domingo, 30 de agosto de 2009

A ferro quente

Acabei de ver Inglorious Basterds, o novo filme de Quentin Tarantino, e esperava melhor. Sim, os diálogos tarantinescos estão lá (talvez demasiado conscientes de que são diálogos tarantinescos), as referências ao material inspirador são correctíssimas e, no geral, o filme está muitíssimo bem feito. Mas ser um filme muitíssimo bem feito não chega: é preciso que o filme se leve a sério; coisa que Pulp Fiction, ainda mais over-the-top que Inglorious Basterds, fazia melhor.

Aquilo que o aparta da minha sensibilidade é o sentimento que ele me transmitiu de se tratar de uma espécie de filme de propaganda pró-aliada, realizado durante a Segunda Grande Guerra, num momento qualquer em que seria impossível adivinhar o desfecho do conflito. E sê-lo, sem assumir sê-lo, adoptando uma postura afectada, clownesca, que me deixou um gosto amargo na boca.
Observado por essa óptica, o final da história, com a morte da elite do partido nacional-socialista alemão dentro de um cinema fazia todo o sentido e ganhava, inclusive, um sopro de rebeldia que, diga-se de passagem, faz muita falta a Inglorious Basterds: é que para filme Série B (ou, no mínimo, para filme que quer homenagear alguma Série B), este título é demasiado bem-comportado. Quando, perto do final, a carripana conduzida por Hans Landa atravessa a mata, na direcção do espectador, fiquei à espera que aparecesse uma claquete em grande plano e se ouvisse uma voz-off a gritar "Corta!", seguida de um zoom-out em torção no qual se visse a equipa técnica que estaria a filmar Inglorious Basterds enquanto filme de propaganda pró-aliada... É óbvio que isso não aconteceu, mas que seria uma solução metafísica bem mais interessante que a conclusão que nos é oferecida, lá isso seria. E honesta.

(O espírito do novo filme de Tarantino vai ao encontro dos comics de propaganda pró-aliada que se publicaram nos anos da Segunda Grande Guerra, mas esses tinham mais pertinência porque o desfecho da guerra era uma incógnita. Se esta história do Capitão América fosse publicada hoje como é que seria recebida?)

E quão mais interessante, ainda, seria se Tarantino tivesse realizado um filme deste género, mas passado na actualidade e com uma tropa de choque norte-americana a caçar talibãs no Afeganistão!... Não só seria um argumento com maior ressonância, como mais arrojado. Assim, matar o Hitler, o Goebbels e outros cabecilhas nazis no cinema é, literalmente, bater a mortos e a piada (que a tem), infelizmente, esgota-se à superfície. Colocar Brad Pitt a caçar terroristas era outra louça.

(Entre a caricatura Brad Pittiana e o Pato Donald, eu prefiro o Pato Donald.)

Mas se o filme, apesar de não ser apresentado como história alternativa, e não tentar sê-lo, apontar nesse sentido, tem outro problema; e um que se relaciona com o estado actual do cinema de entretenimento.
Acho que Inglorious Basterds não foi feito para a minha geração.
Kill Bill não fora, apesar de se basear nos filmes de artes marciais. As referências pertencem à minha geração, certamente, mas a linguagem na qual as referências são instrumentalizadas já não. Isso não é motivo suficiente para classificar um filme como sendo bom ou mau, evidentemente, mas eu sinto-me mais próximo de um filme como Public Enemies, que estreou há poucas semanas e é, assumidamente, um filme para adultos, que com Inglorious Basterds. Sinto-me mais próximo de Jackie Brown, também de Tarantino, e que é, sem sombra de dúvida, um filme para adultos, que com Inglorious Basterds. Até para se fazer um pastiche é preciso levar o trabalho a sério. Ora eu acho que Inglorious Basterds ambiciona ser bem feito, mas não ambiciona levar-se a sério. E não o ambiciona de um modo que o prejudica bastante. Serve para lembrar que o tom de uma obra, mais que o estilo, é muito importante.

Parece que hoje em dia existe mais arrojo na maioria das séries de televisão que no cinema - o que é uma pena, porque, apesar do grande público ser composto por adolescentes, ainda existem adultos que gostam de ver filmes. Para quando uma longa-metragem ao nível da série televisiva The Wire, por exemplo, que não trata os espectadores como atrasados mentais? O dumbing-down da cultura de entretenimento é um fenómeno que me é estranho e se acreditasse em Deus dava-lhe graças por não ter crescido com os filmes e com os livros que se andam a fazer agora. Se isto é discurso à Velho do Restelo, que o seja. Garanto-vos que, pelo menos, é sincero.

Mas vão ver Inglorious Basterds. É giro e está bem feito. Só não fiquem é a espera que seja a obra-prima que andam por aí a dizer. Se quiserem ver um filme mainstream maduro e com pêlo na venta vão ver Public Enemies. Ainda deve estar em cartaz.