quinta-feira, 11 de julho de 2019

Barroco: metamorfoses de uma palavra - Parte II



3 – O regresso do extravagante
Barroco, o neologismo de Orta, difundiu-se pela res publica letrada e científica, mercê do fulgurante êxito dos Colóquios […]; em finais de 1564, o físico e botânico flamengo Carolus Clusius adquire um exemplar em Lisboa e traduz o texto para latim, imprimindo-o três anos depois em Antuérpia, na tipografia do humanista francês Christophe Plantin: intitula-o Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud Indios nascentium historia – e na esteira desse best-seller aparecerão rapidamente outras edições, em castelhano, italiano e francês.

Com efeito, no último quartel de Seiscentos, o Dictionaire universel […] do lexicógrafo francês Antoine Furetière (publicado postumamente em 1690, dois anos depois da morte do autor) estabelece a acepção ortaiana da palavra na redacção desta entrada: «BAROQUE. Terme de Joiialillier, qui ne se dit que des perles qui sont pas parfaitement rondes.» Quatro anos depois, o significado conserva-se, pois a primeira edição completa do canónico Le Dictionnaire de l'Académie françoise dedié au Roy contém um verbete muito parecido: ««BAROQUE. Adj. Se dit seulement des perles qui sont d’une rondeur fort imparfaite. Un collier de perles baroques.» Aliás, o mesmo texto é reproduzido verbatim na segunda edição do dicionário, o Nouveau Dictionnaire de l’Académie françoise dedié au Roy, publicado em 1718. Porém, no ano de 1740, na terceira edição do dicionário, de título abreviado para Dictionnaire de l’Académie françoise, pode ler-se o seguinte: «BAROQUE. Adj. Terme qui n’a d’usage qu’en parlant. Des perles qui sont d’une rondeur fort imparfaite. Un collier de perles baroques. BAROQUE, se dit aussi au figuré, pour Irrégulier, Bizarre, Inégal. Un esprit baroque. Une expression baroque. Une figure baroque.» [Sublinhado meu.] Ou seja: é inventariado pela primeira vez o sinónimo alegórico de barroco, enquanto coisa extravagante, fora do normal.

É um significado que, por via autónoma, reconquista o sentido da “ausência de harmonia” que Montaigne aplicara na sua crítica aos escolásticos [ver Parte I]. Que terá sucedido entre 1718 e 1740 para, em França, a interpretação da palavra barroco se ter transformado? A resposta é simples: um quinquagenário professor de música francês começou a compor tragédias musicais.


4 – O excessivo senhor Rameau
Em 1722, Jean-Philippe Rameau publicou um pioneiro livro de ciência musical intitulado Traité de l'harmonie, ápice de uma longa carreira como teórico musical: nesse trabalho, o autor pensava ter encontrado uma espécie de “lei natural” da música – tropo que, acrescente-se, começava ser um indelével ingrediente do espírito “matematizante” desse dealbar de Setecentos, pois que outra coisa não eram os recentes livros de John Locke e Isaac Newton senão tentativas de encontrar leis naturais – repetíveis e universalmente aplicáveis – nos seus respectivos campos de estudo? Em poucas décadas seguir-se-iam, subordinados ao mesmo objectivo, os livros de Adam Smith, David Hume e Jean-Jacques Rousseau – este último, adversário de Rameau nas ideias e nos gostos musicais, como veremos. O acolhimento positivo dado ao singular tratado inspirou Rameau a escrever outro, publicado quatro anos depois, com um título mais programático: Nouveau système de musique théorique – considero que não é acidental o facto de a harmonia estar ausente no novo título e ser substituída por um novo sistema. É que a música que Rameau irá compor e apresentar ao público será radicalmente diferente.

Na verdade, Rameau só se estabeleceu em Paris aos quarenta anos de idade e envolto num certo noli me tangere de provinciano, trazendo uma reputação de instrumentista competente, é certo, mas nada que se guindasse ao génio; ele foi, aliás, um retrato inverso do prodígio que irrompe na infância, à guisa de um Mozart – até exasperou os mestres jesuítas do seu colégio em Dijon, no coração da Borgonha, por culpa da fraca aptidão para o estudo. Dz-se que passava as aulas a cantarolar tolas melodias que inventava… Há, de facto, organismos raros que passam por um período dilatado de estádio larvar; constantemente consumindo, ruminando, aguardando, para, no final, às vezes já muito distantes do fulgor fisico da juventude, romperem o casulo de modo esmagador.

Foi isso, precisamente, que ocorreu a Rameau no dia 1 de Outubro de 1733, com a estreia na Académie Royale de Musique, em Paris, da sua primeira ópera Hippolyte et Aricie: tragédia musical em cinco actos com libreto de Simon-Joseph Pellegrin (adaptação parcial da obra poética Phèdre, de Jean Racine, publicada em 1677). Até esse momento, pouquíssimo – nada – na vida musical de Rameau preparara o público parisiense para a polifónica complexidade e intensidade dramática dessa ópera inicática. Rapidamente, se criou um septo entre as massas agitadas, num lado com admiradores fervorosos de Rameau e o outro eivado de ferinos detractores: estes, apelidados de Lullistes, partidários do compositor Jean-Baptiste Lully (antigo colaborador de Molière) e do estilo de tragédie en musique por ele desenvolvido, caracterizado pela chamada “abertura à francesa” (admirada e glosada por Bach e Handel, por exemplo); e os outros, imediatamente denominados de Ramoneurs – palavra francesa que significa limpa-chaminés e apensa a este fim específico em virtude da homofonia com o apelido Rameau. Só em meados de Setecentos, Rameau principiou a ser valorizado, tornando-se, inclusive, compositor da corte, adoptando a partir daí o título de Compositeur de la chambre du roy. Não obstante, em 1733 e nos anos que depressa se seguiram não era fácil prognosticar esse triunfo e Rameau, do alto dos seus cinquenta anos, poderia facilmente ter-se dobrado às críticas e permanecido um obscuro teorista musical, hoje talvez totalmente desconhecido.


5 - A invenção do Barroco
Aos nossos ouvidos contemporâneos, Hippolyte et Aricie não parece, de facto, tão diferente assim dos trabalhos de Lully, embora já apresente determinados elementos que Rameau consolidará numa identidade própria em óperas posteriores – por exemplo, Les fêtes d’Hébé, ou Les Talents lyriques, de 1739, Dardanus, também de 1739, e Zoroastre, de 1749 – como o abandono total de um prólogo à francesa (em Zoroastre) e a tónica colocada no carácter dramático, “narrativo”, da representação, prefigurando a revolução realizada em 1767 por Gluck e Calzabigi com a versão original, em italiano, de Alceste, que no meu entender é já uma ópera proto-romântica. A abertura de Les fêtes d’Hébé […] afasta-se da matriz lullista, elevando-se até à quase dissonância – um tipo de dissonância ainda harmónica quando comparada com o paradigma contemporâneo, mas antecipando o tipo de difonia que, num registo diferente, telúrico, tenebroso, distinguirá a ópera Tristan und Isolde de Wagner (1865). Sobretudo, a primeira ópera de Rameau é um caleidoscópio de conceitos, riffs e matizes que, às tantas, não podia deixar de confundir a assistência – e os próprios músicos.

Prova disso é a crítica impressa na edição de Outubro de 1733 da gazeta literária Mercure de France, publicação que datava desde 1672 e que é uma das melhores varas de vedor para se detectar as pulsões desta sociedade francesa de finais de Seiscentos e inícios de Setecentos. Nesse texto, o crítico escreveu o seguinte: «On a trouvé la Musique de cet Opéra un peu difficile à executer, mais par l’habileté des Simphonistes et des autres Musiciens, la difficulté n’en a pas empêché l’exécution. (…)» [sublinhados meus]. É tentador cotejar esta crítica com o que diz outro texto, também publicado no Mercure de France, mas na edição de Maio de 1734; nessas páginas, sob o título “Lettre de M. *** à Mlle. *** sur l’Origin de la Musique”, um autor anónimo diz o seguinte: «(…) toujours de la tristesse au lieu de tendresse, le singulier étoit du barocque, la fureurdu tintamare [algaraviada, assuada]; au lieu de gayeté, du turbulant, et jamais de gentillesse, ni rien qui put aller au couer; (…)» [sublinhado meu].

Para mim não é claro que este texto de 1734 se cifre numa crítica directa à música de Hippolyte et Aricie, chamando-lhe barroca, como alguns autores vêem, pois nem ela, nem o seu compositor são chamados à colação numa redacção bastante ambígua. Todavia, é verosímil que, aqui, o emprego de barroco enquanto desqualificativo que carrega o significado de desarmónico se relacione com a estreia em 1733 da obra inaugural de Rameau e com o impacto provocado pela sua música estimada difícil e excessiva por parte do público e pela crítica.

Mais importante é a revelação que esta é, provavelmente, a primeira vez que a palavra barroco aparece publicada enquanto adjectivo (pejorativo) de uma obra artística – neste caso, uma ópera. E sabemos que é assim, porque podemos ler também no Mercure de France, na edição de Junho de 1728, uma adivinha em verso, intitulada “Enigme (de A. B. C.)”, em que a palavra baroque aparece no sentido de “forma imperfeita”, que é o sentido que circulava na altura e que era registado nos dicionários: «(…) a l'étranger je dois mon nom, / comme ma baroque figure (…)» [sublinhado meu]. Novamente no Mercure de France, essa montra de mentalidades de uma comunidade francesa em mudança, a palavra barroco, enquanto depreciativo musical, continua a fazer escola: no primeiro tomo da edição de Junho de 1738, lê-se «(…) et s’y défait du peu que la Musique Italienne peur avoir de baroque, surtour à nos oreilles, a contrebalance le Clerc en France (…)». Só posso concluir que a estreia de Rameau em 1733 como compositor de óperas consistiu numa micro-revolução epistemológica, porque entendo que foi a partir desse momento no tempo que começou a materializar-se na mente do público o nítido nominalizante de uma nova linguagem artística, que na música – mas não só – parecia pugnar pelo excesso, pela desarmonia; em suma, pelo rompimento do cânone classicista. Pela primeira vez existe um nome para denominar essas múltiplas aportações de uma nova realidade artística que radicam nas quinhentistas determinações tridentinas fluindo na música francesa do segundo quartel de Setecentos. Dir-se-á que é do estilo barroco.

É isso mesmo que fará o conservador Jean-Baptiste Rousseau, numa carta que escreve a 17 de Novembro de 1739 a Louis Racine, filho de Jean Racine, o autor de Phèdre, a obra em verso parcialmente adaptada por Rameau e Pellegrin em 1733. Nessa composição, redige um verrinoso poema em que ataca Rameau indirectamente: «Distillateurs d’accords baroques. / Dont tant d’idiots sont férus, / Chez les Thraces et les Iroques / Portez vos óperas bourrus. / Malgré votre art étérogène / Lulli de la lyrique scène / Est toujours l’unique soutien. / Fuyes, laissêz-luis son partage, / Et n’écorchez pas davantage / Les oreiiles des gens de bien.» [Sublinhado meu.] Este poema também não é uma crítica à ópera Dardanus de Rameau, como alguns autores vêem, porque a carta data de 17 de Novembro de 1739 e a ópera estreou em Paris dois dias depois, logo Jean-Baptiste Rousseau não a poderia ter ouvido – é, evidentemente, uma crítica a Hippolyte et Aricie, já que o destinatário da missiva é o filho do poeta cuja obra estava agora associada a uma ópera que ambos consideravam desprezível.

Assim, torna-se mais claro o caminho que levou a que a palavra barroco fosse mimoseada em 1740 na terceira edição do Dictionaire de l’Académie françoise com o significado novo de coisa irregular, bizarra, desarmoniosa – em espírito, em expressão e em figura.


6 - Aqui jaz o deus da harmonia
Outro Rousseau, mas chamado Jean-Jacques, tão revolucionário quanto o Jean-Baptiste era tradicionalista, também criou um dicionário – de música – em que não deixou de censurar o estilo pelo qual era cógnito o compositor de que desgostava: pode ler-se no seu Dictionnaire de Musique, de 1768, «BAROQUE: Une Musique Baroque est celle dont l’Harmonie est confuse, chargée de Modulations & de Dissonnances, le Chant dur & peu naturel, l’Intonation difficile, & le Mouvement contraint. Il y bien de l’apparence que ce terme vient du Baroco des Logiciens.» [Sublinhados meus.] Afasta-se do âmbito desta análise discorrer sobre as facções musicais que Rameau e Rousseau representavam (questão que explodiu na chamada Querelle des bouffons, em meados de Setecentos, com a representação em Paris no ano de 1752 da opera buffa de Pergolesi La serva padrona), mas pode resumir-se deste modo: para Rousseau, a música de Rameau era a música da desordem, do irracional, da hipérbole, elementos disruptivos que obstaculizavam a “boa razão”, a ortogonalidade e matematização do tal pensamento das leis naturais repetíveis e universais, a parcimónia do homem civilizado em contraste com a conduta desbragada de um bárbaro. Não é diferente da crítica que farão depois os adversários dos românticos, defensores de valores caros ao classicismo.

No final do século XVIII, a definição de barroco como antítese do classicismo – na música, nas letras e em todas as artes – está plenamente estabelecida. No célebre Dizionario delle belle arti del disegno […], de 1797, publicado pelo historiador de arte italiano Francesco Milizia, campeão do neo-classicismo e incansável adversário de estilos artísticos considerados “barrocos”, pode ler-se «BAROCCO è il superlativo del bizzarro, l’ eccesso del ridicolo . Borromini diede in delirj, ma Guarini , Pozzi , Marchione nella Sangrestia de S. Pietro ec. in barocco.» [Sublinhados meus.]

É vertiginoso pensar que, apesar de tudo, Rameau participou do espírito positivista nos seus tratados de ciência musical – e que o indefectível Mercure de France, um ano depois da sua morte, o recordava ainda com este epitáfio publicado no primeiro tomo de Abril de 1765: «Pour l’épitaphe de Rameau / Chacun exerce son génie : / Un vers suffit : dans ce tombeau / Cy gît le Dieu de l’harmonie.»