quinta-feira, 30 de junho de 2011

Um evangelho de cinco estrelas

A revista Os Meus Livros chega este mês ao nº100 e, para comemorar, apresenta uma compilação dos livros que foram premiados nas suas páginas com a classificação de 5 estrelas: entre eles está o meu O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência) - sendo que é o único livro português de literatura fantástica a fazer parte de tão ilustre lista, que reúne títulos publicados desde há vários anos, é obra.

Parabéns à revista pela centésima edição!

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Excelente opinião de leitor sobre "Batalha"...

A Árvore da Vida

Antes de entrar na sala de cinema não sabia o que esperar do filme The Tree of Life, de Terence Malick, e depois de ter saído ainda não sei se gostei ou não. Em última análise, apesar de preocupar-se com o cósmico e com o microscópico, The Tree of Life estaciona confortavelmente a meia-escala: não é a obra-prima que por aí andam a anunciar, mas também não é tão mau quanto o pintam.
O filme é, em essência, sobre criação - em todos os sentidos da palavra, desde os mais pragmáticos aos mais filosóficos. Por um lado, as personagens reflectem sobre a sua relação (sempre falhada) com Deus e questionam os modos como Ele, supostamente, se manifesta no mundo. Por outro, a personagem interpretada por Brad Pitt, um patriarca austero, mas justo, inventor prolífico e músico fracassado (todavia, talentoso), apresenta-se como um reflexo microscópico do Deus cósmico que também inventou muita coisa, desde criaturas e os seus elementos químicos constituintes, e ainda orquestra a chamada "música das esferas" - visões patenteadas em fabulosos planos, realizados sem recurso a CGI, o que é ainda mais espantoso. Contudo, pelo menos para a minha sensibilidade, o caleidoscópio de imagens, cores e texturas oferecido por The Tree of Life não me encantou como se calhar deveria: fosse o texto de outra cepa e o consórcio da palavra com a imagem que o filme tenta cumprir seria de excelência. Contudo, existe aqui um inegável sentido artístico - um poderoso sentido do belo - que é completamente autoral e, nesse sentido, auto-referencial, feito de ideias que Malick já demonstrou em filmes anteriores, como The Thin Red Line: nesse filme, borboletas tumultuam entre soldados aos tiros uns aos outros; e em The Tree of Life uma libélula hesita entre uma multidão de miúdos assombrados por um colega que morre afogado numa piscina.
É com base em detalhes deste jaez que tenho dificuldade em perceber qual é a postura de Malick diante do divino. É crente? É ateu? É agnóstico? O certo é que o filme sabe bastante a ementa born again, sentimento reforçado por alguns trechos muito ilustrativos, mas, sob outro ponto de vista, talvez só as personagens sejam verdadeiramente crentes e o filme possua um pathos ateísta: exemplificado em maior espessura na sequência da morte do Sol. O segmento do impacto do asteróide que destrói os dinossauros e que antecede o relato da vida das personagens humanas faz lembrar a cena de 2001: A Space Odyssey, de Stanley Kubrick, em que o antropóide joga o osso ao ar e, de repente, ele transforma-se numa nave espacial, mas o efeito não tem um virtuosismo análogo. Porém, é provável que seja essa a óptica pela qual este filme deva ser entendido: um épico metafísico, com todo o abstractismo que isso carrega, sobre criação e as relações que existem entre o infinitamente grande e o infinitesimalmente pequeno. É um filme inteligente e que exige pensamento da parte do espectador (todos os filmes deviam exigi-lo, mas, enfim, já se aprendeu que cabe sempre a excentricidades da espécie de The Tree of Life lembrarem ao público que o cinema não foi só feito para se comer pipocas); infelizmente, é, também, um filme derivativo e muitíssimo indulgente com ele próprio, nem sempre sabendo explorar convenientemente o autêntico potencial mítico que vai fazendo nascer a cada plano e a cada sequência.

domingo, 26 de junho de 2011

A Era do Giro


O costume contemporâneo de montar um circo cada vez que se pretende protestar contra aquilo que se acha ser incorrecto é uma prova de que a nossa sociedade, de maneira geral, está cada vez mais infantil e sofre de uma incapacidade crónica de discutir com seriedade seja que assunto for.

Essa regressão mental é, infelizmente, uma das causas do cada vez maior aviltamento do discurso científico, presente nos meios de comunicação e entre as opiniões populares, e também da elevação do emocional em detrimento do racional. Este emocional, claro, em nada se relaciona com as emoções verdadeiras, das quais, como já provou a neurociência, a razão é indissociável, mas com as emoções de pechisbeque que tornam os adultos em autênticas crianças, guiados por memórias atávicas de tempos mais simplórios, mais confortáveis e, qualidade superlativa, mais giros.

O giro é o grande predicado deste período histórico e orienta todas as áreas da vida, desde a moda, os produtos de entretenimento e, ao que parece, a intervenção cívica.

Neste sentido (circense), a intervenção gira, com pinturas, perucas, máscaras e acessórios estapafúrdios, não é diferente da popularucha festa stultorum, a festa dos parvos, em que os campónios se disfarçavam de grandes senhores e tinham o direito de apupá-los em público, enquanto estes se apresentavam em trajes humildes: importa reter o carácter grotesco e humorístico desta festa que, dadas as circunstâncias, poderia ter-se vertido num verdadeiro protesto social - com consequências. Quis sempre o modelo mental das sociedades coevas que ela se mantivesse no registo da paródia e que não se transformasse em revolução.

Ora, quer o nosso modelo mental - contemporâneo - que o giro seja o tom dominante de tudo, fazendo-nos esquecer que ele e a brincadeira são, por excelência, composições do mundo das crianças: elementos que apenas por desvio ou por acidente encontram lugar de nidificação no universo dos adultos. Em suma: hoje tudo tem que ser giro - tudo tem que ser reforçado com as simples expressões dos emoticons. Até as intervenções cívicas. Já passámos o período do camp, tão bem teorizado por Susan Sontag no livro Against Interpretation: hoje vivemos sob o triunfo total do giro. Um giro que nada tem de satírico, de mordaz ou até mesmo de caricatural. É, somente, um giro que comunica com a falta de inteligência e a falta de sentimentos sofisticados.

É nessa classe de giro que observo o fenómeno do ciclismo "nudista" que hoje pedalou pela íngreme Lisboa (de cima para baixo e com bom tempo, está claro). O argumento de que a nudez hoje em dia não aborrece ninguém desvirtua a escolha da própria nudez como gimmick, pois se ela não choca ou não atrai curiosidade para quê o seu uso? E em que modo ela se relaciona com a mensagem de que andar de bicicleta é melhor para a saúde dos indivíduos? Não se relaciona: é, ao estilo da festa stultorum, um arremedo de protesto que, ao fim e ao cabo, não tem como objectivo mudar o statu quo, mas folgar durante uns momentos. Quanto ao pensamento que lhe subjaz, de que andar de carro na cidade é «obsceno» [diziam alguns cartazes dos ciclistas que «obsceno é o trânsito»] e imoral, só tenho a dizer que ele se inclui no ecologismo de pechisbeque de quem se habituou a olhar para o planeta como sendo um berçário cheio de peluches engraçados e que não pensa, verdadeiramente, nas consequências de um retrocesso tecnológico. Um protesto credível seria pedalar no sentido inverso, de baixo para cima, e no Inverno. Mas esta patetice inscreve-se na visão diabolizada da intervenção humana e tecnológica no ambiente de que a nossa sociedade contemporânea padece. Uma sociedade que já sofre os efeitos da, também gira e verde, recusa de vacinar as crianças e dar-lhes medicamentos químicos, alegando que não são "práticas naturais".

Vacinas? Aspirinas? Xaropes? Essas invenções que só servem para nos pôr doentes e dar dinheiro às indústrias farmacêuticas? O sangramento é que é bom: com uma gamela e uma lanceta, flebotomize-se sempre que se começar a ter febre ou a espirrar.

Não é poluente e promove o contacto com os mecanismos secretos do corporal e do espiritual.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Excelente crítica a "Batalha"...


...assinada por Safaa Dib, no número dez da Revista BANG! (este número, com a versão integral desta crítica, já está disponível nas lojas FNAC):

«Há livros que conseguem atingir a virtude da universalidade nas suas narrativas. (...) E Batalha de David Soares é certamente um desses livros (...) David Soares tem provado ser uma das vozes portuguesas mais autênticas não só do género fantástico, mas de toda a literatura portuguesa (...) este pequeno maravilhoso romance de David Soares guia-nos das trevas para a luz, ensinando ao leitor a mais valiosa lição de todas: o que fica sempre é a Obra, a Dádiva.»

Excelente crítica a "Batalha"...


quinta-feira, 23 de junho de 2011

Sobre os livros e a vida


A vida tem o mesmo problema que uma transmissão noticiosa em directo para a televisão: a falta de edição.

É, em essência, material em bruto - e sem sentido, a não ser aquele que lhe é, mal ou bem, colocado a posteriori por quem vive. Em oposição, uma notícia editada é, se for realizada com êxito, uma peça cirúrgica sobre a vida. É algo esclarecedor, que faz pensar. Quando são bons, os livros são ainda melhores: não só têm sentido, como têm uma visão. E essa visão, se for escrita com sofisticação, com alcance, pode mudar o mundo. Por conseguinte, nós, escritores, somos (ou deveríamos ser) intermediários entre a vida, entre material em bruto, tão sujo e ineficaz quanto minério, e o papel, palimpsesto para visões refinadas como aço ou cristal na fornalha fervente da mente.

Aqueles que dizem que o conhecimento livresco é inferior ao vivido não sabem do que estão a falar: onde é que se pode aprender como morre uma estrela, numa explosão tão intensa que observá-la de perto daria a impressão de demorar séculos a fio, a não ser num livro? Onde é que se pode ver borboletas com asas feitas de pão-de-forma (já barradas com manteiga), a não ser num livro? E onde é que se pode encontrar o suposto salvador de toda a humanidade, cingido e sangrante, a não ser num livro? Basta abrir um livro para dar luz à casa.

Os livros são vida editada pelos escritores. Já a vivemos, já fomos enganados pelas suas emboscadas, e apresentamos a nossa visão sobre ela. As nossas ideias.

As ideias, claro, não existem. Não se pode tropeçar numa ideia.

Mas só elas são capazes de mudar o mundo.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Excelente crítica a "Batalha"...

Cidade é Natureza

O facto de que existem pouquíssimos fósseis de hominídeos idosos e de meia-idade deveria ser uma pista para a maioria dos indivíduos calcular que a vida do campo está muito longe de ser o estado ideal da nossa espécie. Não é à toa que o reality show que coloca um grupo de pessoas no meio do mato para os espectadores verem como elas se comportam se chama Survivor. Até nas nossas cidades contemporâneas se pode morrer de frio ou de calor, em poucas horas, se, por uma razão ou outra, dermos connosco desprotegidos face ao clima das estações. O mundo é um local que coloca todas as criaturas à beira do perigo ou da morte a todos os instantes e, desde que a vida germinou, extinguiu 99,9% de todas as espécies que o povoaram. O mundo não é a maternal biosfera que o pensamento romântico contemporâneo nos quer fazer acreditar que é: é, apenas, um habitat - hostil, cheio de doenças, predadores e parasitas. Com efeito, o habitat natural - ideal - do homo sapiens sapiens - aquele em que, de facto, ele (nós) se desenvolveu e teve capacidade de delinear estratégias de sobrevivência, como a agricultura e a escrita - é a cidade.

Enquanto espécie, não nos podemos desentrelaçar da cidade (e das suas versões beta, claro - a aldeia e a vila).

Por isso é com alguma estupefacção que vejo aquilo que só posso apelidar de beato deslumbramento diante da terceira edição do evento Mega Piquenique Modelo que teve lugar no centro de Lisboa, e que transformou a Avenida de Liberdade numa quinta, com animais, legumes e frutos. A iniciativa, em si, não me aquece, nem arrefece, mas penso que, de modo indirecto, fortalece uma ideia popular, e errada, de que a cidade é intrinsecamente imoral, enquanto que o campo, por estar mais perto de uma concepção "disneyesca" da Natureza, é profundamente moral - e o estado dourado que perdemos com a queda citadina da graça. Qualquer indivíduo que seja um leitor mediano de História é capaz de perceber o quanto essa criação provinciana está errada. Não só o nosso habitat natural é a cidade, como sem ela não seríamos capazes de viver: desde que nos erguemos para caminhar em marcha bípede, e aprendemos a usar ferramentas, que modificamos o mundo à nossa volta para garantir a nossa sobrevivência e isso, na verdade, não é nenhuma desgraça, mas o comportamento natural da nossa espécie. A cidade é uma das nossas estratégias mais antigas - e aquela que, ao contrário do campo, nos deu mais frutos.

Até a agricultura biológica, que é servida hoje nos meios de comunicação como panaceia para os diabolismos do mundo industrializado, é um mito: a agricultura é, sempre foi e sempre será artificial.

Nenhumas das espécies vegetais cultivadas pelo homem se assemelham minimamente às versões selvagens das quais descendem e foram transformadas por tentativa e erro pelos nossos primitivos antepassados de maneira a darem mais grãos, mais frutos e medrarem em solos desnutridos. Na realidade, nenhum cereal da nossa dieta é capaz de sobreviver sem a mão humana - e nenhuma espécie de cereal contemporânea, consumida hoje (seja trigo, milho ou arroz), tem mais de sessenta ou setenta anos: são versões desenvolvidas por cruzamentos genéticos, inventadas em laboratório para serem mais férteis, mais rentáveis, mais adaptáveis a condições adversas e, também, mais nutritivas. Sem o processo Haber-Bosch, inventado em meados do primeiro decénio do século passado, e usado para criar os constituintes essenciais aos fertilizantes contemporâneos, como nitrogénio e sais amoniacais, não haveria agricultura - "biológica" ou outra!... - que sustentasse a nossa população, já que são esses fertilizantes que permitem rentabilizar o espaço cultivado: menos espaço que dá mais colheitas por ano. Se revertêssemos para a agricultura "biológica" (primitiva) precisaríamos do dobro ou do triplo do espaço para colher as mesmas quantidades - e isso, sim, é que seria uma ameaça para as áreas florestais e para as espécies animais que nelas habitam.

A cidade é Natureza: é tão natural quanto uma floresta, porque o homem é uma criatura natural. É, também, tal como a própria Natureza, algo que continua a evoluir. Precisamos de optimizar ainda mais as nossas cidades, que são o nosso repositório de memórias, de cultura. Mas isso não se fará revertendo a cidade para um Ilídio rural, para uma eutopia pastoril, sem carros e sem habitantes, que nunca existiu a não ser nos produtos de entretenimento.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Entrevista com David Soares sobre "Batalha"

A entrevista sobre o meu novo romance Batalha, feita com perguntas enviadas por email pelos leitores. (Obrigado Gisela, Nuno e Ana pela inestimável colaboração.)

Batalha é uma edição Saída de Emergência. Com ilustrações do artista Daniel Silvestre da Silva.

Vencedor do passatempo "Batalha: Perguntas e Respostas"

O passatempo Batalha: Perguntas & Respostas foi um sucesso: recebi quase cinquenta perguntas e, como é óbvio, tive de escolher algumas das mais interessantes para o vídeo com a entrevista que publicarei entre hoje e amanhã. Agradeço a participação de todos os leitores que enviaram as suas questões. Fica a promessa de que esta será uma iniciativa a repetir num futuro próximo.

O vencedor deste passatempo (sorteado entre os autores das perguntas escolhidas para o vídeo) é o leitor Miguel Leal: Parabéns!

A entrevista em vídeo com as vossas perguntas será publicada nas próximas horas.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Vinte páginas de "Batalha" disponíveis para leitura



«Uma fábula não só de alegorias, mas sobretudo de humanização, sensibilidade e inteligência; tem cenas muito comoventes a par de outras muito duras, tudo doseado com a arte de quem conhece os segredos da matéria alquímica que é a linguagem falada. Todo o romance é um espectáculo envolvente e remata com chave de ouro com um final devastador, um final maravilhoso no melhor sentido da palavra.»
António de Macedo (escritor e cineasta)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

"Batalha": esta sexta-feira nas livrarias


Batalha (Saída de Emergência), o meu novo romance, chega às livrarias na próxima sexta-feira.

Tal como a sinopse anuncia, consiste num romance em que o fenómeno religioso é observado pelo ponto de vista dos animais. Além disso, é um romance hermético, alquímico, e, em muitos pontos, uma alegoria maçónica que se inscreve na minha reflexão sobre esses temas que tenho vindo a desenvolver nos meus trabalhos anteriores.

Batalha é, também, um romance sobre linguagem: um romance de palavras, em que as palavras têm, de facto, importância.
É um livro do qual me orgulho imenso. Descubram-no, a partir da próxima sexta-feira.
Com ilustrações do artista Daniel Silvestre Silva.
«Tal como a rancidez se regozija com o ar desprotegido, também a nudez vulnerável é o estado espontâneo da cópula. Nus, todos os bichos são lesáveis e a vulva é uma mitene que só cobre o pénis, deixando o resto do corpo ao capricho do contágio — neurotomias naturais que a todos deixam indefesos. A reprodução é regular, sem sobressaltos, como uma colónia de fungos rompendo a casca grossa dos carvalhos; e, em jeito de alcalóide amanitário, o amor escorre pelos troncos cerebrais abaixo, como vinho entornado: o símbolo universal da alegria, da sorte. O sal desperdiçado, símbolo universal da tristeza, do azar, somos nós todos, nos começos das nossas vidas: brutos, informes, impuros, sem o conhecimento das relações sensuais e da morte. Precisamos, por isso, de ser ungidos, purificados e diluídos com vinho — com sexo e deterioração — de modo a crescer, a amadurecer, a salinar. Só então podemos ambicionar a ser completos, adultos, mas Batalha, repudiando a oferta de Caldaça, estaria sempre perdido, como um infante anquilosado ao crisol, ao colo do útero. Conjuctio do macho e da fêmea — estado principal da Grande Obra, na qual toda a gente participa ou assiste — que gera a Luz: fetos incandescentes, sangrantes e vermelhos como o Sol, que choram e, com esse plangente anúncio, dão início à contagem do tempo — dos seus tempos, porque não existem outros.
O tempo é apanágio da matéria viva — os mortos não precisam dele.
Os mortos não precisam de nada.
E, por mais que fingisse estar morto, no interior do profundo buraco acabado de escavar, com a intenção de ser a sua sepultura, Batalha podia sentir a vida que ainda lhe pulsava no pénis turgescente, nas veias urziformes e na língua ressequida.
Do que é que precisava?»

Fernando Pessoa e Aleister Crowley discutem a Batalha de Alcácer-Quibir


«'Sim, lembro-me do poema que me enviou: Louco, sim, louco, porque quis grandeza. Caro Pessoa, se não soubesse o que sei até concordava consigo, não duvide.'
'Sou todo ouvidos.'
'Toda a informação que encontrei sobre D. Sebastião é factual, como lhe disse, contudo os factos servem a imaginação, se o observador for criativo na interpretação. Não vou discorrer sobre todos os pontos que me levaram à conclusão que lhe vou apresentar. A verdade é... bom, como dizê-lo? Já viu alguma vez o terreno de Alcácer-Quibir?'
'Não. Nunca estive no Norte de África, como lhe disse.'
'Muito bem, então eu descrevo-lhe. É um buraco. É um autêntico buraco.'
'Como?'
'Um funil de pedra e areia do qual apenas com muito esforço um exército conseguiria sair vitorioso depois de ser cercado como foi o português. Ouça: o próprio Sebastião viajou extensivamente em busca de um local ideal para a batalha onde desafiaria o rei Maluco. Foi ele quem quis a guerra e não o Maluco; rejeitou todas as tentativas de diplomacia intentadas por ele e pelo seu tio, Filipe II de Espanha. Foi ele quem escolheu o terreno de Alcácer-Quibir. Só ele e mais ninguém.'
'Sim, era obstinado, teimoso.'
'E onde acaba a teimosia e começa a loucura, senhor Pessoa? Oh, este louco quis grandeza, sim, mas não aquela que o senhor pensa! No dia da batalha, D. Sebastião anunciou que só iria combater à tarde e foi um capitão, um soldado espanhol chamado Aldana, que o fez mudar de ideias.'
'Sim, mas há quem diga que foi mesmo por causa dessa decisão que a batalha foi perdida. Não tiveram tempo para se preparar.'
'Qual tempo, senhor Pessoa! Começada a batalha, D. Sebastião esqueceu-se de emitir a ordem de combate. Esqueceu-se? Como é que isso é possível? Terá pensado que estava num salão de baile à espera que o convidassem para dançar? Uma ilusão difícil de visualizar com toda a gritaria, o pó e o relinchar de cavalos. A impavidez obrigou o Duque de Aveiro e D. Duarte de Meneses, mais os combatentes dos terços, a agir por conta própria. Em poucos minutos, a batalha transformou-se num massacre. Dentro de um buraco, senhor Pessoa, quando a saída está tapada, só há uma fuga possível: para baixo!'
'Está a dizer que ele foi um péssimo estratega, que não sabia comandar. Que era estúpido ou atrasado mental como lhe chamou o escritor António Sérgio.'
'Pelo contrário, senhor Pessoa! Pelo contrário. O homem foi um génio! Um génio da estratégia, frio e calculista. Veja o meu braço! Até estou com pele de galinha.' Arregaçou a manga da camisa e mostrou-lhe.
'Senhor Crowley!', disse Pessoa, surpreendido. 'Que se passa?'
'Estou excitado! Excitado por pensar no génio de tudo aquilo. Na audácia! Na coragem!'
'Pensei que a sua opinião era outra.'
'Ainda não percebeu? D. Sebastião escolheu Alcácer-Quibir porque o terreno era um buraco. Ele reuniu um exército mal treinado. Ele obrigou esse exército a dar uma volta enorme desde Portugal até ao local da contenda em África, ignorando o caminho mais curto que, ainda por cima, era o mais seguro, esgotando as energias dos soldados sem necessidade nenhuma. Ele quis adiar o combate para a tarde, como lhe sugeriu o xerife berbere caído em desgraça, uma ideia que, a ser realizada, iria dar tempo precioso ao adversário. Estas coisas, senhor Pessoa, as coisas que ele fez... Não se fazem! Lembra-se do xadrez? Para ganhar uma partida de xadrez é preciso ser-se objectivo. Ser-se objectivo! é muito simples.'
'Está a querer dizer que ele queria perder a batalha? É diabólico!'
'É genial! O homem queria perder! Ele estudou tudo ao pormenor para perder. Quando se percebe isso, a sua estratégia torna-se brilhante.'
'Mas porquê perder? Acho essa conclusão infame. Que tinha ele a ganhar com isso?'
'Para se encaixar ele mesmo nas profecias do Encoberto? Aquelas que contam como o rei é derrotado em batalha contra o inimigo para andar perdido durante uns anos antes do regresso triunfal?'
'Medonho! Acredita mesmo nisso?'
'Claro que não! Acha que um homem que estuda e planeia uma derrota destas com anos de antecedência ia confiar na sorte? O objectivo dele foi outro, senhor Pessoa. Muito mais medonho!'
'Qual?'
'A derrota em Alcácer-Quibir foi um sacrifício de sangue para carregar de energia mágica um poderoso encantamento!'»

Excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), sobre o encontro de Fernando Pessoa com Aleister Crowley. Parabéns, Fernando! Até um dia destes.

domingo, 12 de junho de 2011

Breve nota sobre os Santos Populares de Lisboa


No número 15 da Rua de Santos-O-Velho, em Lisboa, encontra-se a igreja paroquial homónima que durante três séculos guardou as relíquias dos três principais santos mártires da cidade: Veríssimo, Máxima e Júlia. Ainda podemos vê-los, junto à entrada da igreja, num baixo-relevo em que se apresentam com bastões nas mãos, invés das mais comuns palmas de martírio (já se verá porquê).

Nascidos em Lisboa, os três irmãos foram martirizados em 305, durante o domínio romano da Península Ibérica, a mando do Imperador Diocleciano, por terem recusado a obrigação redigida em edital de sacrificarem animais aos deuses pagãos. Uma vez prisioneiros, sofreram os martírios da fome, do potro, dos ferros incandescentes e, amarrados pelos pés às caudas de cavalos, ainda foram arrastados pelas ruas de Lisboa; depois de lapidados, os corpos foram decapitados e atirados ao Tejo, perto de Almada, com pesos amarrados aos pés. Independentemente disso, conta-nos o martirológio, os corpos deram à margem de Lisboa (antes dos barcos dos algozes regressarem), na zona em que hoje se ergue o Palácio dos Marqueses de Abrantes, a actual Embaixada de França.

Daí o topónimo Santos dessa área que, diz-se, começou por ser cumeada por uma humilde ermida, levantada por piedosos em memória dos três santos martirizados, e transformada posteriormente em igreja por D. Afonso Henriques após a conquista de Lisboa. Quanto a ser Santos-O-Velho, isso relaciona-se com o facto de D. João II ter mandado construir, para os lados de Xabregas, na orla oriental de Lisboa, um convento maior que albergasse as comendadeiras da Ordem de Santiago, cujo número elevado já tornava pequeno o seu convento de Santos. Este, doado aos freires de Santiago da Espada (os espatários) por D. Sancho II, passou quase de imediato a ser ocupado em exclusivo pelas mulheres, filhas e viúvas desses cavaleiros, convertendo-se no Mosteiro das Comendadeiras da Ordem de Santiago. Ora, desocupando esse velho e exíguo convento de Santos, em 1490, as freiras passaram para o novo e espaçoso convento de Xabregas (possui o maior claustro da Península Ibéria...), levando consigo as relíquias dos três santos mártires e, também, o topónimo. É pela influência da Ordem de Santiago que Veríssimo, Máxima e Júlia aparecem trajados à moda de São Tiago, o peregrino, no supra-mencionado baixo-relevo que se encontra sobre a entrada da igreja paroquial de Santos-O-Velho.

As referências às vidas e ao martírio de Veríssimo, Máxima e Júlia são escassas: conhece-se, por exemplo, o relato contido num códice pertencente ao acervo da biblioteca pública de Évora (o CV/1-23d) e a menção descrita no martirológio do monge Usuardo.

No meu romance O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010), Veríssimo, Máxima e Júlia são três prostitutos que, depois de mortos - martirizados... - pelo pintor Nuno Gonçalves, alcançam a santidade através do culto popular que lhes é prestado pelos mais pobres.

Imagem: Veríssimo, Máxima e Júlia numa pintura do artista maneirista português Garcia Fernandes (meados do século XVI).

sábado, 11 de junho de 2011

Breve nota sobre as Marchas Populares


Concurso folclórico que, goste-se ou não, caracteriza Lisboa, as Marchas Populares, em que diversos bairros da cidade competem entre si mediante grupos de amadores que apresentam na rua coreografias de inspiração castiça, não têm, de facto, nenhuma tradição popular anterior à sua criação, em 1932; ano em que pela primeira vez esse cortejo se realizou. Apenas três bairros foram a concurso nessa altura (Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique), mas mais três (Alfama, Alcântara e Madragoa) juntaram-se-lhes somente a título participativo. Os seis grupos desfilaram pelas ruas de Lisboa e terminaram no Parque Mayer, em frente ao Teatro Capitólio.

Antes das Marchas Populares, existia o costume da chamada Marcha ao Flambó, aportuguesamento da francesa Marche aux Flambeaux: pequeno cortejo brejeiro, sem nenhuma encenação ou orientação temática que encarnasse as características ditas dos bairros lisboetas, como as marchas intentam. Especula-se que talvez tivesse sido um resíduo da passagem dos militares franceses no nosso país, aquando das invasões napoleónicas, que costumavam organizar essas coreografias "vadias", com tochas acesas nas mãos. Por outro lado, a Festa do Entrudo também era muitíssimo popular, e nos tempos da Primeira República os desfiles carnavalescos que tomavam de assalto o Rossio surpreendiam pela sofisticação dos carros e das máscaras. Até que ponto a Marcha ao Flambó e a Festa do Entrudo, festejadas com balões de papel, flores, arcos e fogos-de-artifício, influenciaram, realmente, a génese das Marchas Populares é conjectural, mas, com efeito, antecederam-lhes e possuem uma estética similar.

O pai das Marchas Populares foi o cineasta lisboeta José Leitão de Barros, que aproveitou a existente tradição popular da festa de Santo António - com os garridos arraiais, lá está! - para lhe adicionar uma espécie de selo folclórico. Uma das características das autocracias de direita (conservadoras), é, precisamente, a cristalização no presente de um passado romântico, rural e fictício, de modo a interromper o futuro, horizonte que é observado pela elite com a maior das desconfianças. Todavia, as Marchas Populares nunca se entrosaram com harmonia no sonho rural do regime que lhes esteve na génese, em virtude do carácter bairrista e cosmopolita que as anima: mais que um veículo propagandista, transformaram-se, em exclusivo, numa festa de toda a cidade.

Íntimo de António Ferro (o criador do Secretariado da Propaganda Nacional), Leitão de Barros imaginou as Marchas Populares como sendo a resposta a um desafio que lhe foi lançado por Campos Figueira, director do Parque Mayer, que também patrocinou a produção do evento. Na altura, Barros mantinha o cargo de director do Diário de Notícias, no qual trabalhava o jornalista e olissipógrafo Norberto de Araújo (co-fundador do grupo Amigos de Lisboa, do qual também foi sócio fundador o artista Almada Negreiros), que viria a ser autor das letras mais conhecidas das Marchas Populares (com músicas de Raul Ferrão), como Lá Vai Lisboa, Olha o Manjerico, Marcha dos Centenários e Noite de Santo António.

Enquanto escritor e leitor da história de Lisboa, acho que as Marchas Populares não comunicam com a Lisboa real, mas com a Lisboa que temos vindo a construir, com base em diversos produtos culturais e de entretenimento.

Com as devidas distâncias, acho que as Marchas Populares olham para Lisboa, tal como as quimeras de Notre-Dame olham para a Idade Média. Com efeito, pouquíssimos saberão que as magníficas quimeras da balustrada de Notre-Dame são uma invenção do século XIX, criadas pelo arquitecto Eugène Viollet-le-Duc. São, pois, tótemes oitocentistas que querem ser ainda mais medievais que as gárgulas e os santos esculpidos nos séculos XII e XIII; períodos em que a novíssima fachada da catedral não ostentava quimeras nenhumas. Em síntese, elas são a nossa imagem (contemporânea em absoluto) sobre aquilo que a Idade Média deveria ter sido, mas não são, nem comunicam sequer, com a verdadeira Idade Média. São assim, as Marchas Populares de Lisboa: uma quimera sobre aquilo que achamos que foi - ou achamos que ainda é - a tal Lisboa popular e castiça.

Imagem: Marcha Popular de Lisboa, em meados do século passado.

Excelente opinião sobre "Lisboa Triunfante"...


sexta-feira, 10 de junho de 2011

Breve nota sobre Camões


Se a data de nascimento de Luís Vaz de Camões ainda é incerta (1517? 1524?), a historiografia camoniana é mais ou menos consensual no que concerne à data da sua morte: 10 de Junho de 1579; sete anos depois da publicação da primeira edição de Os Lusíadas. Na realidade, é sempre mais problemático deixar uma data de morte em aberto que uma de nascimento.

Camões, como é sabido, morreu na miséria, de corpo deteriorado, e foi enterrado sem cerimónias no adro da antiga porta principal da Igreja de Sant'Anna. Quinze anos depois, aparentemente alguns dos que conservavam memória do seu nome, por iniciativa de D. Gonçalo Coutinho, lá trataram de encontrar uns restos mortais que acharam ser dele e fizeram-lhes sepultura em outro local da igreja sobre o qual, em 1729, se construiu um novo coro que sobreviveu ao grande terramoto de 1755. No dia 8 de Junho de 1880, foram finalmente levados para a Igreja de Santa Maria de Belém (Mosteiro dos Jerónimos), os ossos encontrados vinte e seis anos antes em Sant'Anna pela comissão responsável para o efeito. Muita especulação envolve não só o enterramento original de Camões, como a identidade fidedigna das ossadas conservadas em Belém.

Os relatos históricos disponíveis sobre estes episódios apresentam-se discordantes. Um dos mais interessantes, embora eu não avance com a hipótese de que se trate do mais credível, é A Verdade Acerca dos Ossos de Luiz de Camões, escrito pelo padre Sebastião de Almeida Viegas, antigo capelão das freiras de Sant'Anna. Neste precioso volume, editado em 1893, o sacerdote, que testemunhou em primeira mão as operações da comissão de 1854 e respectivos desenvolvimentos, mostra ao leitor que não está convencido de que as ossadas enviadas para Belém sejam as de Camões, afirmando que essas ainda estão em Sant'Anna. Os peritos forenses da comissão de 1854, por exemplo, examinaram a arca em que foram depositados todos os ossos encontrados no local, incluindo o famoso esqueleto guardado no cesto de vime, e concluíram que pertencem a diversos homens e mulheres, cada qual marcado por maleitas diferentes. Eu também acho que as ossadas de Camões ainda estão em Sant'Anna e até tenho dúvidas de que aquelas encontradas por D. Gonçalo Coutinho tivessem sido as do poeta. Passados terramotos, repavimentações e reconstruções, será muitíssimo improvável que venham a ser encontradas.

No que diz respeito à fisionomia de Camões, esse é outro mistério, embora seja também consensual a ideia de que o retrato pintado por Fernão Gomes (talvez entre 1573 e 1575) possa ser aquele que possui um maior grau de verosimilhança. Até se descobrirem mais informações ou até outras representações, terá de aceitar-se esta tese que, entretanto, já granjeou tantos e credíveis cultores. Com efeito, a nossa percepção de Camões precisa de um rosto: a ser, de facto, o pintado por Fernão Gomes, ficamos com a certeza de que é um excelente trabalho.

Quanto ao apelido Camões, ele entra no nosso léxico no século XIV com Vasco Pires de Camões, um nobre galego que se refugiou em Portugal. Foi, provavelmente, o bisavô de Luís Vaz de Camões. A etimologia do apelido talvez se relacione com uma freguesia galega chamada Santa Eulália de Camós, pronunciada camones pelos populares, o que reproduz a sua grafia medieval ducentista. Também não se pode ignorar o nome hispânico calamón, do qual deriva o catalão galmon e o nosso camão: todos nomes para o galeirão comum, ave aquática, aparentada com a abetarda, que habita junto aos rios. Ainda no século XVIII se dizia camão em vez de galeirão; não obstante a palavra galeirão existir desde o século XIII, sem dúvida com outro significado.

Resta esclarecer que camões ainda ganhou o significado de zarolho, por culpa do acidente que feriu um dos olhos do poeta: acidente que consistiu no disparo aziago de um estilhaço de uma peça de artilharia - quase de certeza, um pequeno canhão, embora se especule quanto às circunstâncias do acidente: se no Norte de África ou em Lisboa.

O dia 10 de Junho ainda foi durante muito tempo chamado de Dia de São Camões.

Imagem: Retrato Pintado a Vermelho, de Fernão Gomes (1573-1575?).

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Sardinhada

Agora que vêm aí os Santos Populares é que vai ser cá uma sardinhada! Uma sardinhada e pêras! (As pêras estão fora da imagem.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Tertúlia "histórias da História"

No sábado passado (dia 4 de Junho), participei numa tertúlia literária na Festa do Conto (Lourinhã), intitulada histórias da História: Verdades e Ficções, na companhia da historiadora Irene Flunser Pimentel e de João Morales, director da revista literária Os Meus Livros.
Moderada por João Morales, a conversa fluiu com entusiasmo e sabedoria, esclarecendo equívocos e influenciando novas questões, no que concerne ao cruzamento da história factual com a ficção mais especulativa. Agradeço ao João, à Irene e à organização do evento por uma excelente tarde, passada a conversar sobre temas que adoro.