quarta-feira, 27 de abril de 2016

Os veros "anormais" de Lisboa


O dia em que Carolina e Josefina visitaram o Mosteiro dos Jerónimos. Lembram-se delas? Encontraram-nas em Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense:
«Vamos visitar os volutabros imaginais de Lisboa.
Vamos ver que anormais ela excluiu para a cercania – para os arrabaldes dos anais. Não será tanto etnologia, como reologia, pois falamos de gente deformada que foi repassada e escoada pela memória da história, mas como observar essa memória e essa história? De acordo com os fundamentos da “história total”, propostos por Braudel e, antes dele, por Michelet?
É melhor confiar na diacronia.
É melhor assumir que, tal como astrónomos, estamos a olhar para luzes pré-históricas, emitidas por estrelas extintas.
(…)
Estrelas defuntas como as infelizes irmãs órfãs Carolina e Josefina, as Manas Perliquitetes, que, em meados do século XIX, depois de serem exploradas até à exaustão por um canalha desprezível que lhes deu a ridícula alcunha, tornaram-se injustamente no arquétipo da dondoca, antes de morrerem de fome na maior das misérias.
(…)
Vergonha, amargura, tristeza. Plangências profundas que envolvem os espíritos.
Que cidade é esta?
Esta não é a Lisboa que nos foi prometida à esplêndida portada, feita de jaspe.
Estas não são as personagens castiças do folclore que ela engendra para gazofilar turistas.
Há angústia autêntica aqui. Mensagens de sofrimento real, escrevinhadas no pó. Dor e raiva verdadeiros – espremendo corações nos peitos.»
(SOARES, David, “Terra Incógnita”, in SOARES, David (textos, voz); SANGNOIR, Charles (música), Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense, Seixal/Lisboa, Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012).

terça-feira, 26 de abril de 2016

Redescobrindo a Rua Nova dos Mercadores


No ano passado foi editado um excelente livro sobre a quinhentista Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa, intitulado The Global City. On the Streets of Renaissance Lisbon, editado por Annemarie J. Gschwend e Kate J. P. Lowe (Paul Holberton Publishing). Nesse actualizado e apurado volume pode ver-se, no capítulo "Reconstructing the Rua Nova: The Life of a Global Street in Renaissance Lisbon", de Annemarie J. Gschwend (pp. 101-119), diversas primorosas reconstruções digitais da Rua Nova, feitas por Laura Fernández-González e Harry Kirkham, das quais mostro aqui dois exemplos. Escolhi essas imagens, porque me deixaram emocionado: em primeiro lugar, por consistirem em perclaras janelas para o passado de Lisboa, cidade a cujo estudo tenho devotado tanto labor e amor; em segundo, porque são instantâneos perfeitos da cidade que imaginei quando escrevi os meus romances Lisboa Triunfante e O Evangelho do Enforcado. Baseei as minhas descrições da Rua Nova em iconografia e relatos de época, mas observar como estas recentes reconstruções digitais da Rua Nova se aproximam muitíssimo do que escrevi é comovedor. Assim, para recordação ou descoberta de leitores e amigos, deixo aqui umas transcrições dos meus romances, ilustradas pelas reconstruções digitais da Rua Nova.

«Apesar da abundância de gente que enchera a arena do Terreiro do Paço para ver o combate dos colossos, a Rua Nova dos Mercadores estava pejada de pessoas aquela hora. O mercado da hortaliça e da fruta, mais o do pão, enchiam-se de citadinos que queriam comprar o maior número possível de alimentos antes que os preços voltassem a subir; os novos-ricos saíam e entravam nas joalharias e das ourivesarias, ora para comprar, ora para penhorar. A vozearia de comerciantes e clientes ecoava pelas arcadas harmoniosas que serviam de lojas e sustinham os edifícios de três andares; nas paredes coloridas podia ver-se palavrões e caricaturas garatujadas a carvão e giz. A estrada de terra batida estava atulhada de detritos e emporcalhada pela água suja que as escravas despejavam para o chão, mas em nenhum lado o pivete era pior que na praça e no açougue – era impossível não passar pelas bancadas do peixe e da carne sem ficar sujo de sangue e escamas. Vendilhões ambulantes furavam caminho entre os indivíduos, incluindo os magríssimos mestiços do Norte de África que deambulavam com um pequeno forno de ferro à cabeça e assavam línguas de borrego por três reais e meio; traziam-nas dentro de um saco que levavam as costas, mas também cozinhavam a carne e o peixe que os clientes compravam no mercado. Quando o elefante invadiu a rua ninguém deu por ele até se ouvirem os gritos das primeiras pessoas a serem empurradas.»
(In SOARES, David, Lisboa Triunfante, Parede, Saída de Emergência, 2008, pp. 268-269.)

«Casas de pedra e madeira erguiam-se voltadas para o rio Tejo, tão tortas quanto as próprias elevações sobre as quais se equilibravam; em direcção à linha da água, a pouquíssima distância das muralhas coroadas de líquenes, as ruas estreitas tornavam-se exíguas e a imundície sedimentava-se em estratos graúdos que encapotavam o chão de terra batida. Algumas artérias de maiores dimensões, como a eritematosa Rua Nova, possuíam pavimentos; mesmo assim, se apresentassem uma cota mais elevada, os caminhos calcetados costumavam ser cobertos com areia para que as ferraduras das bestiúnculas não deslizassem nas lajes de pedra. O barulho era ininterrupto: sinos e chocalhos vascolejantes, guinchos das rodas de carroças e carretas, cerca de quarenta mil pessoas a conversar, a berrar e a rir. Baratas saltavam de frinchas. Cães bebiam os próprios reflexos em poças de água choca. Homens agarravam em copos de vinho.
(…)
'A alma é um mecanismo, sujeita aos fins para os quais foi criada', pensou Nuno, ao caminhar sozinho pelas ruas de Lisboa, pela primeira vez em cinco anos. 'Essa é uma verdade que deve ser levada muito a sério.' O Sol forte magoava-lhe a vista, mas que dor tão doce era essa. Como mel – e tão dourada quanto ele. 'Acho que… que vou passar na Rua Nova.'
Encontrou uma nova Rua Nova, pintada de tons quentes e cheia de casas soberbas, suportadas por arcadas que ainda luziam dos polimentos; o pavimento era o mesmo, contudo – sujo como o fundo de um barril. Observou os rostos dos indivíduos como se fossem criaturas de outro mundo: até eram, pois o mundo dele ruíra com a velha rua e com o regedor.
Aquela Lisboa e aquele tempo não lhe pertenciam.
Pôs-se de frente para o sitio onde ficava o seu armazém e descobriu que fora ocupado por uma nova casa. Passou por baixo do arco e olhou para cima: viu um pombo a dormitar em cima de um capitel; a sombra era fresca e o ar, recheado de ruídos cristalinos, cheirava a fruta fresca.
'Como é que posso voltar a ser um pintor?', pensou Nuno, pousando a mão num pilar e sentindo a pedra fria. 'Estive separado da minha mão durante cinco anos…' Olhou para o fundo da rua apinhada de gente. 'Como é que vou recuperar os jeitos dessa vida?'»
(In SOARES, David, O Evangelho do Enforcado, Parede, Saída de Emergência, 2010, pp. 74-75, 337.)




Em meditação



Born April 26, 121 AD, roman emperor Marcus Aurelius was a lover of philosophy of the stoic stirpe and penned (in koine greek) one of my favorite books, The Meditations (circa 175 AD). It's a title I regularly return to, specialy when my abhorrement for the present-time established set of attiudes hits red. (Regrettably, in Aurelius case, the apple did fall far from the tree: his son, Commodus, was a racketeer and a villain.)


segunda-feira, 25 de abril de 2016

Sobre a origem das tatuagens em Lisboa


Fracção integrante da imagética da cultura musical a que pertencem os diversificados universos sonoros que a revista LOUD! referencia são as tatuagens, plasmadas nas peles de artistas, fãs e jornalistas, produtores, editores e promotores, desde logótipos de bandas e reproduções de capas de discos, até desenhos de variadas estirpes que, uns desde os primórdios, outros de adopção mais recente, se tornaram universalmente identificáveis como incumbentes das estéticas e atitudes relacionadas, de maneira geral, com o Metal. Pese a frequência desanimadora de um punhado de lugares-comuns e ideias pré-fabricadas sobre as tatuagens que, ainda, teimam em criar ruído junto da opinião colectiva, é salutar observar-se que nas passadas décadas evoluiu muitíssimo o discurso antropofilosófico que sobre elas discorre, caminhando em consonância com a vulgarização das próprias tatuagens pelo grande público, consequência da sua popularidade entre as mais espectaculares estrelas de cinema e as do mundo do desporto. De mérito desigual, as lojas e as oficinas de tatuadores amadores e profissionais fixaram-se como parte indelével da contemporânea paisagem cosmopolita, assim como da versão açucarada da realidade que é encenada por dezenas de reality-shows, transmitidos pelos canais televisivos. Porém, a esta distância, impõe-se – ou, pelo menos, imponho eu, por gosto e inclinação pessoais – uma inquietação, que é a de especular sobre quais serão as origens das tatuagens nas nossas vistas urbanas portuguesas: a esse respeito, sou capaz de puxar o lustro aos umbrosos limiares históricos das tatuagens em Lisboa, um tema que, certamente, será tão aliciante quanto obscuro.

Os primeiros tatuadores de Lisboa, artistas anónimos que nasceram e morreram nos tempos anteriores ao grande terramoto de 1 de Novembro de 1755, foram viajantes castelhanos que se dedicaram ao ofício algo ingrato da “picadura” e que se fixaram na vizinhança da Ribeira Velha, ao Terreiro do Paço; para utilizar um pionés mais cirúrgico, é válido desvendar que montaram os seus ateliês ao ar livre no adro da quinhentista – e inexistente – Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia: sumptuoso templo de contextura e recorte manuelinos, nessa altura somente secundarizado pelo Mosteiro dos Jerónimos e situado não muito longe do local onde, hoje, na Rua da Alfândega, se pode admirar o soberbo portal da fachada da Igreja da Conceição Velha. (Na verdade, esse trabalho compósito foi montado com porções, arquivoltas e tímpano do portal lateral da Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia, destruída quase totalmente pelo magno terramoto.)

Aí, sentados no muro raso que circundava o adro da igreja, os “picadores”, munidos de agulhas com cabos de madeira e pigmentos feitos à base de pólvora moída, tatuaram os lisboetas de seiscentos e início de setecentos. Penduradas em cravos de galeota pregados nas frinchas da silharia da Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia, encontrava-se em exposição o catálogo de tabuinhas decoradas, pelas quais os clientes escolhiam os desenhos que desejavam ver tatuados: cruzes ornamentais de diversificados feitios ocidentais e orientais, signos-saimões, rostos crísticos, alegorias religiosas, corações incendiados e motivos relacionados com a cultura do mar. Os aristocráticos adoptaram a prática – chique nesse tempo – de serem “picados” nas costas das mãos, entre as bases do dedo indicador e do polegar. Ontem, como hoje, não faltou quem se arrependesse posteriormente de desenhos escolhidos aleatoriamente ou de maneira apressada e esfregava-se furiosamente com sumo de limão a pele “picada” para tentar apagá-los – popular recurso mezinheiro de ineficácia quase completa.

Versáteis, os adros das igrejas fizeram de fórum, mercado, miradouro da vida diária e cemitério: o da Igreja da Nossa Senhora da Misericórdia parece ter sido especialmente predestinado às profissões ligadas à cromofilia, pois fora, desde o século XVI, o principal mercado lisboeta de venda de flores e, depois dos tatuadores o deixarem, em definitivo, acolheu os ambíguos passarinheiros alemães – que aproveitaram os cravos abandonados pelos tatuadores para pendurar as gaiolas, algumas com aves pintadas com pigmentos garridos para passarem por exóticas. Outro tipo de tatuagem, portanto, mas, até este momento, a vocação histórica dessa geografia mantém-se interrompida: o terramoto de 1755 foi o liquidante epitáfio das energias histológicas.

(Crónica publicada originalmente na revista LOUD!​ de Abril de 2015.)


sábado, 23 de abril de 2016

Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor


Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor ou dia do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare - que, pese as teorias das conspirações pugnadas por indivíduos que, na maioria, não têm a mais ténue noção sobre o que é escrever, realmente existiu e foi o autor das famosas peças teatrais que lhe são justamente atribuídas.
Mas sobre a formulação da efeméride supracitada inicialmente, há um interessante erro de percepção; pois se a primeira parte do enunciado consiste em «Dia Mundial do Livro», porque não se redigiu deste modo a segunda?: «e dos Direitos do Escritor». É que autores há de vários tipos, mas só uma determinada estirpe desse conjunto escreve livros: os escritores. Infelizmente, não falta e não faltará quem seja tão escritor quanto uma cadeira se possa denominar ainda de árvore, mas isso são outros quinhentos.
Gostava de esclarecer que na minha relação com os livros não me considero um bibliófilo, porque, no meu livro de estilo, um bibliófilo é, sobretudo, um coleccionador que procura e adquire livros segundo exigências muito específicas: primeiras edições; encadernações de um ou outro feitio ou oficina exclusivos; somente edições diferentes do mesmo título ou apenas edições dos trabalhos de um único autor ou temática. Seja em que caso for, o labor do coleccionismo comporta-se como um percolador, que distingue particularismos restritos. A minha relação com os livros faz-se pela via do conteúdo: eu procuro o conhecimento; o que me interessa num livro não é o livro como objecto, mas a erudição. Assim, gostava de evocar aqui a ideia de que o Dia Mundial do Livro deverá ser de todos os livros, sem quaisquer tipos de cegueira ditados por decíduas modas, cartilhas de fátuos fazedores-de-opiniões ou constrangimentos mercantilistas - desde o livro de bolso ao incunábulo. E escolham com sabedoria, porque não há tempo para ler-se tudo.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Sobre gatos


Em movimentações semiaéreas, impressas em claudicantes carimbadas, os gatos suplantam o cingel gravítico, dardejando que nem intenções interrompidas; suspensos em translúcidos tótemes, sobreexpostos no mesmo pensamento – como meditações de prata numa placa de cobre, negativas e positivas em velocíssima alternância.
Quem modelou de que substância os vorazes sicários das selvas, oxidados em ferrugentas variegações de castanho e laranja e negro, que povoaram os pesadelos dos nossos pré-históricos precedentes? Quem afeiçoou de que espécie desses celerados aqueles pequenos e peludos duendes que, ronronando, nos escondem os sapatos e nos roubam os corações? Cães são lobos bebés, mas gatos não são leões infantis – são um segredo. Do mesmo modo que na mitologia Deus se tornou Cristo para descobrir o que significava ser-se um homem, os gatos são a forma que a cólera da Natureza encontrou para conciliar-se: de não sentir vergonha de ser dócil; para, em preciosos instantes, íntimos e nocturnais, ser capaz de dormir entre as presas.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Quarta sessão do segundo ciclo de Sustos às Sextas




Na próxima sexta-feira, dia 15, às 21H30, na sede da Fundação Marquês de Pombal, ocorrerá a quarta sessão deste segundo ciclo de Sustos às Sextas, evento devotado ao horror sobrenatural, nas suas diversas expressões. Do programa destaco a palestra Como Escrever Uma História de Terror em Dez Lições de António Monteiro e a inauguração da exposição de pranchas originais de banda desenhada sobre terror, comissariada por Geraldes Lino e Bruno Caetano. Divulguem e apareçam!