terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Neonazismo na cultura popular no aniversário dos setenta anos da libertação de Auschwitz


O boçal Giorgio Tsoukalos, suíço de ascendência grega conhecido pela maioria do público por ser um dos difusores mais fanáticos da Teoria dos Antigos Astronautas e da Teoria da Génese Extraterrestre (conjuntos sincréticos de ideias eveméricas que, desde meados dos anos cinquenta do século passado, têm alastrado das fímbrias recônditas de uma certa cultura marginal para o centro da cultura de entretenimento popular, em injecções de doses desiguais, mas num ritmo constante), apresenta um novo programa televisivo, transmitido nestes dias pelo Canal História, intitulado In Search of Aliens, no qual, em dez episódios, reitera, a título individual, hipóteses e conceitos mostrados colectivamente na anterior série televisiva Ancient Aliens, em que também participou, juntamente com outros defensores desses disparates. Um dos episódios de In Search of Aliens transmitidos ontem, por volta das vinte e duas horas, teve como título Nazi Time Travelers (Viajantes Temporais Nazis).

É com desconforto que evidencio a infelicidade em que consiste o facto deste tipo de lixo televisivo ter sido transmitido na véspera do aniversário dos setenta anos da libertação do campo nazi de extermínio de Auschwitz pelas tropas do exército russo, a 27 de Janeiro de 1945 (hoje, o Dia Internacional de Lembrança do Holocausto). O problema principal de programas do jaez de Nazi Time Travelers é a ignorância cabal que os seus produtores têm (ou aparentam ter) sobre a origem das ideias recauchutadas que apresentam: neste caso, ideias de repreensível propaganda neonazi, desenvolvidas a partir do final da Segunda Grande Guerra por ficcionistas e ocultistas nacionais-socialistas ou de pendor nacional-socialista, como Savitri Devi (pseudónimo da escritora francesa, de ascendência grega, Maximiani Portas) e o chileno Miguel Serrano, autores de, respectivamente, The Lightning and the Sun (1958) e da trilogia El Cordón Dorado: Hitlerismo Esotérico (1978), Adolf Hitler, el Último Avatara (1984), Manú: "Por el Hombre que Vendra" (1991). Porém, Devi e Serrano são, somente, dois dos mais conhecidos e influentes propagandistas de ficção ocultista neonazi, um género abjecto que mistura esoterismo, ficção científica e pseudo-história e cuja origem pode ser traçada, por exemplo, a partir da publicação dos romances do pseudo-arqueólogo alemão Edmund Kiss, como Das gläserne Meer (O Mar de Vidro), de 1930, ou Die letzte Königin von Atlantis (A Última Rainha da Atlântida), de 1931, e dos contos que o engenheiro suíço Erich Halik publicou na primeira metade dos anos cinquenta do século passado na revista ocultista austríaca Mensch und Schicksal (Homem e Destino), nos quais surge pela primeira vez o mito do "sol negro" aliado à SS, assim como os discos voadores da SS.
A concepção de discos voadores nazis e suas bases secretas nos pólos Norte e Sul influenciaram toda a produção dos autores neonazis ou simpatizantes do nacional-socialismo que, no decurso da segunda metade do século XX, desenvolveram esses mitos em cosmogonias de pacotilha, mistas de messianismo hitleriano, teorias das conspirações e pseudo-história. Uma vez publicadas, as ideias, por mais marginais que sejam, encontram maneiras de alcançar audiências que estão além do público pretendido pelos autores e, perdida a dimensão original que robusteceu as suas criações, tornam-se algoritmos para novas semânticas. É o caso dos condenáveis delírios sobre discos voadores e máquinas do tempo nazis que, hoje, são destiladas pelos defensores da Teoria dos Antigos Astronautas em programas de grande audiência, como Ancient Aliens e In Search of Aliens: anunciadas sem contextualização e sem quaisquer alusões quanto às proveniências neonazis, elas adquirirão, certamente, cunhos de credibilidade para muitos espectadores que não estão, como é óbvio, familiarizados com o mundo subterrâneo desta espécie de contracultura e que se deixam fascinar pelo sensacionalismo que lhes serve de Cavalo de Tróia.

O conteúdo de Nazi Time Travelers é, especialmente, lamentável na promoção da noção - errónea - de que a tecnologia nacional-socialista de guerra era mais avançada que a dos Aliados e que somente por um azar indefinido é que o III Reich não ganhou a Segunda Grande Guerra. O facto é que a tecnologia nacional-socialista de guerra e a ciência nacional-socialista eram inferiores às dos Aliados, precisamente porque eram nacionais-socialistas: ou seja, as diversas áreas de conhecimento científico estavam obrigatoriamente subordinadas à ideologia nazi e seus tropos desequilibrados. Depois de extirparem das universidades os conhecimentos ditos "judaicos" ou "contaminados por judaísmo", os arquitectos do nacional-socialismo tiveram de preencher esse vazio com todas as ordens de teorias alternativas e pseudoconhecimentos que, independentemente de serem correctos, válidos ou úteis, tinham de, em principal, reflectir o radicalismo do pensamento político do nacional-socialismo. Por radicalismo, entenda-se a ruptura completa com o conhecimento já estabelecido (que, curiosamente, é também uma característica dos defensores das Teorias dos Antigos Astronautas e da Teoria da Génese Extraterrestre). Assim, a ciência nacional-socialista ficou preenchida pelas ideias absurdas do engenheiro austríaco Hans Hörbiger, que, note-se, já medravam em algumas universidades alemãs e na doutrina oficial dos Camisas Castanhas, sendo observadas como uma alternativa "ariana" às teorias "judaicas" de Einstein, entre outros.
Embora falecido em 1931, Hörbiger foi, com efeito, uma das figuras mais infuentes e importantes do III Reich, por via da sua Teoria do Mundo de Gelo, publicada pela primeira vez em 1913: segundo esse bizarro ponto de vista, toda a matéria do universo seria constituída pelos resultados de choques violentos entre fogo e gelo. Na cosmogonia hörbigeriana, os "arianos", antepassados dos autênticos alemães, teriam criado novas colónias nas Américas Central e do Sul, após o Dilúvio que submergiu a sua pátria na Atlântida. Foi esta ideia que influenciou o já citado pseudo-arqueólogo Edmund Kiss a viajar até à Bolívia e ao Peru, em 1928, para tentar encontrar vestígios de civilização "ariana" nas ruínas de Puma Punku e Tiahuanaco. As conclusões inventadas por Kiss são, presentemente, vendidas com gusto pelos defensores da Teoria dos Antigos Astronautas nos seus programas televisivos a um público generalista que, sejamos honestos, desconhece completamente estas ligações nazis e neonazis. Arrisco a hipótese de que também a maioria dos defensores da Teoria dos Antigos Astronautas, entre os quais Tsoukalos, também desconhecerá a proveniência nazi e neonazi do material em que apoia as suas convicções estapafúrdias, mas aquilo que é factual é que alguns deles, como Erich von Däniken, já declararam opiniões racistas e de pendor neonazi em alguns dos seus livros.

Prosseguindo, Die Glocke (o sino), a hipotética tecnologia que permitia aos nazis viajar no tempo, apresentada em Nazi Time Travelers, é uma ficção inventada pelo jornalista polaco de extrema-direita Igor Witkowski no livro Prawda o Wunderwaffe (A Verdade Sobre as Wunderwaffe), de 2000: levada ao colo pelos teoristas das conspirações, consiste numa ideia absurda que alcançou há poucos anos o campo televisivo ocupado pelos defensores da Teoria dos Antigos Astronautas, que nela desejam ver aplicações efectivas de tecnologia extraterrestre, chegando a afirmar que alguns oficiais nazis escaparam temporalmente através dela.
Sinceramente, é doentio que estes programas reforcem na psique popular uma sensacionalista mitologia neonazi que não se corresponde em nada com a realidade histórica. Programas como Nazi Time Travelers, e filmes como o execrável Iron Sky de Timo Vuorensola (2012), cujo trailer da sequela neste momento em produção (Iron Sky: The Coming Race - um título que remete para o livro The Coming Race, de 1871, do escritor oitocentista inglês Edward Bulwer-Lytton, no qual aparece pela primeira vez o conceito energético-místico da força chamada de Vril, elemento que, posteriormente, influenciou o esoterismo teosófico blavatskiano, o antroposofismo steineriano e o esoterismo neonazi) mostra a elite nacional-socialista refugiada numa cidade agartiana no interior de uma Terra Oca antárctica, respigam elementos do esoterismo e pseudo-história neonazi e transformam o regime nacional-socialista numa camarilha de vilões disneyescos, obcecados pelo oculto.
Será, certamente, pela via do imaginário misterioso do ocultismo e do contorno contracultural com que estas ideias são apresentadas que o público mais jovem, ainda sem referências históricas sólidas, adere emocionalmente a elas, naquilo em que, muitas vezes, significa o primeiro passo para o activismo político dentro dessas balaustradas.

Para combater a ignorância e o pseudoconhecimento, nada como a verdade histórica. Nesse sentido, em memória de todos aqueles que foram assassinados barbaramente por uma ideologia que fetichizou a morte e que, creio, não possui nenhuma análoga com outra sua contemporânea (aqueles que tentam desvalorizar o genocídio projectado pelo nazismo, insistindo nas supostas idêntica ou superior violência do comunismo, em especial o comunismo dito estalinista, simplesmente não sabem do que estão a falar), recomendo a leitura daquele que, na minha opinião, poderá ser o melhor livro sobre o fenómeno de Auschwitz: Auschwitz, de Debórah Dwork e Robert Jan Van Pelt.
Estes autores aproximam-se da interpretação "funcionalista" sobre o Holocausto, embora eu me incline mais para uma interpretação "intencionalista" (simplificando, segundo os "funcionalistas", a Solução Final Para a Questão Judaica foi uma contingência, enquanto que de acordo com os "intencionalistas" o genocídio dos judeus estaria delineado, com menor ou maior detalhe, desde as vésperas da Segunda Grande Guerra).

Para não esquecer o passado e para não esquecer que o futuro não está garantido.