quarta-feira, 10 de julho de 2019

Barroco: metamorfoses de uma palavra - Parte I


1 - Uma origem silogística
Foi em meados do século IV a. C., pela mão do filósofo grego Aristóteles, que apareceu no mundo das letras a primeira consubstanciação da palavra barroco: no tratado de lógica intitulado Analytica priora (Analíticos Anteriores, um trabalho envolvido mais tarde no compêndio peripatético Organon), ela assinala sob a forma baroco uma das mnemónicas pelas quais o estudante de filosofia invocaria facilmente distintos tipos de silogismos – neste caso, um dos ditos da segunda figura (como os festino e camestres), que expressa o atributo inferencial do quantificador “nem todos”: ofereço um exemplo improvisado, 1) Toda a literatura é filosofia, 2) Nem todos os escritores são filósofos, 3) Nem todos os escritores são literários.

Todavia, nesta acepção aristotélica, o silogismo baroco, mera categoria intelectual, não se liga à actuação semasiológica que a palavra comportará no decurso da modernidade. Encontramos, ainda, requícios dessa origem silogística nos ensaios do cortesão francês Michel de Montaigne, publicados em 1580: em “De l'institution des enfants”, capítulo XXVI do primeiro livro dos Essais, lê-se «La plus expresse marque de la sagesse, c’est une esjouïssance constante ; son état est comme des choses au-dessus de la Lune : toujours serein.  C’est Barroco et Baralipton qui rendent leurs suppôts crottés et enfumés, ce n’est paselle; ils ne la connaissent [à sabedoria] que par ouï-dire.» (Atentem à grafia moderna com que Montaigne escreveu barroco.)

De molde a caracterizar como obsoleta a filosofia medieval, considerada falaciosa face à quinhentista racionalidade humanista de pendor platónico, Montaigne resgata quase arbitrariamente duas mnemónicas aristotélicas para fundar o argumento que os silogistas arreigados à escolástica só chegarão a uma incompleta compreensão da sabedoria – e por ouvido… –, pois aos seus raciocínios falta a serenidade. Umas linhas à frente encontraremos novamente esta ideia da ausência de serenidade – de harmonia – associada ao “barroco”, mas, para já, introduza-se um outro concomitante sentido que a palavra detinha no período em que Montaigne escreveu e à qual ele não terá sido distante.


2 - Quando as ostras temem tempestades
Dezassete anos antes da publicação dos Essais, o físico português Garcia de Orta deu à estampa em Goa o primeiro tratado português sobre botânica, intitulado Coloquios dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India […], no qual se funda as modernas significação e grafia da palavra barroco, aí utilizada como sinónimo de pérola imperfeita: no trigésimo quinto colóquio, “Da margarita ou aljofar […]”, lemos «Tudo por ser verdade porque ho aljofare que de cà vai, e as perolas he groso, e redondo, e em toda perfeiçam, e o que della vem das indias sam huns barrocos mal afeiçoados, e não redondos, e com agoas morras (…)» [Sublinhado meu.] Afigura-se-me plausível que Orta se tenha inspirado nesta passagem da trigésima quinta parte do nono livro da Naturalis Historia do historiador romano Plínio, o Velho, no qual se descreve a germinação de vários tipos de pérolas, inclusive aquelas que coalescem em deformidade por culpa do temor que as tempestades marítimas insuflam nas ostras: «Si tempestive satientur, grandescere et partus; si fulguret, conprimi conchas ac pro ieiunii modo minui; si vero etiam tonuerit, pavidas ac repente conpressas quae vocant physemata efficere, specie modo inani inflata sine corpore; hos esse concharum abortus.» [Sublinhados meus.]

É este o significado que o capelão e etimologista castelhano Sebastián de Covarrubias anotará no ano de 1611 em dois verbetes do seu Tesoro de la lengua castellana: na entrada alusiva ao aljôfar pode ler-se «Otras [pérolas] ay desproporcionadas; que no se acomodan à la forma redonda ; y a estas llamáron barruecos, quasi berruecos, porque tienen forma de berrugas. Las gruessas, redondas, lisas, y de color claro, llamaron comunmente perlas: los Romanos las llamaron vniones , quod nulli duo reperiantur indiscreti : y dellas haze Plinio vn capitulo bien notable (…)»; e na entrada própria encontramos o seguinte: «BARRVECO, entre las perlas llamã barruecos vnas que son desiguales, y dixerõse assi, quasi berruecos, por la semejança que tienen a las berrugas que salen a la cara.» [Sublinhados meus.]

Em 1712, o padre teatino estrangeirado Raphael Bluteau deu no segundo volume do seu Vocabulário Portuguez e Latino […] algumas definições complementares no verbete correspondente a barroco – e, em analogia com Covarrubias, ignora Orta e cita novamente Plínio: «BARROCO. Barrôco. Perola tosca, & desigual, que nem he comprida, nem redonda.»; poucas linhas em seguida, cita este excerto da História Natural de Plínio para corroborar uma familiaridade etimológica: «Crassescunt etiam in senecta conchisque adhaerescunt nec his evelli queunt nisi lima. Quibus una tantum est facies et ab ea rotunditas, aversis planities, ob id tympania nominantur.» Porém, do nome tímpano (ou tímbale, que vai dar ao mesmo), aqui chamado por Plínio para designar uma conformação inchada (já que, conforme o trecho, estas pérolas anormais possuem uma face convexa e uma base achatada), nunca derivaria o nome barroco empregue por Orta, nem este se encontra, aliás, sob nenhuma morfologia, no clássico texto de Plínio.


a) Metamorfose ou metaplasmo?
Com efeito, a única passagem dessa parte que incita a uma ligação entre ela e a proposta de Orta é esta, na qual o autor descreve o torpe engelhamento das pérolas envelhecidas: «Quare praecipuum custodiunt pelagiae, altius mersae quam ut penetrent radii. flavescunt tamen et illae senecta rugisque torpescunt, nec nisi in iuventa constat ille qui quaeritur vigor.» [Sublinhado meu.] A presença de «rugisque», do latim ruga, com o significado de prega ou sulco, credibiliza a hipótese etimológica covarrubiasiana de verruga, assomando até a habitual metaplasmia entre o /v/ e o /b/ e entre o /g/ e o /c/ nas palavras em latim vertidas em vernáculo peninsular. Com efeito, a palavra em latim verruca é empregue por Plínio como uma das maleitas que o sangue vertido do pescoço de uma tartaruga decapitada é capaz de curar: no décimo quarto capítulo do trigésimo segundo livro lê-se «Sunt qui testudinum sanguinem cultro aereo supinarum capitibus praecisis excipi novo fictili iubeant, ignem sacrum cuiuscumque generis sanguine inlini, item capitis ulcera manantia, verrucas. Iidem promittunt testudinum omnium fimo panos discuti; et, quod incredibile dictu sit, aliqui tradunt tardius ire navigia testudinis pedem dextrum vehentia.» [Sublinhado meu.] Não custa, pois, a conceber que Orta, inspirado pelo modelo de Plínio, baseasse o neologismo barroco na palavra em latim verruca para desenhar na imaginação uma coisa inchada e engelhada, oposta à beleza esferetérea evocada por uma pérola perfeita.