quinta-feira, 26 de março de 2009

Sobre Futebol

Como exprimi, a determinada altura, no meu álbum de banda desenhada A Última Grande Sala de Cinema, o futebol foi criado pelos chineses.
Faltavam dois séculos para Cristo (por suppositu) nascer, quando, sob o reinado da dinastia Tsin, foi criado na China um exercício para treinar soldados chamado Tsu Chu. Este nome significa, literalmente, jogar uma bola com os pés. Durante o período dominante da dinastia seguinte, a Han, o Tsu Chu também passou a ser praticado como folgança, em virtude de Liu Bang, o fundador dessa nova série de soberanos, ser um veemente admirador do jogo.

Não é intrigante que o futebol tenha sido inventado na China, porque os chineses possuem toda uma cultura de fetiche dirigida aos pés como objectos de desejo, de cobiça e de formosura. Assim como a prática dolorosa de apertar os pés das mulheres, desde a infância delas até à idade adulta, para que fiquem reduzidos a apêndices arredondados, também o futebol concentra neles as suas atenções, mas enquanto símbolos de vigor, de destreza; qualidades essencialmente masculinas, diametralmente opostas à posição que ocupam as virtudes que assistem ao exemplo prévio, pertencentes a um mundo recluso e feminino.
Yeh-hsien, a primeira encarnação da personagem Cinderela, surgiu na China; e a sua história, que cresceu em órbita da cena nuclear na qual o pé descalço é desvendado, brinca com características culturais chinesas: a nudez do pé, ostentando a fragilidade feminina, mas, de igual modo, convidando à investida sexual livre de sentimentos culposos, já que o sapato foi perdido por "acidente"; um mecanismo semelhante à fantasia de violação, em que a sexualidade feminina pode ser assumida sem vergonha pela mulher que a imagina, porque o comburente do desejo é exterior — logo ilibador.
Na tradição judaico-cristã, o pé aparece muitas vezes como símbolo para os órgãos genitais, como no Serafim que Isaías viu e que possuía seis asas: duas para lhe cobrir os pés (os genitais). Na cultura chinesa, as maneiras como os pés das mulheres e dos homens são observados contingenciam-se aos papéis sexuais e sociais de cada sexo. O pé feminino é uma criatura lunar, doméstica — de estimação —, apertada com faixas de pano e sapatos de reduzidas dimensões para que o crescimento não se cumpra: existe um desejo masculino de querer conservar a meninice na mulher, de purificá-la, transformando-a numa relíquia viva de uma idade pretérita — num bibelô. Em sentido contrário ao papel que está fixado para o pé masculino, que é solar, activo e robusto.
O pé é o suporte do corpo e através dele oferecemo-nos ao caminho (um caminho muito diferente, consoante os sexos); é a nossa identidade sobre a terra — a pegada é a primeira impressão digital — logo, os pés das mulheres e dos homens não podem deixar dúvidas a respeito das suas identidades.

Uma forma diferente de futebol, evoluída do Tsu Chu, que emigrou pelo continente asiático em direcção ao europeu, clandestino nas caravanas comerciais, foi introduzida pelos romanos na Grã-Bretanha, após a invasão desse território pelos exércitos de Júlio César: o Harpastum greco-romano; também ele um exercício militar com características lúdicas, jogado com os pés e com as mãos. Após o abandono dos colonizadores romanos e finado um intervalo de tempo de alguns séculos, os povos ditos celtas criaram a sua própria versão do jogo e no século VIII um proto-futebol, sem equipas, com um número de jogadores que poderia ir até um milhar de indíviduos, já se encontrava popularizado por toda a ilha. Famoso pela sua violência, esse futebol primitivo practicado pelos ingleses assemelhava-se mais a um combate anárquico que a um jogo e era desprezado pelas classes superiores como sendo uma actividade rural e bárbara. O desporto demorou bastante tempo a chegar às cidades e atravessou um período de proibição durante o reinado dos reis Eduardos para, em seguida, voltar a ser proibido por Oliver Cromwell, no século XVII, em conjunto com o teatro, as festas populares e o Natal. As origens do hooliganism traçam-se a partir desse vector que originou revoltas populares contra o puritanismo e distúrbios violentos associados à prática do futebol clandestino.

Não me interessa reproduzir aqui uma resenha histórica do futebol moderno, mas sim compreender as origens do jogo e descobrir onde reside o fascínio que sempre operou nos seus seguidores e apoiantes.
Penso que o segredo do sucesso do futebol passa, mesmo, pelos pés.
Existe algo de sedutor na habilidade de dominar uma bola, um objecto tão arisco, com algo tão inábil como um pé, de constituição rígida e cujos dedos não servem para manusear nada. É por esse motivo que o basquetebol nunca teve um sucesso tão grande quanto o futebol: por que, à superfície, é mais fácil. Podemos não pensar nisto de um modo objectivo, mas, implicitamente, esse raciocínio está no nosso subconsciente: se jogar uma bola com os pés enquanto se corre fosse fácil, o futebol nunca teria sido criado como um exercício de perícia militar... Quem observa o jogo experimenta um deslumbre quase infantil, diante da destreza do malabarismo - e malabarismo é a palavra correcta, porque um jogador é, sobretudo, um malabarista que precisa de aprender a realizar na perfeição uma série de truques, antes de se poder considerar um futebolista. O fascínio do futebol, neste sentido, é quasi-circense; juízo suportado pelas indumentárias e memorabilia das claques que suportam os clubes preferidos, pelo estádio em que o jogo tem lugar: um local que evoluíu do coliseu clássico — coliseu significa circo. É por isso que o futebol feminino nos parece uma brincadeira - uma levianice? Porque na nossa óptica falocrata, as mulheres não são tão hábeis quanto os homens?
Outrossim, mais factores se concentram para fortalecer o êxito do futebol: é um jogo com muitas regras, mas, em última análise, todas muito simples e de compreensão imediata. Trata-se de um confronto directo entre duas equipas, o que permite uma clara situação de Us vs Them, na qual os clubes funcionam à guisa de exércitos defensores da honra de um bairro, de uma cidade ou de um país. Por se ter tornado tão popular consiste numa modalidade desportiva que possui uma máquina promocional desmedida e que, exponencialmente, aumenta ainda mais a já existente popularidade do jogo (sem mencionar o facto de os clubes se terem transformado em sociedades anónimas, elevando os desafios a autênticas guerras corporativas).

(The Scapegoat, de William Holman Hunt. 1854.)

Existe, ainda, a figura do árbitro como agente (à partida) neutro que conduz o desafio de futebol e cuida da acertada aplicação das regras — o que se trata de uma ilusão, porque o árbitro não é ubíquo e só lá está para servir de bode do Yom Kipur, sobre o qual os adeptos podem colocar o peso da derrota. É o árbitro que torna a derrota suportável, por vezes contribuindo de maneira preponderante para que ela ocorra - como se não quisesse desapontar ninguém. E ainda bem! É que se essa figura estivesse ausente, os jogadores derrotados seriam atacados desapiedadamente pelos espectadores.