sexta-feira, 19 de julho de 2019

Os Silenciosos


O capítulo cinquenta do Livro da minha vida do matemático e físico paduano Girolamo Cardano é uma peça biográfica que deslumbra pelo terror — um terror metafísico, feito de aforismos, uma epitáfia elegia ao seu uxoricida filho executado e um breve, mas arrebatador diálogo entre o próprio Cardano e um figurante fictício denominado S. É este S. que responde à declaração que o autor faz sobre ser uma fonte de infelicidade procurar incessantemente uma boa vida neste mundo, pois nele não existe verdadeira felicidade: diz o tal S. que filosofar daquele modo não basta, que é preciso conhecer o propósito daquilo que se procura, do mesmo feitio que um artífice — tal como um ferreiro sabe fazer pregos, barras, bigornas e marretas. "- Mas vós", queixam-se os artesãos, "não instruís de forma prática. Qual é a função da felicidade? Queremos saber qual é a utilidade das vossas teorias. Pois se nenhuma existe, para quê escrever, ensinar e aprender?"

Pergunta terrível, como um abismo que arreganha a dentuça granítica no fundo de um abrupto penhasco. Nietzsche intuíra esta inquietação permanente entre a abstracção e o utilitarismo no subtítulo de Crepúsculo dos Ídolos, livro escrito já no fio da loucura: é ele Como se Filosofa com o Martelo. Ou seja: como filosofar que nem um ferreiro na sua oficina? Como alcançar a cristalina e estéril simplicidade do artesanato, da técnica ao serviço do receituário? Quando se propunha a usar o martelo para fazer reverberar os ídolos de outrora, qual diapasão, e escutar a veracidade ou falsidade ressoantes era, pois, essa resolução que se procurava? Se, como dizia Cardano, não há verdadeira felicidade neste mundo, em que outro poderá existir?

A corrida ao espaço não respondeu a essa angústia. Tão pouco criou angústias novas: limpa e lisa como aço cirúrgico, foi pura técnica sem filosofia. Só martelo, sem reverberação. Comprova-o o facto de ter cessado sem galas diante do desentusiasmo do público desiludido pela ausência de felicidade no cosmos. Voltou-se, cardaniamente, a procurar-se insistentemente por ela neste mundo.

Não obstante, os animais foram os pioneiros no desbravamento dessa novíssima Nova Terra: cães como a spitz russa Laika, a primeira cosmonauta, o primeiro ser vivo a entrar no espaço intersideral, que sobreviveu seis dias sozinha num claustrofóbico cenóbio até morrer asfixiada quando se esgotaram as reservas de oxigénio; mas também gatos, como a tuxedo francesa Félicette, que foi ao espaço e voltou, de cabeça e cérebro atravessados por uma mão-cheia de desconfortáveis eléctrodos, para ser eutanasiada poucos meses após o regresso para se examinar esse seu cérebro semi-cibernético.

Estas não são as nossas mascotes amabilíssimas — representando-as esteve na Apollo 11 o ursinho de peluche de Neil Armstrong; ícone salvífico levado para absorver o pavor cósmico de se estar sozinho no hiante abismo do universo. Hiante, pois não é silencioso, apenas grita tão alto que só cães como Laika e gatos como Félicette são capazes de ouvi-lo.

No Museu Nacional de Arte Antiga pode ver-se o quadro Interior de Igreja Católica, pintado por Gerrit Houckgeest: no canto inferior direito da imagem está um casal em arroubo espiritual diante de um altar — e atrás do homem e da mulher, contemplativo no seu eterno mutismo de criatura sem fala, senta-se no chão o seu cão, também olhando para a ara devocional. No salto de fé em que consistem todas as íntimas adorações do invisível — sejam prostrações aos deuses ou desesperadas demandas por felicidade em novos mundos e novos planetas — os animais costumam dar o primeiro passo e, pasme-se!, permanecem, acompanham-nos nos interiores das naves: as dos templos, as que navegam e as que voam.

No seu insondável silêncio, na muda e irregular gramática das bestas e dos loucos, os gestos coreografam um código apetrechado de alma: esse período vazio entre cada martelada no ídolo e na bigorna comporta o vácuo do espaço e do abismo. Só na linguagem do silêncio, do pensamento, da introspecção, se poderá animar as empresas puramente tecnicistas que galvanizam no início e estiolam quase a seguir. Os artesãos a que S. deu voz estavam errados: as coisas importantes não se explicam por preceitos empíricos.

Uma cadela sufoca.
Uma gata é trepanada.
Um urso de peluche é vendido em leilão.

Os silenciosos olharam para o abismo e este também os olhou em silêncio.