarcais e monoteístas, cujo narrador é Hadit, noivo de Nuit) e a Idade do Filho (o Novo Éon, o início de uma nova idade cósmica, narrada por Ra-Hoor-Khuit, jovem deus rebelde e vingativo, identificado com Harpócrates: o deus grego do silêncio, baseado nas representações infantes do deus egípcio Hórus, o Sol recém-nascido). Assim, pode também dizer-se que Nuit é identificada com Ísis e Hadit com Osíris. Neste modelo milenarista contemporâneo, sincrético, a energia iconoclasta e indomável da juventude, representada pela Idade do Filho, combate com violência o poder institucional e autoritário, mas decadente, moribundo, da Idade do Pai. É, de facto, uma narrativa "revolucionária" que instiga uma mudança violenta contra o estado das coisas – daí, na altura, ter sido entendida como propaganda radical de Esquerda. Para Crowley, o advento do Novo Éon, do qual ele se apresentou como profeta, na mesma linha dos profetas veterotestamentários e de Cristo, seria uma ruptura violenta acompanhada de terramotos e guerras. Quando os efeitos catastróficos se dissipassem, instalar-se-ia, como esperado e costumeiro nas ideias milenaristas, a iluminação (thelemita) num período solar de progressão espiritual.

[28] Vid., entre outros, ANES, José Manuel, Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos, Lisboa, Ésquilo, pp. 144-152; CENTENO, Yvette K., Fernando Pessoa, Magia e Fantasia, Porto, Edições ASA, 2003, pp. 62-75, 81-88; FREITAS, Lima de, “O esoterismo na arte portuguesa” (pp. 176-213), in AA.VV, Portugal Misterioso, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 1998, pp.206-213; FREITAS, Lima de, Porto do Graal. A Riqueza Ocultada da Tradição Mítico-Espiritual Portuguesa, FREITAS, José Hartvig de (pref.), Lisboa, Ésquilo, 2006, pp. 255-282. Sobretudo, ler PESSOA, Fernando, “XI – Para a obra intitulada «O Caminho da Serpente»”, in QUADROS, António (pref., org., not.), Obra em Prosa de Fernando Pessoa. A Procura da Verdade Oculta. Textos Filosóficos e Esotéricos, Mem-Martins, Publicações Europa-América, s.d., pp. 212-219.    

[29] PESSOA, Fernando, “A Boca do Inferno. Novela policiária” (pp. 399-529), in ROZA, op. cit., p. 501. (Sublinhado nosso. A partir daqui todos os sublinhados em citações são nossos.)

[30] PASI, Marco; FERRARI, Patricio, “Fernando Pessoa and Aleister Crowley: new discoveries and a new analysis of the documents in the Gerald Yorke collection” (pp. 284-313), in Pessoa Plural, nº1, Providence, Brown University, 2012, pp. 289-290.

[31] PESSOA, Fernando, Alexander Search. Poesia, FREIRE, Luísa (ed., trad.), Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 108. 

[32] Alberto Caeiro, apud BRÉCHON, op. cit., p. 235.

[33] Cf. CROWLEY, Aleister, The Book of the Law, York Beach, Weiser Books, s.d., p. 49.

[34] Vid. supra, n. 26.



terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Com dor de barriga no Presépio

 
As origens da noélica tradição catalã (e não só) que consiste em introduzir de modo escondido no presépio a figura de um camponês agachado a defecar, denominado de El Caganer, estão longe do esclarecimento, mas admitindo que ela poderá comunicar com múltiplas aportações, a maioria provavelmente perdidas, dá espaço à minha especulação que essa personagem, na qual, com latitude exagerada, alguns intentam explicar como sendo uma alegoria da fertilidade, se poderá relacionar — de modo directo, o que é mais tentador, ainda — com imagens da estirpe que aqui publico em anexo e que representam exemplos morais ou críticas de maus comportamentos; neste caso, a estultícia do pecador e os vícios que vai alimentando.

Não obstante essas incertezas, o significado que subjaz a esta prática popular vestir-se-á de grande beleza, em profundo contraste com o aspecto escatológico pelo qual é reconhecida: Cristo é presença sobrenatural, mas oferecida de modo orgânico e material ao mundo — a este mundo também orgânico e material —, sem que exista, para o efeito, um momento particularmente especial ou singularmente mais dignificante; assim, a presença de um homem que defeca no exacto instante em que Deus feito carne é trazido à Terra na sua vizinhança representa a generosidade imensa dessa mitologia fundacional do cristianismo, segundo a qual a divindade vai verdadeiramente ao encontro da humanidade, em todos os aspectos corpóreos, imperfeitos, vergônteos que a caracterizam — pois se é de assumir que no momento em um indivíduo morre, outro está a nascer, outros poderão estar a fazer amor, outros a comer e outros a defecar, por que razão seria diferente para um deus tornado ser humano, que tem como missão, precisamente, crescer e morrer como um deles, de molde a que o inefável aprenda o que isso é? El Caganer, personagem boçal, cruenta, de opaca organicidade, ensina-nos que todos os instantes são dignos o suficiente para que um deus decida nascer. Tudo é Criação. Tudo é perfeito. Qualquer hesitação é apenas vaidade.

A filosofar contra o capote*


Assistir na televisão a emissões do programa Prós e Contras sobre o tema das touradas já se vai tornando, por mérito próprio, uma espécie de para-tradição; ontem à noite*, mais uma vez os defensores e os opositores da dita festa brava esgrimiram veementemente argumentos antagónicos sem que se chegasse a qualquer tipo de conclusão. Do meu ponto de vista, ambas as trincheiras projectaram metralha: entenda-se, nuvens fragmentárias de munição pulverizada, eficaz em fazer estrago imediato, mas quiçá inútil em ganhar a guerra — que é outra forma de dizer que foram quase sempre argumentos improvisados a partir das palavras dos adversários, em vez de teses bem concertadas e impactantes.

Um dos erros frequentes, nesse debate e não só, é confundir-se constantemente a violência da tourada (no caso português, em menor grau que em outros países também tauróctonos) com um espírito passadista, caquético. Com efeito, o espectáculo da tourada possui muitos elementos anacrónicos e repetitivos, mas a violência não é um deles, pois esta é, em virtude da sua natureza, quase sempre revolucionária. Ou seja, não é pela via da crueldade e da exposição da carne coreotransmutada que a tourada estará ultrapassada. No actual panorama cultural, no nosso particular epocalismo, a violência é ritualizada, higienizada e adstrita a áreas exclusivas — à memória, assoma o trabalho seminal de Norbert Elias, Desporto e Sociedade, entre títulos diferentes de outros autores. Destapada da estanque caixa de Petri em que a enclausuramos, a violência patenteia o seu ethos mercurial, corrosivo e, sobretudo, incontrolável.

O erro de percepção permanece, por exemplo, nas comuns interpretações do fascismo que, nas últimas semanas, têm preenchido as páginas dos jornais e os ecrãs televisivos. Na entrevista que deu na edição do jornal Público do passado dia 5 de Novembro, Madeleine Albright reitera a acepção de que o fascismo é violento, porque é reaccionário, um tipo de retrocesso a um tempo de barbárie, mas se esse binómio pode ser atractivo para alguns leitores, não se sustenta à observação mais rigorosa do carácter revolucionário do fascismo e do projecto fascista de renovação de uma sociedade liberal de entre-guerras considerada fracassada e decadente; assim, a violência no fascismo que Albright traduz sob o signo do atavismo é, na verdade, uma ferramenta transformativa. Em simetria, a mesma lógica se encontra em outros projectos político-messiânicos e revolucionários do século XX, como o comunismo soviético, chinês e cambojano e no nacional-socialismo alemão: a violência ritualizada, mas jactante, abrupta, é, nestes campos, um éter que suporta o espírito de um tempo industrializado, eléctrico, um relâmpago de ruptura.

Ora, a violência na tourada é, também, revolucionária, no sentido transformativo: no livro O Processo Ritual, Victor Turner falava do espectador desta estirpe de espectáculos como um ser liminal, à beira da transformação — e, na verdade, pouco existirá de projecção mútua entre espectador e touro no que concerne aos valores que subjazem à tourada enquanto cápsula do tempo; em suma, só a regeneração catártica da violência se encontra, ainda, operativa. Só ela se afirma, pois as restantes dimensões históricas, até religiosas, quem sabe?, que coalesceram o espectáculo desapareceram.

Para ilustrar essa ideia recupero uma imagem do filme Novecento (1976), de Bernardo Bertolucci, sobre a emergência do fascismo. O filme é politicamente comprometido e o retrato histórico que se quer fidedigno apresenta-se, em demasiados aspectos, caricatural; contudo, lembrei-me dele em virtude da infame cena em que a personagem interpretada por Donald Sutherland, um fascista recém-saído do casulo, pendura num cabide com o auxílio do seu cinto um gato que desfaz com uma cabeçada para mostrar aos seus gemebundos colegas a maneira correcta de lidar com os comunistas. Ignoro o grau de conhecimento histórico que o realizador e argumentistas teriam das tradições populares italianas, mas calculo que entre os espectadores mais idosos tenha existido quem recordasse uma velha tradição italiana que consistia, precisamente, em amarrar gatos a postes ou troncos para, de seguida, cabeceá-los até à morte.

Em determinados períodos, esta prática revestiu-se de contornos de concurso e os participantes, de mãos atadas atrás das costas e cabeças rapadas, tentavam não ser gazofilados pelas garras enquanto procuravam esmagar com a testa os crânios dos gatos. Em tempos mais recuados, usavam capacetes pontiagudos, pelo que pode arguir-se, com cinismo, que o novo figurino, de mãos atadas e cabeças nuas, foi um encontro a uma contenda mais justa, de molde a que os gatos melhor mostrassem a sua bravura. Todavia, o que pretendo reter desta memória histórica — que, certamente, tem passado ao lado de quem viu o filme ou se dedica à sua crítica — é o facto de a violência, mesmo quando irrompe por via do atavismo, que neste caso é a tradição miserável de cabecear gatos, tem como horizonte a transformação, como no caso do fascismo de Novecento. A personagem de Sutherland não se vê como um agente a soldo do passado — pelo contrário, despreza-o e intenta ultrapassá-lo.
Não estou, de modo algum, a criar pontes entre fascismo e tourada: estou, sim, a reforçar a noção que a violência é sempre actual, futurista. Mesmo quando parece prisioneira de velhíssimas tradições rurais. Ao contrário do que pensam os detractores das touradas, é precisamente pela via da violência que esta mantém a sua actualidade.

*Artigo publicado originalmente a 20 de Novembro na minha página de Facebook.

Em guerra com o epocalismo



Nas últimas semanas, passada a efeméride do armistício da Primeira Grande Guerra, tem-se difundido a ideia errada que essa foi a primeira guerra "moderna" ou "industrial", quando, na verdade, não foi nem uma coisa, nem outra, muito menos a primeira guerra "mundial".
Quanto à última classificação, essa deverá ser atribuída à Guerra dos Sete Anos, de 1756 a 1763, conflito que, à época, envolveu toda a Europa e as suas dependências ultramarinas, num inédito cenário global (a sátira Cândido, ou O Optimismo de Voltaire, publicada em 1759, tem como pano de fundo este confronto).
No que concerne aos primeiros dois epítetos, pertencerão à Guerra Civil Americana, de 1861 a 1865, na qual figuraram profusamente granadas, metralhadoras, bombas, caminhos de ferro, telégrafos, barcos couraçados e submarinos. Aquilo que esta guerra perde em expansão continental recupera em sanguinolência, pois também aqui se estreou o conceito de "guerra total" (embora sem esse nome, que só apareceria na Primeira Guerra Mundial).
Na realidade, a Primeira Guerra Mundial — espécie de grande guerra civil europeia — deixou ainda bastantes terrenos incólumes que, um pouco mais à frente, outra catástrofe de contornos maciços tratou de terraplanar sem piedade: o impacto — este, sim, autenticamente global — do 'crash' da bolsa de valores americana, cuja reverberação afectou economias que a Primeira Guerra Mundial não ameaçara drasticamente; e, sobretudo, teve um efeito devastador na economia alemã — mais que a obrigação de pagar as reparações de guerra estipuladas no tratado de Versalhes.
Para não complicar demasiado as coisas, nem sequer falei na Guerra da Crimeia, de 1853 a 1856...
 
 

Dez anos de "Lisboa Triunfante"


 
Fez ontem dez anos que foi lançado, no fórum da loja FNAC do centro comercial Colombo, o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência). Passado esse período, penso que o tema principal do livro, em vez de ser a cidade de Lisboa, como sempre considerei, é, na verdade, o tempo — o que é, como nos relacionamos com ele, de que modo somos transformados pela sua acção. Lisboa é a caixa de Petri dessa análise à nossa relação com o tempo; uma análise que, como é sabido por quem leu, se assume com a maior duração temporal possível. Só a Raposa e o Lagarto não vêem o tempo a passar por eles: quem vive nas alturas percebe o tempo com maior velocidade, diz a Física — vivendo num andar superior da existência, ambos vêem o tempo tão depressa, que é como se estivessem eternamente na mesma coordenada. É por isso que tanto gostam de imiscuir-se nos nossos assuntos: o ser humano oferece-lhes realidade.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

A Ignota Ilha Digital; ou, O verdadeiro Fernão de Magalhães que se levante, por favor



Ontem, na abertura oficinal (não se trata de erro: quis, de facto, usar esta palavra, que melhor expressa o aspecto de receituário técnico exudado por esse protocolo), do Web Summit, o presidente da câmara municipal de Lisboa Fernado Medina comparou Paddy Cosgrave, criador do evento, a Fernão de Magalhães, assinalando-o com a oferta em palco de um retrato desse navegador português. Segundo as palavras de Medina, agora Lisboa abre fronteiras por mérito de Cosgrave.

A partir daqui, interessa-me uma observação mais rigorosa sobre o generalizado fenómeno da importância desmesurada que é atribuída às tecnologias digitais — sobretudo quando o seu poder é comparado a uma ruptura epistemológica que, na verdade, não precisou de Internet para coisa alguma: a da navegação astronómica dos seculos XV e XVI, desenvolvida, em principal, por navegantes portugueses, com o auxílio de ferramentas bastante simples. Com efeito, as técnicas e instrumentos que permitiram o descobrimento de novas rotas marítimas durante esse período da expansão portuguesa — e que serviram, de facto, para desencravar o mundo — estão em oposição às tecnologias digitais, que, por mais complexas que sejam as suas cabalísticas linguagens, somente compreendidas na totalidade por engenheiros informáticos e programadores especializados, se cifram em atalhos comunicacionais que, quase sempre, se tornam a si próprios obsoletos. Como se se operasse em smartphones e tablets uma senescência programada da mesma ordem que aquela que delimita a vida útil de outros electrodomésticos menos vistosos, como torradeiras e máquinas de lavar louça.

Em suma, a vantagem do uso das tecnologias digitais está em alcançar de modo mais veloz, imediato e, em alguns casos excepcionais, exacto, tarefas que, no fundo, poderiam perfeitamente continuar a ser realizadas de maneiras analógicas. Inversamente à ruptura epistemológica estreada com o advento da navegação astronómica (ao nivel do impacto que tiveram os desenvolvimentos das concomitantes artilharia móvel e imprensa de caracteres móveis), essa madrinha da Modernidade, o surgimento da Internet ainda não trouxe nenhum mundo novo ao Mundo. E se a estética digital se arroga, por vezes de modo precipitado, de tropos pertencentes a alguma cinemática ficção científica para se apresentar num jaez mais profético (Steve Jobs desempenhava muito bem esse papel de pajé, revelando no ecrã gigante as visões com que a Deusa Tecnologia o havia honrado), esse desiderato desaba no instante em que recordamos que para ir várias vezes à Lua a humanidade não precisou de Internet para nada: bastou-lhe utilizar com arte e coragem ferramentas relativamente simples, tal como bastou aos navegadores quinhentistas. Não há, bem vistas as coisas, um antes e um depois da Internet, do mesmo modo que houve um antes e um depois da roda, um antes e um depois da passagem do cabo Bojador ou um antes e depois de Gutenberg. Tudo o que há é a ágil reprodução de mecanismos que, até há pouco tempo, eram analógicos.

Assim, comparar Cosgrave a Magalhães, navegador que encetou a grande viagem de circum-navegação do planeta (descoberta que faz parte da supramencionada ruptura epistemológica) — e que morreu violentamente no decurso desse empreendimento (uma atitude que se caracteriza por aquilo a que o autor Nicholas Nassim Taleb chamou no seu livro mais recente de skin in the game) — pode consistir numa manobra de marketing que dá nas vistas (o que é completamente legítimo, note-se...), mas falha em estabelecer um verdadeiro vínculo entre uma actividade e outra.

Não é de espantar que assim seja: Magalhães e outros seus próximos orientaram-se por estrelas; estes epígonos hodiernos são orientados pelo estrelato — que até soa parecido, mas é algo muitíssimo diferente.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Veneza inundada - e congelada


 
Pelas imagens que a comunicação social nos vai mostrando pode constatar-se que a pulcritude de Veneza possui fulgurância suficiente para impedir que a água que a alcatifa neste instante não a repasse pelo sentimento trágico que, infelizmente, acompanha este género de infortúnios infligidos pelos elementos.

Há quatro anos, quando estive em Veneza, fotografei este precioso testemunho litografado numa hierática coluna disposta no Sotoportego del Traghetto, situado no distrito de Cannaregio: de contornos dilatados pela erosão, os petrícolas caracteres inscritos na superfície por um veneziano chamado Vincenzo Bianchi contam-nos sobre um extraordinário episódio, datado do Inverno de 1864, em que as águas venezianas congelaram.

O gelo era robusto e extenso o bastante para os venezianos irem a pé até à ilha de San Michele - na qual fica o cemitério de Veneza; onde está sepultado um dos meus heróis literários, o escritor inglês Frederick Rolfe, mais conhecido pelo seu pseudónimo Barão Corvo. A inscrição diz o seguinte [tradução minha]: «Eterna memória, do ano de 1864, do gelo visto em Veneza, que da Fondamenta Nove* a São Cristóvão** iam as pessoas em procissão, como numa avenida. Vincenzo Bianchi, em 1864.»


*Novo Paredão, uma reconstrução do século XVIII do antigo passeio marítimo quinhentista, destruído por uma tempestade.

**A ilha de San Michele consiste na junção artificial de duas ilhas: a antiga ilha de San Michele (onde foi construída no último quartel do século XV a primeira igreja veneziana de tipo renascentista) e a de San Cristoforo della Pace (na qual foi construído o cemitério, já no século XIX).


Sobre forças primordiais



O filósofo inglês John Gray escreve sobre a actualidade:

«Ours is an era in which political ideology, liberal as much as Marxist, has a rapidly dwindling leverage on events, and more ancient, more primordial forces, nationalist and religious, fundamentalist and soon, perhaps, Malthusian, are contesting with each other. In retrospect, it may well appear that it was the static, polarized period of ideology, the period between the end of the First World War and the present, that was the aberration. (...) that beneficent catastrophe will not inaugurate a new era of post-historical harmony, but instead a return to the classical terrain of history, a terrain of great-power rivalries, secret diplomacies and irredentist claims and wars. (...) At the worst, America faces a metamorphosis into a sort of proto-Brasil, with the status of an ineffectual regional power rather than a global superpower. (...) the days of liberalism are numbered. Especially as it governs policy in the United States, liberalism is ill-equipped to deal with the new dilemmas of a world in which ancient allegiances and enmities are reviving on a larger scale.»

Na verdade, estes trechos não pertencem a nenhuma reflexão sobre a actualidade, mas a uma especulação escrita em 1989 e dirigida ao artigo ensaístico intitulado The End of History? que o politólogo americano Francis Fukuyama deu à estampa nesse ano na revista The National Interest - e que serviu de base para a escrita do seu conhecido livro homónimo, publicado em 1992. Quase trinta anos depois, o retrato vertido por Gray em afilada e presciente lucidez é uma silhueta que cai de modo quase perfeito nos contornos da nossa actualidade. Nós somos este mundo descrito em 1989. Face a este retrato límpido e repungente como mercúrio, os imediatos discursos dos dias, sejam eles de que sinal forem, são apenas formas transitórias e insubstanciais que falham teimosamente - quiçá, ideologicamente - em fixar-se no essencial.

(Na imagem, de 1545, Herácles/Hércules assassina Caco, pela mão do artista bávaro Sebald Beham. Um episódio importante do repertório mitológico europeu que, se calhar, vale a pena resgatar para reflectir. Sobretudo, quando se pensa que no século XVI, quando esta imagem foi criada, Herácles/Hércules estava a ser reavaliado pelos humanistas num autêntico sentido greco-romano que havia ficado esquecido: não o de herói poderoso, mas o da personificação da ignóbil força bruta. Assim, a luta entre o patético Herácles/Hércules e o abjecto Caco parece simbolizar um qualquer enunciado difícil de decifrar.)