segunda-feira, 7 de maio de 2018

Só no escuro se acredita na morte



No regresso a casa, vi um gato morto. Pendente a um pilar, com a cabeça virada para a entrada de um edifício, parecia uma encomenda macabra, motejado por moscas, das quais, se bem olhei, só uma era varejeira; volumosa, plúmbea, como uma venefícua semente de arsénico, de toxicidade ainda mais acirrada pela halitose adipocerina.
Imóvel, o gato assemelhava-se a uma grande pedra forrada de porriginosas peladas — um borralhado mineral, quasi-lunar de tão craterizado. Talvez fosse uma mascote incapaz de sobreviver na rua; talvez fosse vadio. Na mesma calçada onde suam as solas de turistas e sobre a qual guincham, desquiciadas, as rodas dos carrinhos dos carteiros, jazem corpos secretos, de perdida temporalidade. O sol ilumina-os sem lhes tocar, em deferência, pois na luz não se acredita em nada. Só no escuro se acredita na morte. Os cadáveres preferem as sombras.