sábado, 28 de março de 2009

Transmissões Desordeiras (2ª Parte)

A mente antrópica

You introduced me to my mind
and left me wanting you and your kind.
Black Sabbath, in "Sweet Leaf", Master of Reality


As criaturas humanas não vivem num universo composto apenas por quatro forças (gravidade, electromagnetismo, força forte e força fraca), mas num mundo feito de ideias e pensamentos que concorrem entre si com selvajaria, como tubarões-areia no saco vitelino, para nascer — para serem pensados. Inversamente às partículas atómicas, nós possuímos um interface único para nos compatibilizarmos com heterogeneidade com aquilo que nos circunda: uma acepção de individualidade, uma consciência.
A nossa mente racional faz de nós autênticos inseminadores de antropia. É mais fácil criarmos desordem que investirmos esforços para manter o statu-quo. Somos criaturas complicadíssimas porque somos preguiçosos.
Mas porquê antropia? Traduzirá que todos os tipos de desordem são fenómenos entrópicos? Sim, porque todos os tumultos e confusões consistem, sobretudo, em mudanças aleatórias, sujeitas às contingências do futuro. Brian Greene, no seu livro The Elegant Universe, expõe:

Entropia é o grau de desordem ou imprevisibilidade. Reparem: se a vossa secretária está coberta com camadas de livros abertos, revistas apenas folheadas, jornais velhos e correio lido e esquecido, encontra-se num estádio de desordem elevada, ou entropia elevada. Por outro lado, se o vosso local de trabalho está perfeitamente organizado, com os tais artigos de jornal arquivados em dossiers alfabetizados, as revistas arrumadas por ordem de publicação, os livros distribuídos nas prateleiras por ordem alfabética de acordo com o nome dos autores e as canetas nos seus suportes então encontra-se num estado de ordem elevada ou de baixa entropia, que é o mesmo.
Quando a vossa secretária está arrumada e limpa, o menor indício de desarrumação — mudar a ordem das revistas, dos livros, dos dossiers com os artigos ou deixar as canetas espalhadas sobre a madeira — irá perturbar o elevado grau de organização. Isto é a baixa entropia. Inversamente quando a secretária está uma pocilga, a desarrumação não vai afectar o estádio em que ela se encontra. Apenas a vai deixar como já está: uma confusão! Isto é a entropia elevada.

Compreendam que mesmo gastando tempo a arrumar todo o caos continuamos a aumentar o grau de entropia apenas com o calor emitido pelos nossos músculos durante a tarefa. Aparentemente não existe uma solução para este problema.
Voltemos à história de Max Anderson (o terceiro) que serve de maquete para esta exposição e vamos observar o momento em que essa personagem lê o diário de Skeldar aos amigos numa determinada altura da viagem até Sarajevo. (A viagem, per se, não nos deixa esquecer o carácter temporal do fenómeno entrópico.)
O que prossegue nas páginas posteriores é uma história dentro da história: mais personagens e mais pormenores que não serão desenvolvidos com conclusões satisfatórias; em suma, mais informação — mais entropia. Contudo, não é necessária a inclusão de uma segunda situação narrativa, dentro da primeira, para criar entropia; ou melhor, não é necessário fazê-lo de modo deliberado. A verdade é que o fazemos naturalmente sempre que lemos um texto ou assistimos a um filme. À luz desta ideia, avaliem esta transcrição retirada do livro Consciousness Explained, de Daniel C. Dennett:

- Recorda a nossa conversa sobre a interpretação. Quando estamos na presença de um trabalho que sabemos ser vagamente autobiográfico conseguimos decifrar muita informação sobre a vida do autor nos acontecimentos fictícios, por isso o romance é, forçosamente, sobre esses eventos verdadeiros. O autor nem poderá estar consciente disso, mas, mesmo assim, nesse sentido que acabei de evidenciar, o juízo é acertado. Essas eventualidades são o tema do trabalho, porque são elas que nos dão as pistas que nos levam a formular as razões pelas quais o texto foi escrito, afinal de contas.

- Isso forçosamente. Então e indeterminadamente?

- Bom, então, é sobre nada. É apenas ficção. Pode transmitir a ilusão de que se concentra em pessoas, lugares e ocorrências fictícias, mas, realmente, não fala de nada.

- Mas quando leio um romance esses acontecimentos fantasiosos ganham vida! Alguma coisa acontece, também, dentro de mim: eu vejo-os! Ler e interpretar um texto cria histórias na minha imaginação e imagens das personagens e do que elas fazem. Por isso quando vou ao cinema ver a adaptação de um livro que conheço dou comigo a pensar que nada do que estou a ver se combina com o que imaginei.

- Certo! No livro Fearing Fictions, o filósofo Kendall Walton (1978) assegura que esses produtos imaginativos criados pelo leitor complementam o texto do livro do mesmo modo que as ilustrações, combinando-se com as palavras para fabricar um mundo (ficcional ou heterofenomenológico) maior. Essas adições são perfeitamente reais, mas são apenas mais “texto” — não feito de fantasia e sim de modos pessoais de ver.

Afigura-se que uma história atrai histórias, como se existisse em sua órbita uma força da mesma ordem que a gravidade: uma narratividade ingénita do campo sematológico.
Vale muito a pena apresentar um belo exemplo de histórias dentro de histórias contido no livro Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid de Douglas R. Hofstadter. No capítulo Little Harmonic Labyrinth, Tartaruga e Aquiles são raptados por uma sombria personagem que as quer cozinhar. Em casa do raptor, o duo descobre um livro chamado As Provocantes Aventuras de Tartaruga e Aquiles Nos Mais Variados Locais do Globo e começa a ler na página que se encontra aberta um conto intitulado Djinn Tónico.
Nesse episódio do livro, Tartaruga 2 e Aquiles 2 entram numa litografia de Escher graças a uma fórmula que tem a faculdade de comprimir quem a bebe para dentro de qualquer objecto, como se de um génio da lâmpada mágica se tratassem (daí o nome da beberagem: Djinn Tónico)
A partir daí desenrola-se toda uma galeria de múltiplos Aquiles e Tartarugas que penetram em outras representações artísticas, em outras histórias e noutros livros encontrados durante as viagens. Parece um fenómeno entrópico e, realmente, não se afasta dessa definição, mas é mais que apenas isso. É um mecanismo muito importante chamado estrutura recorrente. Transcrevo do livro de Hofstadter:

Uma das formas mais comuns de recorrência na vida vulgar é quando adiamos uma tarefa para nos concentrarmos em outra mais simples, normalmente do mesmo género. Eis um bom exemplo: um empresário costuma receber muitos telefonemas e fala com A no momento em que B decide ligar. O empresário pergunta ao A se não se importa de aguardar um instante e troca de interlocutor pressionando um botão. Claramente, o que A pensa sobre o assunto não tem peso nessa decisão. Mas agora é C quem telefona e a mesma interrupção é jogada sobre B. Isto pode continuar infinitamente, mas não nos vamos entusiasmar. Imaginem que C desliga e B prossegue onde tinha ficado. Entretanto, A continua à espera, tamborilando os dedos na mesa e a ouvir o muzak pavoroso que é canalizado pelo fio do aparelho. A conclusão mais simples é que ele espere que B termine a sua chamada, mas isso pode não acontecer se D telefonar quando já não se esperava ouvir notícias suas.
O conjunto cresce (…) numa espécie de “bola de neve matemática”. Mas esta é a essência da recorrência — um objecto ser definido por versões mais simples de si mesmo (…). E a numeração recorrente é um processo no qual coisas novas emergem de coisas antigas de acordo com regras exactas (…). Parece que sequências recorrentes deste género possuem uma espécie de comportamento complexo inato e quanto mais longe as acompanhamos menos previsível o sistema se torna. (…) Não será esta uma das propriedades da inteligência? Em vez de considerarmos programas compostos de comandos que podem correr de modo recorrente, por que não investimos na sofisticação desses modelos e inventamos programas que sejam capazes de se reinventar a si próprios — programas que actuem sobre outros programas, reparando-os, ensinando-os e ajudando-os a evoluir? É esta espécie de recorrência em rede que, muito provavelmente, se encontra no coração do pensamento inteligente.


Se o pensamento recorrente que nos leva a criar histórias dentro de histórias (ou filmes dentro de filmes, (frases entre parêntesis dentro de frases entre parêntesis) ou bandas desenhadas dentro de bandas desenhadas) é um ingrediente vital do raciocínio inteligente então a antropia que construímos enquanto vivemos é apenas um epifenómeno — apenas qualia! E poderá mesmo sê-lo, já que a entropia, e, por afinidade, a antropia cunhada neste texto, apenas desarruma e não transforma. Por conseguinte, não influi um efeito preponderante sobre a natureza dos objectos. Uma transcrição que suporta esta ideia da antropia como um epifenómeno do pensamento inteligente vem novamente de Hofstadter:

Quando a Inteligência Artificial atingir o nível da humana — ou o ultrapassar — será assombrada pelos contínuos problemas sobre a natureza da arte, da beleza e da simplicidade e será contra as armadilhas destas matérias que batalhará para encontrar sentido e conhecimento.


Lembram-se quando mencionei que a entropia pode ser enfadonha? Na conclusão da banda desenhada Cão Capacho Bósnio, as personagens chegam ao fim da viagem que empreenderam até Sarajevo, inspiradas pela granada engravada, e descobrem que todo o cenário envolvente repete esse objecto, infinitamente, à guisa de padrão.
Pensem na secretária desarrumada do exemplo oferecido por Brian Greene. As mudanças provocadas pelo aumento de entropia passam despercebidas, em virtude da elevada desordem em que se inserem. Elas estão presentes, claro, mas não se inscrevem e a superfície acaba por assumir um aspecto homogéneo.
Um exemplo mais perfeito é a chuva emitida por um ecrã de televisão não sintonizado: observamos milhares de pontos luminosos a moverem-se, freneticamente, de modo imprevisível, como girinos numa caixa de Petri, mas a imagem que transmitem ao nosso cérebro não nos surpreende. A entropia tornou-se comum e tão anódina quanto um padrão num papel de parede. Já não é entropia: é spleentropia.

Quanto mais as coisas se complicam, mais elas deixam de nos provocar. Já nada me surpreende!, dizemos a encolher os ombros quando uma situação má se torna ainda pior. Qualquer técnico de efeitos visuais a trabalhar num estúdio de cinema em Hollywood sabe que quando se tenta deslumbrar demasiado a assistência, ela perde a concentração.
A repetição ad nauseam da granada evoca-me os enantiomorfos, objectos que são imagens reflectidas uns dos outros, e isso irá servir para vos introduzir na conclusão deste ensaio.

Armagedão

Vou mudar-me para uma galáxia menos complicada.
Dr. Manhattan, in Watchmen (Alan Moore e Dave Gibbons)


Pode a antropia introduzir ordem num sistema?
Pode alguma das suas formas imprevistas assumir o rosto da ordem, assim como o matraquear dos chimpanzés de José Carlos Fernandes na história A Literatura Estocástica, integrante no volume A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto, pertencente à série de banda desenhada A Pior Banda do Mundo, produz páginas percebíveis? Aponto dois breves exemplos literários de ordem nascida da antropia/entropia: a conclusão do episódio atributivo aos dois enantiomorfos preferidos de muita boa gente, Tweedledum e Tweedledee, das aventuras ultra-entrópicas de Alice no eterno País das Maravilhas criado por Lewis Carroll; e o desfecho em Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons.
No segundo exemplo, Adrian Veidt descarrega uma aberração artificial sobre Nova-Iorque com o objectivo de cessar o caos que agarra o globo com mão-de-ferro, mas no epílogo a entropia eleva-se epirograficamente.
No primeiro caso, os gémeos decidem lutar até à morte para resolverem uma questão familiar e Alice é obrigada a vesti-los com todos os objectos que eles são capazes de lembrar. Ambos acabam por ficar tão pesados que mal se conseguem mexer sob a quantidade de bric-à-brac. A batalha é invalidada porque um corvo gigante desce dos céus, ensombrando o sol, e obriga-os a fugir. O aumento exponencial de entropia expresso na constituição da armadura termina numa espécie de eclipse solar que talvez tenha sido inspirado na guerra que o rei Aliates, da Lídia, moveu contra Ciaxares, rei dos Medos (no sexto ano da guerra, em 28 de Maio de 585 a.C, um eclipse solar interrompeu a contenda e, acidentalmente, trouxe a paz).
Arriscaria a hipótese destas explosões inesperadas serem outra espécie de entropia. Talvez uma hiper-entropia, para respigar a terminologia de Baudrilard, mas penso que não podemos falar de hiper-entropia (mais entrópica que a própria entropia), porque, segundo a orientação do autor do conceito de hiper-realidade, ela teria de ser artificial: uma entropia de pechisbeque, erguida para imitar e competir com a entropia real. A entropia nunca poderá ser artificial e a antropia ainda menos, pois são contingentes de movimentos naturais que se inscrevem no espaço e no tempo. Vou ser mais preciso.
Imaginem que alguém decide construir um Parque da Entropia, no qual tudo está programado para funcionar às avessas e se auto-complicar. Se uma falha dispara em qualquer mecanismo regulador surge um princípio de entropia não prevista pelo sistema: o que significa que da hipotética entropia artificial nasce a entropia real.
A entropia é, nesse sentido, semelhante ao cancro.

As células somáticas não estão destinadas a transmitir os seus genes como as células germinativas estão. Podem multiplicar-se um indeterminado número de vezes suficientes para se coalescerem num órgão, um coração ou um cérebro, mas a diversão acaba cedo. A terrível excepção são as células cancerosas que se multiplicam sem parar. O mais sinistro é que este comportamento, que mais parece copiado do ciclo reprodutivo de um vírus, é o procedimento normal de uma célula. Observem esta asserção de Richard Dawkins, transcrita do livro The Ancestor’s Tale:

O que o cancro possui de mais surpreendente é que não seja mais comum do que aquilo que é. Bem avaliadas as coisas, cada célula somática descende de uma linhagem contínua de biliões de gerações de células germinativas que nunca pararam de se dividir. Ser transformada de repente numa célula somática, como uma célula do fígado, e aprender a arte da não-divisão é um acontecimento inédito em toda a história familiar dessa célula.

A antropia, a entropia e o cancro partilham a capacidade para se propagarem aumentando de maneira gradual, mas enquanto o último conduz à corrupção e à morte as primeiras parecem ser, relativamente, inofensivas. É verdade. Ainda ninguém morreu, directamente, vítima de antropia, mas recordem a dormência sensorial que a saturação de informação fortuita inflige na nossa percepção do mundo.
No seu grau mais elevado, a antropia pode motivar a morte intelectual aviltando a animação e anulando a aptidão para aprender. Se o cancro inicia o processo gradual da degeneração do nosso organismo, a antropia suscita um mecanismo da mesma categoria na senciência.
É irónico comprovar que nenhum ditador se lembrou de promover estádios de entropia social para desvitalizar as populações, invés de forçar uma ordem repressiva que não oferece espaço ao desenvolvimento individual.