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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Morreu António de Macedo


Morreu António de Macedo - soube há poucos minutos.
Conheci o António em finais de 2005 e fomos, desde essa altura, mantendo o contacto, falando de livros e de outros assuntos. Participámos juntos em diversas palestras e mesas-redondas. O António apresentou alguns dos meus livros, prefaciou um, e por tudo sinto-me grato e privilegiado. Das nossas conversas de café, tidas às tardes num local perto de sua casa, resultou uma longa entrevista que publiquei no meu blogue. Quando lembro os meus mortos, os indivíduos que me foram próximos e de quem tenho saudades, faço-o, sempre, de modo anónimo, em plural: não cito nomes, não me aproveito da sua memória para publicidade pessoal, como, infelizmente, por vezes se vê por aí. A partir de hoje, o António faz parte dos meus mortos: um grupo que de morte só tem a designação, pois a sua presença, em mim, não é outra coisa senão vida. Adeus, António. Obrigado.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O Humano no Fantástico


Várias vezes defendi a adaptação cinematográfica do livro The Hobbit, de J. R. R. Tolkien, realizada em três filmes pelo cineasta neozelandês Peter Jackson, e ao ver a versão "estendida" de The Battle of the Five Armies (escrevi "estendida" entre aspas, porque as versões alargadas, editadas em DVD, são, na verdade, as originais, que serviram de matriz às mais curtas, exibidas nos cinemas) compreendo que estes filmes não poderiam, de facto, ter sido feitos de outra forma, pois compõem uma sequência perfeita que completa, em estilo, tonalidade e lógica narrativa, a trilogia anterior (The Lord of the Rings). Deste ponto de vista, penso que os problemas de percepção que The Hobbit cultivou, desde a estreia da sua primeira parte, relacionam-se com uma certa deslocação de expectativas: sob o espectáculo deslumbrante dos superlativos efeitos especiais (à la Ray Harryhausen do século XXI), existem apontamentos e ideias de uma fina subtileza que são continuamente interpretados de maneira oblíqua por um público cuja definição de "fantástico" presente na sua constelação cultural é paupérrima. Essa palavra ("fantástico") é dinâmica, evidentemente: tem-se transfigurado no desenrolar das décadas, assim como outros conceitos mais estruturantes (o princípio setecentista de "mal" difere em quase tudo da sua acepção contemporânea, assim como o modo como se vivia a morte no início do século XX é dissemelhante daquele que caldeia o início deste).

No fundo, prefiro designar o imaginário tolkiano por "mitologia fundacional", posto que aquilo que a maioria do público entende por "fantástico" somente se relaciona com ele por via de algum mimetismo estético: essa pseudoliteratura feita por colagens sincréticas e apressadas dos arquétipos tolkianos, pontuada por uma intrínseca imaturidade, que em nada tem contribuído para a credibilização dos universos da imaginação junto de um público e de uma crítica mais sofisticados. Com efeito, o dito "fantástico" é incomensuravelmente maior que o nicho criado por Tolkien e seus imitadores, mas é, precisamente, esse nicho que chega mais vezes e mais depressa ao grande público - ora, talvez seja atempado e útil remir Tolkien desse nicho, com o qual ele apenas se aparenta superficialmente. Talvez seja atempado e útil deixar de ler Tolkien à luz de alguns anacronismos e preconceitos que têm obstaculizado a sua interpretação e cotejá-lo com os textos das cosmogonias das sociedades pré-clássicas, por exemplo, com os quais, em bom rigor, patenteia muita paridade. Existe um lirismo em Tolkien que nada tem a ver com o receituário patético que a sua obra, infelizmente, criou, mas que se une, profundamente, aos grandes mitos fundacionais.

Para além disso, sob as vestes diáfanas da fantasia, Tolkien cria retratos autênticos da natureza humana. A esse título, observe-se o cenário plasmado em The Hobbit: um tirano ocupa ilegalmente um território rico em recursos, expulsando os seus habitantes que, anos mais tarde, intentam recuperar essa terra prometida; uma vez eliminado esse tirano, assiste-se a uma vera pulverização de poderes, com diversos grupos locais, cada qual à sua maneira e com diferentes motivos, tentando agarrar o controlo desse território. Em paralelo, nas fímbrias do palco, um novo candidato a tirano arrebanha radicais tropas de elite que, sob bandeiras negras, só tem como objectivo a hegemonia global sobre todos os restantes grupos que, note-se, parecem mais interessados em digladiar-se por miríficas riquezas do que em unir-se para combater a ameaça comum.

Sim, Tolkien não tem, de maneira nenhuma, nada a ver com a realidade e a experiência humanas.


domingo, 20 de dezembro de 2015

David Soares - tertúlia literária na Faculdade de Letras de Lisboa



Vídeo da tertúlia literária sobre a minha obra, com moderação de José Duarte (investigador do Núcleo de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa), no âmbito da primeira edição do Festival de Ficção Científica e Fantasia - The Padawan Wars (4 de Dezembro de 2015).

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sobre a hexalogia de Peter Jackson


Vistos todos os filmes da hexalogia tolkiana de Peter Jackson confirma-se que ele é um visionário e um cineasta mais subtil do que aquilo que a canga de efeitos visuais desses filmes deixa observar.

O trabalho de adaptação efectuado por Jackson e seus co-argumentistas nesta série é extraordinário e, sinceramente, custa-me levar a sério algumas das críticas que têm sido feitas na imprensa especializada -- muitas delas fazem-me especular sobre se, com efeito, os críticos leram os livros de Tolkien que estão nas bases destas adaptações cinematográficas. Como já tive oportunidade de escrever em outro artigo, não sou, propriamente, um amante, diga-se deste modo, do universo tolkiano e nem sequer cresci com este imaginário; condições que, não obstante, estão longe de não me deixarem apreciar estes livros e filmes de modo absolutamente franco.

Uma leitura comparada do livro The Hobbit e dos três filmes com que Jackson o adaptou demonstram, sem margem para dúvida, que estes seguem-no de muito perto, tanto no conteúdo como na cronologia: o livro é pequeno e os filmes são grandes, mas, como já declarei anteriormente, contar algo em imagens é mais demorado que contar algo por palavras -- e é espantoso regressar ao livro e constatar que os filmes são totalmente fiéis à linha narrativa; excepções feitas a alguns desvios, inventados por razões de transposição do material da sua linguagem literária original para a cinematográfica e suas particulares exigências de forma e de expectativas. Simplesmente, criticar a trilogia cinematográfica de The Hobbit dizendo que é um exercício cínico de insuflar um livro pequeno para três filmes elefantinos é, no mínimo, simplista e, no máximo, um disparate: desafio os detentores desta opinião a reler (ou a ler...) o livro e a esboçar um modo de colocar todo o texto num único filme sem que o resultado não se apresente num feitio apressado ou, pior, elíptico. Esse juízo do "livro pequeno e dos filmes grandes" é, erroneamente, fortalecido pelo facto da trilogia de filmes que adaptou The Lord of the Rings coincidir em número com os livros, mas, lá está!, outra leitura atenta revela um caso oposto ao de The Hobbit: Jackson deixou muito texto de fora quando filmou os três filmes de The Lord of the Rings. Em The Hobbit, pelo contrário, como o livro é mais pequeno, foi capaz de seguir de perto praticamente tudo aquilo que está escrito.

No fundo, quem odeia Tolkien, pelas mais diferentes razões (ou porque acha que ele escrevia mal ou porque acha que ele era reaccionário ou porque acha que ele era misógino ou por-dar-cá-aquela-palha), irá sempre reclamar seja do que for que esteja relacionado com ele: filmes ou livros. Por outro lado, os fanáticos de Tolkien, que até lhe atribuem um papel que ele nunca teve ou, no mínimo, nunca procurou, também irão sempre reclamar, porque nada estará suficientemente bem adaptado para agradar-lhes. Porém, aqueles que, como eu, se encontram a meio-caminho, não sendo sicofantas nem elogiastas, encontrarão diversas razões para gostar bastante destes filmes e destes livros, descobrindo neles leituras interessantíssimas em sintonia total com as coordenadas histórico-sociais que lhes serviram de berço.

Os três filmes de The Hobbit e os três filmes de The Lord of the Rings são dos títulos mais importantes, entusiasmantes e essenciais das últimas décadas. E o facto de serem, desavergonhadamente, sobre anões, hobbits, orcs, dragões, elfos e feiticeiros enche-me de esperança, porque se um punhado de filmes de fantasia é capaz de transmitir algumas das mais belas imagens que já tivemos oportunidade de ver em cinema e alguns dos retratos mais pungentes da natureza humana alguma vez postos em película, então é possível que, afinal de contas, a nossa capacidade de imaginar não esteja de todo perdida. Pessoalmente, prefiro ver vezes sem conta um dragão eloquente como Smaug a discorrer sobre a avareza ou Gandalf a espadeirar contra o Balrog enquanto ambos se precipitam no abismo, do que um único episódio da sobrevalorizada série televisiva Game of Thrones, que, um pouco por todo o lado, é mais ou menos laureada como sendo "fantasia feita para a malta que pensa". Se rabos e mamas a dar com um pau é aquilo que a malta que pensa quer ver, então considero-me, sem nenhum complexo, estúpido para lá de qualquer hipótese de recuperação.

Obrigado, Jackson. Obrigado, Tolkien.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O Antiwagner


Esta semana estreia a terceira parte da trilogia de filmes realizados por Peter Jackson que adapta cinematograficamente o livro The Hobbit, de J. R. R. Tolkien. Esta nova trilogia tem sido criticada, em principal, por ser, enfim, uma trilogia. Sem querer defender a escolha de adaptar The Hobbit em três filmes, cujas razões financeiras são, por si só, evidentes, gostava de esclarecer algo que somente quem trabalha profissionalmente em narrativa sequencial sabe: contar uma história com imagens gasta mais papel (ou película) do que contar a mesma história somente com palavras.

Sublinhando a negrito o facto de que a banda desenhada e o cinema são linguagens muito diferentes (a banda desenhada é uma linguagem literária -- o cinema, não), posso informar que contar uma determinada sequência de eventos em banda desenhada demora muito mais tempo. Se for adaptado a banda desenhada, aquilo que pode ser transmitido em uma ou duas frases de prosa terá, necessariamente, de ser sequenciado em muitas vinhetas e em muitas mais páginas. O que importa reter é a realidade de que as linguagens que contam histórias em imagens -- ou em palavras e imagens juntas -- serão sempre menos elípticas do que aquelas que somente contam histórias com palavras. Ora, as versões alongadas da trilogia cinematográfica The Lord of the Rings têm durações maiores do que aquelas que estrearam nos cinemas -- de facto, foram as primeiras versões desses filmes, posteriormente cortadas para terem durações que distribuidores, exibidores e público achassem mais simpáticas. Em suma: a trilogia cinematográfica The Lord of the Rings ainda é maior do que aquilo que a generalidade do público pensa. Sob esta óptica, a escolha de filmar The Hobbit em três partes não provoca tanto espavento quanto isso.

Não sou um apreciador, diga-se assim, dos livros de Tolkien, mas estou longe de desgostar deles: simplesmente, não cresci com esse imaginário. As minhas referências literárias são outras e isso, no fundo, faz diferença; não obstante o facto de encontrar muitas qualidades nesses livros. Às vezes, fico estupefacto com certas críticas que lhes são feitas, quando, ao mesmo tempo, outros títulos mais ou menos similares -- mas vergonhosamente menores e piores -- são laureados como sendo obras de maior valimento (alguns até já adaptados para imagens em movimento). Apesar de tudo, penso que as obras de Tolkien estão em desarmonia com o compasso deste tempo demasiado cínico e inculto -- demasiado cínico e inculto, convém bisar para bater certo -- para compreender-se determinados tropos tolkianos, que se relacionam com códigos comportamentais cristalizados num mundo que foi menos veloz e menos complexo que o nosso. No entanto, esse mundo foi tão perigoso quanto aquele em que nos encontramos e, por essa via, Tolkien, pese ter envelhecido mal, não perdeu nenhuma pertinência. É por essa razão que a maior parte da fantasia contemporânea é formada por imitações reles, e formuladas lavradeiramente de modo consciente, do edifício que Tolkien deixou. É verdade que não existe nenhuma grande narrativa de pendor fantástico que possa reclamar este período -- o nosso -- como seu. Acrescente-se a isso que o caso de The Lord of the Rings foi, vale a pena lembrar, fortuito: começou por ser uma sequela despreocupada para The Hobbit (dividida tectiformemente por opção editorial); todavia, por força do fantasma do seu tempo, Tolkien foi transformando-a num testamento antiwagneriano, cujos contornos alegóricos por ele rejeitados são, ainda assim, evidentes. No âmago, The Lord of the Rings é Wagner para democráticos: uma história de perfeito antiautoritarismo contada do modo mais absolutista possível -- o título da terceira parte intitula-se The Return of the King e não The Return of the President, afinal de contas.

Sabe-se quais os efeitos que a primeira trilogia da saga Star Wars operou na cultura popular contemporânea, mas ainda será prematuro predizer quais os operados pelos seis filmes tolkianos de Peter Jackson, os únicos que, presentemente, conseguem rivalizar em alcance e impacto prolongado para além da recepção inicial com os três filmes originais idealizados por George Lucas. Quer goste-se ou não de certos títulos literários ou cinematográficos, as consequências provocadas pela sua exposição às massas é um importante fenómeno cultural que não pode ser ignorado. A sociedade também é assim formatada e até remodelada. Logo, arrisco com reservas que os filmes de Jackson irão influenciar sintomas interessantes de se observar: a sua Terra Média é uma sociedade altamente estratificada, é certo, mas na qual, surpreendentemente, nunca se fala em dinheiro e ele não têm importância nenhuma para o modo como os indivíduos se relacionam uns com os outros; na qual não existe religião de espécie alguma e ninguém parece preocupado sequer com ela; e na qual, sem dúvida, há liberdade individual e de expressão.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Outra vez racismo e misoginia?!...

Mais uma sova dada ao escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft, desta vez pelo crítico literário Charles Baxter, nas páginas do The New York Times Review of Books.

O artigo de Baxter é, infelizmente, mais um exemplo do evemerismo ao contrário que tem caracterizado as epístolas antilovecraftianas que, mormente, são dadas à estampa; e redigidas tanto por críticos camareiros do mainstream, como por corifeus saídos do próprio universo da chamada "ficção de género", mas todos preocupados com as suas próprias directrizes de promoção pessoal, feita à custa de um homem que não pode defender-se -- aliás, pela profusidade de textos desta natureza, que vão surgindo, dir-se-ia que Lovecraft está vivo, mas informo os mais distraídos que, com efeito, ele morreu em 1937: ano tão longínquo e feito de contrastes, como o bombardeamento da cidade espanhola de Guernica, pela Legião Condor da Luftwaffe nacional-socialista, ou a estreia de Snow White and the Seven Dwarfs, primeira longa-metragem de animação dos estúdios Disney. Entre o absurdo violento das guerras europeias e a candura melíflua do sonho norte-americano, vale a pena especular que o século XX terá sido, afinal de contas, mais lovecraftiano do que parece. Talvez seja esse o combustível secreto que anima fãs e detractores, em simultâneo.

No parágrafo anterior, falei em «evemerismo ao contrário», porque, de facto, é isso que se verifica na exegese desses textos maticinos: o evemerismo ortodoxo consiste na leitura errada que se faz de eventos e personagens lendários, atribuindo-lhes cronologias e papéis históricos pseudofactuais, como, por exemplo, achar que os deuses antigos de uma determinada mitografia foram, na realidade, poderosos reis e sábios sacerdotes do passado -- ou até seres de proveniências extraterrestres: tropo que também se relaciona totalmente com Lovecraft, como irei (re)demonstrar daqui a umas linhas.
Ora, baxteres e quejandos operam de modo inverso, respigando farrapos da vida de Loveccraft para, com eles, construir, não uma aproximação à realidade, mas uma ficção desbragada na qual o erudito escritor de Providence, pequena cidade costeira do estado norte-americano de Massachusetts, não passa de um virulento racista misógino, incapaz de escrever uma linha sem veicular todas as espécies de rancores étnicos e sexistas.

No que concerne a libelos dessas naturezas, já os desmistifiquei nesta ligação e também nesta, razão pela qual não valerá a pena repetir-me. Penso que esses dois textos demonstram que Lovecraft foi um indivíduo mais complexo e multidimensional (trocadilho propositado) do que se poderia, à partida, pensar; sobretudo, quando existe a vontade de partir para o terreno pantanoso da difamação sem conhecer, com rigor, a obra e a vida dos indivíduos que se almeja atirar para a lama. Até para inventar calúnias convém ser culto ou, no mínimo, estar bem informado.

Prometi que deslindaria o novelo que une Lovecraft ao evemerismo que fere como ferro quente a cultura popular contemporânea, já que este escritor foi o seu pai, e, assim, recupero o texto em que escrevi sobre esse tópico.

Termino com uma provocação dirigida aos detractores de Lovecraft: por que é que não voltam os cegos escalpelos para figuras da nossa história recente que foram, verdadeiramente, racistas e misóginas?
Figuras como Gandhi, por exemplo, que sob o manto diáfano da doutrina da não-violência escondeu um racismo insuspeito contra os negros -- que toda a vida considerou de "qualidade inferior" aos dalits (intocáveis) da hierarquia indiana de castas --, uma homofobia ainda desconhecida do grande público, além de uma misoginia de contornos caseiros (batia na mulher para "discipliná-la"). Os delirantes que vêem em Lovecraft um fervoroso admirador do fascismo e de Hitler farão melhor em observar Gandhi com atenção, pois ele estimava Hitler e Mussolini. Este, conheceu-o em Itália e ficou deslumbrado com o "amor" que Il Duce tinha pelo povo italiano, com o modo como ele rechaçava a "praga" da urbanização, em prol de valores campesinos, e, ainda, o "engenho" com que lidava com todas as questões relacionadas com o capital e o trabalho (leia-se, o sistema capitalista e corporativista de estado, apanágio do(s) regime(s) fascistas).
 
 Quanto a Hitler, achava que ele não era tão mau quanto o pintavam, sobretudo quando comparado com aquilo que os boers e os ingleses tinham feito aos Zulus da África do Sul. Seguindo esse raciocínio, a 23 de Julho de 1939, escreveu a Hitler, a quem tratava por «querido amigo», pedindo-lhe que, em vez da guerra, experimentasse o caminho da não-violência, método que, segundo a sua experiência, dava alguns frutos (em pouco menos de dois meses, o «querido amigo» invadiu a Polónia, iniciando a Segunda Grande Guerra). Aliás, em Novembro do ano anterior, Gandhi já advogara que os judeus perseguidos e chacinados pelos nacionais-socialistas não poderiam fazer melhor do que deixarem-se eliminar colectivamente numa atitude de resistência não-violenta, porque o terror não existia quando se morria crente: «the calculated violence of Hitler may even result in a general massacre of the Jews by way of his first answer to the declaration of such hostilities. But if the Jewish mind could be prepared for voluntary suffering, even the massacre I have imagined could be turned into a day of thanksgiving and joy that Jehovah had wrought deliverance of the race even at the hands of the tyrant. For to the godfearing, death has no terror. It is a joyful sleep to be followed by a waking that would be all the more refreshing for the long sleep».
 
Infelizmente, ao contrário do que Gandhi escreveu nas linhas transcritas acima, o terror existe mesmo -- para crentes e para descrentes -- e para derrotá-lo é preciso, além de coragem, compreendê-lo.
Lovecraft tentou fazê-lo através da sua ficção inovadora, olhando a humanidade com desafectação, mas, inesperadamente, com uma espécie de optimismo sem garantias, sentimento nascido do seu ateísmo e da paixão pelo desenvolvimento científico. Fica a sugestão de fazer-se uma reflexão sobre a maneira como, independentemente da verdade histórica, uns são eleitos para ser vilões e outros para ser heróis. Compreendo que o clima de correcta-politiquice que afecta a nossa sociedade vá criando os monstros que lhe são mais convenientes em determinados momentos -- aparentemente, Lovecraft está nos primeiros lugares da lista negra de uma desintelligentsia somente interessada em ficar bem na fotografia (Houellebecq e epígonos vêm à memória), por diversos motivos que confluem todos na superficialidade.
Não é à toa, afinal de contas, que escolheram Lovecraft para vilipendiar: em tudo o que fazia, era profundo. A superficialidade não era coisa que lhe agradasse.

         

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

De novo sobre Lovecraft e o seu suposto racismo


Com efeito, não imaginei que o texto que escrevi no passado dia 4 de Julho sobre o escritor norte-americano Howard Phillips Lovecraft fosse, infelizmente, ganhar uma pertinência ainda maior ao ser cotejado com o burburinho que circula presentemente uma patética petição pública, iniciativa de Daniel José Older (quem?), objectivando a reconfiguração da imagem dos prémios World Fantasy Awards (que consiste num caricatural busto de Lovecraft) para uma estatueta modelada segundo o rosto da escritora norte-americana de ficção científica Octavia Butler. A "lógica" por trás deste desiderato agasalha-se na repulsa que a escritora nigero-americana Nnedi Okorafor (vencedora, em 2011, de um World Fantasy Award para Melhor Romance) sentiu ao descobrir que Lovecraft era, segundo dizem, racista. Ficou com o prémio estragado, está visto. Temos pena.

A pseudoditadura do chamado politicamente-correcto provoca-me náuseas e tenho tantas coisas para dizer sobre isso que nem sei por onde começar. Assim, não começo, sequer: vou por outro caminho, que é, factualmente, o de reiterar que o mito do racismo lovecraftiano é uma criação muitíssimo insuflada - por leitores, críticos e editores que não gostam da obra de Lovecraft, pelas mais variadíssimas razões; sendo que a mais óbvia - e a mais frequente - será a de que sentem uma inveja insuportável diante do facto de que nunca serão tão influentes e tão reconhecidos quanto ele.
A pequenez dos homenzinhos (e das mulherzinhas) de má qualidade é sempre inversamente proporcional à grandeza de quem eles vituperam ou tentam ignorar: sempre. Disso, nos garante a história - e a vida comum de todos os dias, acrescente-se.

Desde que o escritor francês Michel Houellebecq, autor da (deficientíssima de fontes primárias, secundárias, terciárias, quaternárias e por aí adiante) biografia H. P. Lovecraft: Contre le monde, contre la vie (1991), elevou o emblema do racismo contra Lovecraft e sua obra, que uma turba tonitruante de corifeus segue, cantando e rindo, esse plasma, modelando-o a seu bel-prazer, sempre que precisa de ganhar protagonismo - algo que, aparentemente, não é capaz de alcançar através da criação artística. Não obstante a tenacidade dessa pobre gentalha para quem as costas largas dos indivíduos mais talentosos do seu ofício são apenas trampolins para o sucesso fácil, Lovecraft esteve muito longe da astigmática silhueta de racista enfurecido com que alguns o adoram delinear.


   

domingo, 7 de setembro de 2014

Antologia «The Ironic Fantastic»

 
O terceiro número da antologia de ficção The Ironic Fantastic, série criada pelo escritor galês Rhys Hughes, já se encontra disponível para download gratuito: esta edição, com capa do ilustrador português Esgar Acelerado, foi organizada e editada por Paulo Brito e recomendo-a efusivamente. Entre conteúdos de enorme interesse, contém duas críticas a dois livros meus pelo crítico norte-americano Larry Nolen, assim com algumas sugestões minhas de leituras de não-ficção. Inclui, ainda, diversas fotos de Gisela Monteiro.


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sobre o horror literário português

Na sequência da publicação do vídeo da mesa-redonda Conversas de Horror, ocorrida no âmbito do Fórum Fantástico 2013, lembrei-me de publicar aqui nos Cadernos de Daath um ensaio que escrevi em Novembro de 2007 e que reflecte sobre o problema de não exisitir uma tradição literária de horror (e de Fantástico, no geral) em Portugal. Este ensaio, intitulado Sobre o Fantástico na Literatura Portuguesa, publicado no terceiro número da revista BANG! (Saída de Emergência), foi pioneiro, porque é o primeiro texto que aponta a influência da Inquisição e da sua censura como os principais culpados de não existir uma tradição literária fantástica portuguesa; tese que, como irão ver, esclarece muitas interrogações que, mormente, são respondidas de modo inexacto, ingénuo e irresponsável.

Em 2011, a taxa portuguesa de analfabetismo era de 9%: cerca de um milhão de indivíduos que não sabiam ler e escrever (em finais do século XIX, as taxas de analfabetismo inglesas e alemãs eram, respectivamente, 1% e 0,50% - no mesmo período, a taxa portuguesa de analfabetismo era de 80%). A percentagem de indivíduos que valoriza e conhece a cultura é sempre baixa e num país como Portugal esses números serão ainda mais residuais. Falando em números, acrescento a curiosidade de que nem só nas letras estamos atrasados em relação ao resto da Europa: só na segunda metade do século XV é que adoptámos, paulatinamente, a numeração indo-árabe (e o primeiro livro de matemática português só foi publicado em 1519: o Tratado d'Arysmetica de Gaspar Nicolas).

A Inquisição só foi extirpada em 1821, a caminho de meados do século XIX. Antes disso, em 1768, Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro-ministro de D. José I, criou a Real Mesa Censória, um órgão do Santo Ofício que procurava e confiscava literaturas e informações subversivas: para o efeito, os agentes da Real Mesa Censória invadiam as casas dos indivíduos e recolhiam os livros que faziam parte da lista dos títulos proibidos (como as obras de Voltaire, Diderot ou Rousseau, entre outros autores). Em seguida, os livros apreendidos eram incinerados no Rossio e na Praça do Comércio. Oito anos antes, em 1760, o médico Ribeiro Sanches publicou o tratado Cartas Sobre a Educação da Mocidade, no qual defendeu a estratificação do ensino em dois modos, para os nobres e para a classe média: segundo este pedagogo que Pombal adoptou como modelo para a sua reforma do ensino básico e superior, o povo não deveria estudar, pois «que filho de pastor quererá ter aquele ofício se à idade de doze anos souber ler e escrever?». Faz lembrar as palavras de Salazar, ditas dois séculos depois: «se toda a gente souber ler e escrever, a instrução desvaloriza-se» (1935).

Estas são as razões fundamentais pelas quais não existe uma tradição portuguesa de fantástico literário: porque a Igreja é particularmente severa para com as manifestações e relatos sobre o sobrenatural - nenhum livro de horror passaria pelo crivo censório. É interessante notar que em outras latitudes o clero protestante acolheu com entusiasmo determinadas ideias fantásticas, como a possibilidade de Deus ter criado vida em outros planetas: a génese da ficção científica contemporânea remonta à primeira metade do século XIX e aos relatos fantásticos escritos por clérigos fascinados pelas sociedades interplanetárias. O seriado Great Astronomical Discoveries Lately Made by Sir John Herschel, L. L. D. F. R. S. &tc. at the Cape of Good Hope, publicado pelo jornal nova-iorquino The Sun em Agosto de 1835, informou o público de que a Lua tinha florestas, lagos e era habitada, entre outras espécies (como castores bípedes), por inteligentes híbridos de humano com morcego, capazes de construir igrejas. A descoberta só fora possível graças a um novíssimo procedimento óptico (descrito ao detalhe) que permitia a magnificação das imagens telescopiadas sem que elas perdessem definição. Estes textos, mistura de fantasia e realidade, foram escritos pelo editor do jornal, Richard Adams Locke, inspirado pelo cadinho cultural da altura, formado pelas crenças dos clérigos astrónomos. Poucos dias depois, a 3 de Setembro, James Gordon Bennett, editor do jornal rival Herald, chamou a esses textos «a scientific novel», antecipando em quarenta e um anos a designação «scientific fiction», criada por William H. L. Barnes na introdução que escreveu para a colectânea de homenagem póstuma a Caxton (W. H. Rhodes), e em noventa e um anos o uso dado por Hugo Gernsback no primeiro número da revista Amazing Stories.
Este é um exemplo fulcral de como uma tradição de literatura fantástica depende, de modo muito sensível, de fortes tradições de literacia, livre expressão de ideias e curiosidade intelectual, heranças que, infelizmente, ainda nos falecem.


Sobre o Fantástico na Literatura Portuguesa
           
Observar o modo como o Fantástico, enquanto género ou tonalidade de representação, foi sendo introduzido nas artes, desde as primeiras realizações culturais até hoje, é observar, ao mesmo tempo, mudanças expressivas nas consciências dos indivíduos: nós não pensámos sempre da mesma maneira. O Fantástico é uma excelente ferramenta para estudar essas mudanças porque, em simetria com as camadas estratigráficas que formam o subsolo, é capaz de conservar as preocupações que rodeiam os criadores, mas antes de prosseguir com o tema deste ensaio, e perceber quais os motivos pelos quais não é possível reconhecer uma tradição de literatura fantástica no cânone literário português, é importante definir, com brevidade, alguns conceitos.

O fantasma na máquina

O homem dotado de pensamento que se reconheça a si mesmo.
Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum

            Costuma apontar-se o período que correspondeu ao Renascimento como aquele em que a civilização ocidental se desagrilhoou da repressão medieval e, recuperando a tradição humanista das culturas grega e romana, progrediu em direcção ao modelo materialista do mundo que podemos observar hoje, contudo o fenómeno renascentista, longe de ter sido espontâneo e ter operado efeitos imediatos, foi, geograficamente, muito específico[1]. Os efeitos sociais, industriais e culturais que delegamos à intervenção do Renascimento são fruto de novíssimas formas de pensar o mundo desenvolvidas no período que se apelidou de Iluminismo. O Renascimento tratou-se de um movimento que conheceu raízes herméticas e que nunca se libertou de uma visão idealista do mundo[2]. Este “idealismo” nada tem a ver com a comum corrente filosófica, advogada por Hegel, entre outros, mas com uma percepção mais profunda que os indivíduos tinham do universo e do seu lugar na grande máquina do mundo; é legítimo dizer que até ao Iluminismo as civilizações acreditaram e se orientaram por uma explicação idealista do cosmos: uma interpretação sob a qual o mundo imaginal[3], o mundo das ideias, é mais real que o cenário físico em que nos movemos. Uma visão apoiada pela tese que expressa a criação da matéria pela mente e não o oposto.
            Para um indivíduo crente no sistema idealista do mundo a própria consciência é uma entidade. Isso foi bem satirizado no livro The Third Policeman de Flann O’Brien onde se pode ler que a personagem principal possui uma alma independente chamada Joe, com aspirações e objectivos diferentes dos seus. Na verdade, alma e espírito nunca foram a mesma coisa para os indivíduos crentes no modelo idealista do mundo: será preciso anotar que ambos foram conceitos distintos até à realização do oitavo concílio ecuménico (869-870), presidido pelos representantes do Papa João VIII; a unificação dos conceitos idealistas de alma e espírito serviu, sobretudo, para rasurar os credos herméticos dos textos eclesiásticos. Este momento é muito importante porque se o hermetismo idealista se divorciou dos textos e rituais da religião organizada continuou a ser transmitido não só no seio das sociedades secretas como através de um veículo insuspeito: o folclore.
            As inofensivas narrativas infantis que os ingleses chamam de “old wives’ tales” e “nursery rhymes”, os franceses de “contes de ma mère l’oye”, e os portugueses de “histórias da carochinha” são mensagens de sabedoria hermética disfarçadas de cantilenas e rimas para serem decoradas facilmente. Charles Perrault, Madame d’Aulnoy, Wilhelm e Jacob Grimm foram todos ocultistas que reuniram sabedoria hermética nesse formato: sob a máscara da historieta moral, narrada naquilo a que se chama “linguagem dos pássaros” em terminologia iniciática (ou, em calão popular português, “Espírito Santo d’Orelha”), poderiam ser difundidas ao abrigo da censura inquisitória e eclesiástica[4].
            Foi a partir do Iluminismo que mudámos o nosso modo de ler. Publicado em 1678, o primeiro romance moderno La Princesse de Clèves de Madame de La Fayette iniciou um movimento inédito que foi mimado pelos romancistas posteriores: o nascimento da narrativa do interior do indivíduo.
            A dádiva do nascimento do romance para a consciência do homem ocidental foi a noção que as vidas dos indivíduos poderiam ser histórias com princípio, meio e fim: sequências pertinentes de eventos e ocorrências – de aventura pessoal[5]. Embebida no materialismo filosófico que ameaçava derrubar o paradigma idealista do mundo, a nova consciência, assistida pelo nascimento das letras de expressão íntima, opostas às epopeias clássicas e outros relatos fabulosos de viagens, será responsável pela popularidade do herói individualista, desamarrado de responsabilidades colectivas. A abertura do mundo interno, da vivência isolada do outro, será hostil à inclusão de elementos fantásticos, apartados da vivência de todos os dias como ela é absorvida pelos cinco sentidos. Antes do nascimento do romance o cânone literário possuía dois modos: a “tragédia” e a “comédia”, sendo que a segunda era considerada uma forma menor de literatura. Contudo, a tragédia podia servir-se de elementos fantásticos sem correr o risco de ser olhada com soberba pela academia e pelos leitores. Só mais tarde o Fantástico começou a ser entendido como um modo obsoleto de contar histórias: uma velharia do sistema idealista de olhar o mundo.

Carne Rebelde

There would be tears and there would be strange laughter. Fierce births and deaths beneath umbrageous ceilings. And dreams, and violence, and disenchantment.
Meryn Peake, Titus Groan

A literatura fantástica é, por natureza, subversiva. Alguns dos temas que a compõem acabam por encontrar um reflexo em trabalhos literários insuspeitos. O conto gótico Six Weeks at Heppenheim de Elizabeth Gaskell possui, pelo menos, dois herdeiros de referência: os títulos Johnny Got His Gun de Dalton Trumbo e Die Verwandlung (A Metamorfose) de Franz Kafka. O livro The Private Memoirs and Confessions of a Justified Sinner de James Hogg antecipa o modelo plasmado por John Fowles em The Colector. Até Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago não pode deixar de evocar uma colagem a The Day of the Triffids de John Wyndam. Contudo, estes exemplos não são os melhores para debater o entrecruzar dos géneros fantásticos naqueles que em nada se lhes assemelham, porque não existe neles uma colagem ao modo como aquela que se pode ler nos romances editados sob a nomenclatura “Realismo Mágico”.
O realismo mágico, como hoje se compreende, é um epígono da tradição literária do Norte da Europa que encontrou maior expressão em autores sul-americanos como Juan Rulfo e Gabriel Garcia Marquez. O primeiro foi buscar inspiração e temas para Pedro Páramo ao livro Sjálfstætt fólk (Gente Independente) de Halldór Laxness, publicado vinte e um anos antes. Existem em ambos os romances o respigar da iconografia mítica e religiosa dos países de origem, misturada num árido contexto rural descrito com realismo agreste. A introdução dos elementos fantásticos (os fantasmas de Rulfo e os espectros e bruxas de Laxness) no panorama político e económico do período pós-revolução industrial, no qual grassava a extrema pobreza e a confusão das populações diante da perda da cultura ancestral face aos avanços da sociedade tecnológica, serve para criar alegorias que veiculam nostalgia e utopia (como a socialista). Por outro lado, atendendo ao tom das suas narrações, não considero Borges um escritor de realismo mágico, como foi, por exemplo, o autor holandês Gerard Reve, mas um escritor de ficção fantástica.
A partir do século XVIII a literatura fantástica concebeu uma corrente designada “romance gótico”, um spin-off dos romances de cavalaria[6]. Tratou-se, originalmente, de um produto anglo-saxónico que se generalizou pela Europa em diferentes denominações: “roman noir” em França, do qual o “giallo” italiano é um sucessor evidente, e “schauerroman” (romance de arrepios) em alemão. O género caracterizou-se pela criação de ambientes de elevada decadência arquitectónica e moral e pela integração total de elementos sobrenaturais (espíritos, monstros, demónios) em consórcio com as personagens humanas. Obras como Le Diable Amoreux de Jacques Cazote, La Morte Amoureuse de Théophile Gautier, The Monk de Matthew Lewis ou The Necromancer de Carl Friedrich Kahlert encontram-se entre os primeiros títulos que se atrevem a cruzar o sobrenatural, o disforme e o grotesco, com a sexualidade, vulgarmente tratada com pudor. Esta corrente de literatura fantástica influenciou toda a produção literária dos séculos XIX e XX no que diz respeito à ficção policial e de horror.

In the literature of the fantastic, necrophilia habitually assumes the form of a love consummated with vampires or with the dead who have returned among the living. This relation can once again be presented as the punishment for excessive sexual desire; but it may be present also without its receiving a negative value – as with the relation between Romuald and Clarimonde for instance. The priest discovers that Clarimonde is a female vampire, but this discovery produces no change in his feelings.[7]      
           
A sexualidade e a blasfémia presente nos romances góticos foram ainda muito influentes para o movimento simbólico e modernista, como se pode decalcar das obras de Charles Baudelaire, Paul Verlaine e Arthur Rimbaud. Mas se estes autores se apropriaram dos códigos do Fantástico à guisa de alegoria – de símbolo – isso não invalidou o facto do género ter continuado a ser subversivo; uma literatura de adversidade à norma:

As a critical term ‘fantasy’ has been applied rather indiscriminately to any literature which does not give priority to realistic representation: myths, legends, folk and fairy tales, utopian allegories, dream visions, surrealist texts, science fiction, horror stories, all presenting realms ‘other’ than the human. A characteristic most frequently associated with literary fantasy has been its obdurate refusal of prevailing definitions of the ‘real’ or ‘possible’, a refusal amounting at times to violent opposition. (…) Such violation of dominant assumptions threatens to subvert (overturn, upset, undermine) rules and conventions taken to be normative. This is not in itself a socially subversive activity: it would naïve to equate fantasy with either anarchic or revolutionary politics. It does, however, disturb ‘rules’ of artistic representation and literature’s reproduction of the real.[8]

O texto prossegue com ênfase neste distúrbio da forma de representar artisticamente o mundo.

A morte é o meu ofício

«Nem os mortos escapam.»
Pregão popular português (séc. XVII?) sobre o costume que os oficiais da Inquisição tinham de desenterrar os indivíduos que eram condenados já cadáveres para os enforcar ou imolar.

Com uma lista de crimes a punir onde figuravam práticas como a «sodomia», o «erotismo» e a «concupiscência»[9] é flagrante que a Inquisição, implantada em Portugal em 1536 por D. João III, coagido pelo cunhado Carlos V, era uma fervorosa inimiga dos prazeres da carne. Contudo, também foi adversária do espírito já que perseguiu a burguesia intelectual portuguesa desde o século XVI até ao século XVIII: foram quase trezentos anos de violento jugo teocrático (duzentos e oitenta e cinco para ser rigoroso) que dominaram as artes e a cultura portuguesas – é ingénuo pensar que este legado não deixou sequelas.
Em 1539 Carlos V conseguiu a licença do Papa Paulo III para os Teólogos de Lovaina elaborarem um índice de livros a proibir. A primeira lista de livros portugueses proibidos foi publicada em 1547, mas seguiram-se mais duas em 1551 e 1561. O terceiro índice expurgatório é o mais completo, incluindo diversas instruções contra a compra, venda, troca e conservação dos títulos proibidos. Os visitantes vindos do estrangeiro estavam obrigados a mostrar os seus livros a um representante da Inquisição, e aqueles que herdavam bibliotecas familiares só poderiam usufruir delas após rígida inspecção. Os autores estavam classificados em três categorias: os de 1ª, aqueles cujas obras eram sumariamente rejeitadas; os de 2ª, aqueles que apenas seriam censurados em determinadas partes; e os de 3ª, os anónimos. Este terceiro índice foi organizado por Frei Bartolomeu Ferreira, censor de Camões em Os Lusíadas, e colocava de sobreaviso os leitores contra toda a literatura de ficção onde existissem referências ao amor e aos preceitos do clero. Proibia, inclusive, o livro Utopia do canonizado Thomas More. Será uma iniciativa calamitosa para a cultura renascentista portuguesa: entre os perseguidos pela Inquisição estiveram o humanista Jorge Ferreira de Vasconcelos, o cronista João de Barros (autor da primeira gramática europeia que há referência) e o escritor Bernardim Ribeiro. Gil Vicente foi perseguido e censurado pelas denúncias constantes que fez às desigualdades sociais, mas também os poetas Chiado, amigo íntimo de Camões, e Sá de Miranda (o pai do soneto português). Note-se que a Inquisição Portuguesa pecava por ser mais papista que o Papa, pois se em Espanha Don Quijote de La Mancha de Miguel de Cervantes circulava à vontade, e era um sucesso, encontrava-se proibido em Portugal.
Livros considerados heréticos, na esteira de Lutero e Calvino, e livros que mencionassem artes mágicas, como a astrologia e a adivinhação, não passavam no exame censório. Por conseguinte, podemos imaginar que a literatura fantástica realizada no período em que a Inquisição manteve o poder de purgar obras e autores não conheceu qualquer difusão junto dos leitores em potência. Lembrem-se que os mestres das Escolas dos Mistérios, e outros guardiães das doutrinas herméticas tiveram de encontrar outras formas de passar os ensinamentos uns aos outros, e ao público, como disfarçá-los de contos e lenga-lengas infantis, para fugir aos excessos de zelo dos inquisidores. Só depois da extinção do Conselho Geral do Santo Ofício, em 1821 – já em pleno século XIX! –, é que a literatura fantástica conseguiu, finalmente, penetrar no nosso país – e timidamente:

Quanto a autores, não os encontramos na nossa literatura de terror com individualidade e decididamente negros. Podemos, no entanto, destacar alguns, em cuja obra, avaliada em conjunto, é possível encontrar uma linha de influência constante dos objectivos, géneros e processos da escola. Além de Herculano, Rebelo da Silva, Camilo e Arnaldo Gama, há que mencionar Pereira da Cunha, Correia de Lacerda, Serpa Pimentel, Costa e Silva e Antónia Pusich. Daqueles que se restringiram praticamente a um género, temos, antes de todos, Mendes Leal Júnior, no teatro, e ainda Alfredo Hogan e Aires Pinto de Sousa, na novelística. As várias tendências literárias modernas, que se podem classificar de negras, não encontraram cultores em Portugal. [10]

O Fantástico, enquanto literatura de subversão, enquanto modelo herético de representação do mundo, afigurou-se perigoso para a ordem eclesiástica à guarida da Inquisição: se o mundo plasmado nos romances de literatura fantástica era caótico, selvagem, sem redenção ulterior, então Deus não assegurava a ordem natural das coisas – talvez até nem sequer existisse!... No modelo idealista do mundo as más intenções, aquelas que vão contra Deus, estão condenadas ao fracasso. Contudo, os cultores do género fantástico não só pareciam divertir-se com as obras como não eram castigados pela Providência. Esta observância subtil, mas terrível, seria capaz de derrubar os alicerces de qualquer crente que viesse a ser influenciado pela leitura ou pelo simples contacto com os livros.
Com efeito é inegável que a literatura fantástica se lavrou em território herético: nos países de expressão anglo-saxónica, e na Escandinávia, regidos por outras instituições que não a igreja católica apostólica romana. É extraordinário que em nenhumas das fontes que consultei sobre literatura fantástica esse facto seja sequer aflorado; o que não é de estranhar já que a maioria dos títulos ensaísticos que fazem parte da minha biblioteca são escritos por autores de expressão inglesa aos quais o conceito é alienígena. Faz falta uma obra que se dedique, de um modo empenhado, ao estudo da literatura fantástica portuguesa – ou à escassez dela –, mas, a escrever-se, acredito que a solução do enigma tem, necessariamente, de passar por aqui: pela repressão religiosa operada pela Inquisição durante quase trezentos anos sobre o tecido cultural do país, extinguindo quaisquer hipótese do género fantástico crescer e difundir-se pelos nossos antepassados leitores.
Sintetizando: o Fantástico é, por excelência, uma literatura de subversão porque faz imaginar, logo foi alvo preferencial da ordem teológica inaugurada pela Inquisição. Tal como em Portugal, também em outros países onde a cultura conheceu, e ainda conhece, uma forte influência religiosa não existe uma tradição literária devotada ao género fantástico.

Fahrenheit 451

Our biggest mistake was teaching them to read.
We won’t do that anymore. 
Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale.

O intervalo entre o término do regime teocrático da Inquisição e a instauração do regime teocrático do Estado Novo, em 1933, durou pouco mais de cem anos, tempo insuficiente para mudar o paradigma de profundo analfabetismo no qual o país se imergia. Até às vésperas da extinção do aparelho inquisitório publicaram-se em Portugal, em média anual, cerca de cem edições. Em França, em 1818, imprimiram-se 4917 livros e brochuras, mais do dobro do que Portugal publicou em vinte anos. À entrada do século XX a situação geral era a de analfabetismo: saber ler e escrever era uma excepção entre a população rural e, mesmo nas cidades, somente uma quarta parte dos homens havia frequentado algum grau de ensino.[11]
Em plena Inglaterra vitoriana já as mulheres liam e manifestavam opiniões; pouco depois, a partir de 1918, era-lhes reconhecido o direito de voto. Em Portugal isso só chegaria treze anos mais tarde. Portugal sempre fora um país hostil ao desenvolvimento literário e os cem anos que duraram entre o fim da Inquisição e o início da ditadura de Salazar não foram suficientes para colmatar essa lacuna. Entre 1911 e 1919, durante a Primeira República, o aparelho de Estado tomou várias medidas contra o analfabetismo criando os primeiros ensinos oficiais Pré-Primário e Primário Geral gratuitos. Criou as Escolas Normais de Lisboa e do Porto, a Faculdade de Direito de Lisboa, a Faculdade de Letras de Coimbra e do Porto e muitas escolas superiores que viriam a constituir as Universidades de Lisboa e Porto. As iniciativas de divulgação cultural e alfabetização foram exemplares: as Escolas Móveis, as conferências e os cursos nas províncias mais as bibliotecas itinerantes; estabeleceu-se a leitura pública de jornais em diversas aldeias. Contudo, logo a partir de 1926, com o início da ditadura militar do general Gomes da Costa, e o decreto-lei que instaurou a censura, o percurso foi interrompido. Como escreve Luiza Cortesão:

Não se pode deixar de melancolicamente reflectir sobre o que hoje seria o nosso povo se esta acção tivesse prosseguido.[12]

Saindo de uma censura para outra, igualmente teocrática, e quase imediatamente, nós não fomos capazes de criar, e sustentar, uma cultura literária saudável.
Através de uma propaganda muitíssimo bem desenhada, o regime do Estado Novo soube, de geração para geração, fomentar a ideia que o conhecimento, o progresso científico e a imaginação eram ferramentas luxuosas que não serviam o bom patriota, disposto a sacrificar-se pela nação.

E digo: este povo, para o que sente, já sabe demais. Intensifique-se a educação religiosa; proteja-se a instituição doméstica; olhe-se a sério pelo estado dos costumes deste povo – forme-se o carácter conveniente e, depois, voltamos à Instrução. O Padre Cruz faz mais, num dia, pelo bem de Portugal, do que os mestres primários todos juntos num ano. Ele não ensina a ler e a escrever: educa almas; arranca corações à perversidade – e quem sabe quantos lá foram lançados pela acção do A B C![13]

Será a única inteligência valiosa, considerável e útil à sociedade a que se revela na aptidão para as ciências e para as letras? (…) Uma criança inteligente filha de um operário hábil e honesto pode, na profissão de seu pai, vir a ser um trabalhador exímio, progressivo e apreciado, pode chegar a fazer parte do escol da sua profissão, e assim deve ser. Na mecânica da escola única, seleccionado pelo professor primário para estudar ciências para as quais o seu espírito não tem a mesma preparação hereditária que tem para o ofício, não passará nunca de um medíocre intelectual, quando muito um homem sábio mas incapaz de singrar na vida nova que lhe indicaram sem o ouvir. (…) Não é difícil de notar que há geralmente nas famílias uma ascensão da inteligência prática e recolhida até ao talento fecundo e brilhante. As ideias, as noções, as experiências vão-se elaborando através umas poucas de gerações até florir, em determinada altura, na pessoa de um dos membros da linhagem. (…) A gestação duma inteligência superior é trabalho de muitos anos, de séculos até. Resume-se nela toda a experiência de uma família, concentra-se então tudo quanto através das idades naquela linha de sucessão se foi acumulando no sub-consciente.[14]

            Durante quase meio século (de Maio de 1926 a Abril de 1974) a maioria dos artistas e escritores portugueses sentiram-se refreados, conscientes que a mais simples frase os poderia levar a confrontos indesejáveis com os censores:

Nessa única conversa que tive com um censor, ele trouxe-me um exemplar, censurado, com o célebre lápis azul da censura – exemplar que eu tenho em meu poder –, daquele meu livro Histórias de Amor, onde verifiquei que eles cortaram, logo a abrir, a palavra «nu», numa frase que começa assim: «estava nu em cima da cama…». Bastou-me ver isto para perceber que havia ali um propósito de queimar tudo e mais alguma coisa (…) Aliás, a simples referência ao Éluard e ao Pessoa (ao Fernando Pessoa, imagine-se só!), foram simplesmente abaixo.[15]

Não só as menções ao regime de Salazar, ao comunismo e à condição feminina foram censuradas. Tudo o que consistisse em laivos de laicismo e ataques à religião católica foi abafado; e também obras de ficção fantástica; como é exemplo Les Paradis Artificiels de Charles Baudelaire e outros autores contemporâneos. Existe um despacho que proíbe a publicação de um livro intitulado Contos de Terror, de vários autores do cânone e traduzido por José Vilhena[16]: a religião tratava de preencher o lugar vagado pela imaginação, pela fantasia. A paupérrima difusão de conhecimento científico, em desproporção à propaganda religiosa, contribuiu, de certeza, para que surgissem pouquíssimos autores portugueses de Ficção Científica, e ainda menos leitores.
Se um género se faz com autores, e editores, é verdade que também se faz de leitores: num país de gente que não lê, onde o analfabetismo foi fomentado pelas classes dirigentes, como mecanismo de controlo e hegemonia, sendo ainda observado com desconfiança pelas outras, é natural que não se verifiquem condições semelhantes às presentes nos países culturalmente mais ricos. Condições convenientes à saúde do tecido cultural.
É que nós, se calhar, ainda não aprendemos a sonhar.


David Soares, Novembro 2007.


[1] A History of Civilizations de Fernand Braudel (Penguin Books, 1993, pp 343-344) e The New Penguin History of the World de J. M. Roberts (Penguin Books, 1992, p 540).

[2] The Secret History of the World de Jonathan Black (Quercus, 2007, p 279) e Giordano Bruno and the Hermetic Tradition de Frances Yates (Routledge, 2002, pp 13-20).

[3] De acordo com a terminologia criada por Henri Corbin.

[4] A designação de “old wives’ tales” é a mais antiga e foi cunhada por Lúcio Apuleio em O Burro de Ouro como “anilis fabula”. In, From the Beast to the Blonde de Marina Warner (Farrar, Straus e Giroux, 1994, p 14).
      
[5] Ou aquilo que Umberto Eco apelida de «experiência pessoal do destinatário», in Sobre Literatura (Difel, 2002, pp 199-205).

[6]
Exemplos de poemas que poderão ter influenciado Walter Scott e Tobias Smollett, os “pais” do romance de cavalaria, são os épicos Beowulf (1010?), La Chanson de Roland (1150?) e Herzog Ernst (1180?). As chamadas “novelas do Graal”, cujo primeiro exemplo é consensual apontar-se como sendo Perceval, Le Conte du Graal de Chrétien de Troyes (1180-1190?), têm, por outro lado, raízes nos mitos galeses compilados numa sequência lógica, e dramática, em The Mabinogion por Evangeline Walton. São, por mérito próprio, um sub-género dentro dos romances de cavalaria já que possuem preocupações herméticas ausentes nos segundos. É seguro afirmar que os pioneiros do género gótico em Portugal, na tradição de Walpole e Radcliffe foram Alexandre Herculano com Eurico, o Presbítero (1844) e Almeida Garrett com Frei Luís de Sousa (1844). Convém também incluir Sampaio Bruno com o ensaio O Encoberto (1804) e o inacabado Os Cavaleiros do Amor, esboço para romance publicado postumamente em 1996.
   
[7] Tzvetan Todorov, in The Fantastic: A Structural Approach to a Literary Genre (Cornell University Press, 1975, pp 136-137). O excerto fala sobre La Morte Amoureuse de Théophile Gautier (1836).

[8] Rosemary Jackson, in Fantasy: The Literature of Subversion (Routledge, 1981, pp 13-14).

[9] In Judeus, Cristãos-Novos e a Inquisição de S. Alexandre (Prefácio, 2002, p 89). Ver também a obra em três volumes de Alexandre Herculano, História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (Edições Europa-América).

[10]
Maria Leonor Machado de Sousa, in A Literatura “Negra” ou de Terror em Portugal: Séculos XVIII e XIX (Editorial Minerva, 1978, p 286).

[11]
In Diário da História de Portugal de José Hermano Saraiva e Maria Luísa Guerra (Selecções do Reader’s Digest, 1998, p 363). A acompanhar o texto encontra-se uma tabela muito completa com o número total de edições, reedições e traduções de obras estrangeiras realizadas nesse período.

[12] In Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, p 18).

[13] Alfredo Pimenta, in Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, p 209).

[14] Marcelo Caetano, in Escola, Sociedade: Que Relação? (Edições Afrontamento, 1988, pp 204-205).

[15] José Cardoso Pires, in A Censura de Salazar e Marcelo Caetano de Cândido de Azevedo (Editorial Caminho, 1999, pp 103-104). Outros dois tomos que iluminam esta questão da censura com documentação da época são Mutiladas e Proibidas de Cândido de Azevedo e Os Segredos da Censura de César Príncipe, ambos da Editorial Caminho (1997 e 1979, respectivamente).
 
[16] Os Segredos da Censura de César Príncipe (Editorial Caminho, 1979, p 122).


terça-feira, 19 de novembro de 2013

Vídeo das Conversas de Horror no FF 2013



Vídeo da mesa-redonda Conversas de Horror, que decorreu no Fórum Fantástico 2013, no passado dia 15 de Novembro: são quase quarenta minutos de um debate (moderado por Rogério Ribeiro) que se estendeu durante hora e meia e no qual tive a surpresa e a satisfação de, no final da minha segunda intervenção, ter sido aplaudido espontaneamente por toda a assistência (momento que, infelizmente, este vídeo não chega a mostrar).
Embora muitíssimo desigual, foi um debate muitíssimo interessante que me deu vontade de, num futuro próximo, sintetizar aqui no weblog uma breve história do horror, com base nas minhas apuradas investigações (escrevi «breve», porque o tema só poderá ser desenvolvido de modo satisfatório num livro).

O vídeo publicado acima foi filmado pelo autor português de ficção científica Luís Filipe Silva. Se algum leitor dos Cadernos de Daath filmou integralmente esta conversa ou tem conhecimento da existência desse registo, por favor contacte-me através do endereço de email indicado no lado direito desta página, de modo a que eu possa divulgar o vídeo. Obrigado.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Entrevista com António de Macedo: 1ª Parte


Eis a primeira parte de uma entrevista exclusiva e extensiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Uma conversa diferente, de autor para autor, de amigo para amigo, na qual se fala da obra cinematográfica, literária e ensaística de Macedo, além de muitos outros temas, de ordem histórica, esotérica e filosófica, sempre em jeito de puro desafio intelectual, pura descoberta, puro deleite. Meu e do António, obviamente, e, a partir de agora, também vosso. Desfrutem.


Entrevista com António de Macedo – 1ª Parte
 
David Soares – O António diz que o cinema deve servir para filmar aquilo que o olho não vê. Outro cineasta, também dedicado ao universo do Fantástico, o David Cronenberg, disse no início da carreira dele que queria filmar o infilmável…

António de Macedo – É curioso. Eu não conhecia essa frase do Cronenberg, mas, de facto, de certa maneira…

DS – A minha pergunta é a seguinte: eu acho que tanto uma intenção como a outra caminham no mesmo sentido…

AdM – Sim, senhor…

DS – …ou seja, filmar algo que não se vê todos os dias…

AdM – Algo que não é facilmente captável pelo quotidiano, exactamente.

DS – Filmar o infilmável e o invisível…

AdM – Exacto.

DS – É curioso, porque a abordagem de cada um é completamente diferente. O Cronenberg é um ateu confesso, não acredita no sobrenatural, não acredita em Deus nem na alma, e, pela obra do António, eu intuo que consigo passa-se o contrário. O António não é ateu…

AdM – Não, não sou ateu. Eu costumo dizer que sou um céptico místico. Ou seja… A minha crença não é uma crença cega, é uma crença crítica. Portanto, sou um céptico místico e por uma razão muito simples, até por simples ignorância… Ou seja, existe um certo número de coisas que a ciência vai descobrindo, a pouco e pouco, e isso é bem visível. Vai desvendando coisas que não eram desvendáveis e que, antes de não serem desvendáveis, eram consideradas como magia ou sobrenaturais, e que, a pouco e pouco, vão deixando de o ser. Mas nunca deixam de ser: isso é que é interessante. Há sempre um resíduo e é esse resíduo que me faz ser um místico, mas, por outro lado, sou um céptico, precisamente devido à minha formação científica, de arquitectura, de matemática… No tempo em que estudei arquitectura tive de estudar matemática a sério, como se dizia na altura, matemática superior… cálculo infinitesimal, matrizes, cálculo integral e diferencial… derivadas e integrais… menos, claro, as matemáticas que surgiram depois, a teoria do caos, por exemplo, que no meu tempo ainda não se dava. Portanto, tenho uma formação matemática e científica que, de certa maneira, me leva ao cepticismo, mas, por outro lado, reconheço que há um resíduo… Vai ficando sempre um resíduo… E é esse resíduo que, para mim, é o mistério. Portanto, não posso ser ateu, porque o ateu é um crente, isto é: acredita que Deus não existe. Eu não acredito que Deus não existe e também não acredito que Deus existe, porque, sendo posições de crença, para mim não significam nada. Isto é: ou consigo demonstrar ou não consigo. Se consigo demonstrar, perfeito, está demonstrado. Se não consigo demonstrar ou se a própria ciência, no estado a que chegou, não consegue demonstrar… ou, como querem os mais cépticos, “ainda” não consegue demonstrar… é porque estamos num terreno “de crença” que só compromete o próprio que por ele envereda ou que o adopta. Eu não discuto essa diferença subtil… Isso significa que continua a haver um resíduo. Até que ponto é que esse resíduo se vai estreitando, até eventualmente desaparecer um dia, é muito difícil de dizer. É como aquelas curvas matemáticas e geométricas representáveis em coordenadas cartesianas, as assimptotas, que se aproximam infinitamente uma da outra mas que nunca se chegam a tocar, porque há sempre um resíduo de intocabilidade. Portanto, é esse resíduo de intocabilidade que, para mim, é o mistério. É isso que o meu cinema, e não só, a minha literatura, os meus estudos e investigações, procuram penetrar… Nesse impenetrável interstício, nesse mistério. Daí eu dizer que não sou, exactamente, ateu… Acabo por não saber bem o que é que isso quer dizer, porque ser ateu é uma coisa definida. Pronto, uma pessoa diz “sou ateu”, que confortável… Eu não sou ateu nem “teu”, nem “desateu”.

DS – Mas também não é um céptico no sentido pirrónico?

AdM – Não, no sentido pirrónico, não.

DS – Não?

AdM - De maneira nenhuma. O céptico pirrónico é aquele que…

DS – Que é um relativista, que diz que não é possível saber nada.

AdM – Não, pode-se sempre e a prova disso é que a ciência vai progredindo. As assimptotas vão-se aproximando uma da outra. Mas nunca se tocam ou tocam-se no infinito, como se diz em linguagem matemática, mas o tocar-se no infinito, para nós, que sentido terá? Nós não vivemos infinitamente. Serão triliões de anos? Não sei… E é esse resíduo, esse misterioso resíduo intersticial, que eu acho que é fascinante explorar, seja em cinema, seja na literatura, seja nos ensaios.

DS – A minha pergunta ia nesse sentido: como é que tanto uma postura como a outra influi na criação dos universos invisíveis, nos universos fantásticos? Ou seja, o que é que têm essas posturas, de crente e não-crente, em relação à criação de um universo que é, por si próprio…

AdM – Incaptável…

DS – Sim. Ou fantástico ou maravilhoso…

AdM – Exactamente.

DS – Era nesse sentido, mas já percebi, pela resposta que deu, como é que isso se processa.

AdM – Como se processa em relação a mim. Em relação ao Cronenberg não sei. O tipo de abordagem que eu faço… Cá está, a zona de investigação quer dele, quer minha, será semelhante, as nossas abordagens é que serão diferentes, eventualmente. E a minha abordagem é sempre no sentido de deixar uma porta aberta para um certo optimismo, apesar de tudo.

DS – Então, o António, apesar de não ser um não-crente, ou de ser um céptico místico, não descura a ciência e daí, nas suas abordagens à ficção científica, ter uma base científica rigorosa..

AdM – Absolutamente. Até porque a ciência é fundamental e ainda bem que existe ciência que investiga e vai cada vez mais longe. Provavelmente, nunca chegará lá ao… Nunca chegará a Deus, suponho, seja lá o que isso queira dizer. Não sei, nem me preocupo… Mas isso é fundamental. Realmente, a própria natureza do ser humano é investigar e descobrir.

DS – Até que ponto é que os seus filmes, que têm um universo muito próprio, intenções muito pessoais… Eu considero o cinema do António como sendo cinema de autor, independentemente dos filmes, isoladamente, se poderem inscrever na ficção científica, no policial ou até no chamado “cinema novo”, mas… Até que ponto é que os críticos estão errados no seu preconceito contra a chamada ficção de género, quando assumem que, por ser ficção de género, as obras têm de seguir uma fórmula fixa, o que não é verdade…

AdM – Não é verdade.

DS – …porque pouquíssimos autores, autores com “A” grande, que trabalham naquilo que é suposto convencionar-se como sendo ficções de género, seguem fórmulas. Eles criam universos autorais, por mérito próprio.

AdM – Absolutamente. Estou perfeitamente de acordo.

DS – Como é que o António lidou com o facto de estar a construir um cinema autoral, com imagens próprias, que depois vai explorando nos seus filmes, e com a postura da nossa crítica que desdenha da chamada ficção de género? Como é que se consegue chegar a estas pessoas, como é que se consegue transmitir a mensagem?

AdM – Não se consegue. Não se consegue, até porque há um preconceito, da parte desses críticos, chamemos-lhe assim, que é um preconceito que os cega. Há uma cegueira, há uma incapacidade de ver, ou de querer ver… E não é, vamos lá a ver, não é fácil fazer chegar essa mensagem. Não é fácil… Provavelmente, nem será desejável, não sei… Em dado momento, ao principio, quando era cineasta jovem, isto é, no meu primeiro filme, o «Domingo à Tarde», no segundo, no terceiro…

DS – Que já contém alguns elementos que, na minha opinião, irão reverberar na sua obra mais à frente…

AdM – Absolutamente, absolutamente. O «Sete Balas Para Selma», que é um filme policial, “policiário”, como diria o Fernando Pessoa, já tem ficção científica lá pelo meio, também, pronto, há umas passagens… Mas eu ainda me preocupava com aquilo que os críticos diziam… E diziam sempre muito mal, curiosamente, por qualquer razão misteriosa, os críticos cinematográficos dessa época, na sua maioria, sempre me tiveram uma raiva muito grande. Eu suspeito que tenha a ver com isso, com o facto de eu nunca esconder o que penso e dizer sempre claramente o que eu achava… Por exemplo, da tal nouvelle vague, muito prezada pelos tais críticos, e que para mim era um movimento mais cosmético do que de conteúdos, que se servia duma estética muito interessante para escamotear um gigantesco vazio de ideias… embora os meus primeiros filmes, ao principio, se pudessem, de certa maneira… confundir-se com algumas propostas visuais da nouvelle vague, mas não era bem inserirem-se na nouvelle vague, era mais num outro tipo de “cinema novo”.

DS – Quanto muito, tinham uma personalidade “nouvelle vaguesca”, se calhar…

AdM – Vagamente… Era, vagamente, uma estética que existia naquela altura, mas contra a qual eu lutei e, apesar de tudo, procurei… Embora, em alguns dos filmes, como o «Domingo à Tarde», possa dar essa aparência… Mas não completamente, porque eu, recordo-me, até disse numa entrevista, já não me lembro onde… Por exemplo, o Elso Roque, director de fotografia do «Domingo à Tarde», teve grande parte da sua formação profissional na escola estilística do Raoul Coutard, de quem foi assistente, e o estilo do Coutard, um dos grande nomes da fotografia cinematográfica dessa época, que fotografou filmes do Truffaut, do Godard, do Jacques Demy… o estilo nouvelle vague do Coutard, dizia eu, era fazer uma fotografia em preto e branco com uns cinzentos luminosos, muito algodoada e delicodoce, ou de cores muito simples e muito suaves, e o meu cinema era do tipo germânico, como eu costumava dizer na altura… Era mais a tonalidade telúrica do Fritz Lang, do Murnau, do Wegener… ou as óperas do Wagner, que não era cineasta nem expressionista mas já trazia a semente… Eram os Nibelungos… Depois o Bergman, e também o Sjöström, aquele cinema… A «Carroça Fantasma»… Felizmente o Elso Roque compreendeu e aceitou muito bem a diferença e o «Domingo à Tarde» ficou como eu queria, mais germânico do que francês… Todo aquele universo nórdico ou germânico, lunar, embora eu reconhecesse que a minha, como é que eu hei de dizer?, a minha postura, até de pesquisa, era mais solar. Que é a tal história… Nós vivemos aqui numa zona que é solar e daí as dificuldades em haver um fantástico português, como há o fantástico germânico, o inglês, francês, o expressionismo e até o gótico. Em Portugal, o gótico pegou mal, tem pegado mal, embora eu próprio tenha feito coisas, os contos neo-góticos, por exemplo, mas, realmente, há essa diferença. Mas lidar com os críticos, era a pergunta…

DS – Não tanto com os críticos como com a crítica, em geral.

AdM – Esse tipo de pensamento, digamos assim, estava subjacente. Embora os meus primeiros filmes já prenunciassem um universo fantástico, evidentemente, eu, com a crítica, comecei a aprender, ao longo dos anos… Fiz cinema desde os anos sessenta, e até aos anos noventas e tais foram trinta e muitos anos a fazer cinema, portanto tive muitas críticas… Sempre filmei o que eu queria e não o que os críticos gostariam que eu filmasse, e isso irritava-os… Algumas críticas — poucas — até diziam bem, curiosamente, de vez em quando lá vinha uma… E eu comecei a perceber que havia um fenómeno que era interessante e que era o seguinte: às vezes o mesmo filme (e quem diz filme diz livro, diz uma peça, um objecto artístico qualquer) suscita críticas até bastante opostas. Como é que é possível o mesmo objecto suscitar reacções tão diferentes? E então veio-me à ideia uma coisa… Quando estava a estudar o curso de arquitectura, como nessa época já havia desemprego, como se diz agora… Já nos anos quarenta ou cinquenta, quando eu fiz o curso, havia desemprego e um jovem arquitecto acabado de se formar tinha muita dificuldade em arranjar emprego. Eu consegui arranjar emprego na Câmara [Municipal de Lisboa], mas era difícil, geralmente arranjava-se emprego como professor, e nesse tempo, em que o Salazar ainda estava vivinho da costa, ele obrigava a que, para se poder ser professor, tinha de se tirar um curso de Ciências Pedagógicas, chamava-se assim. Era um curso de dois anos, que era dado na Faculdade de Letras. E eu tirei esse curso. Portanto, em paralelo com o curso de arquitectura, fui para a Faculdade de Letras, frequentei lá aquilo… Não concluí, mas frequentei o curso. Não era uma licenciatura de quatro anos ou cinco, como eram as outras, era de dois anos e tínhamos de ter esse diploma para sermos professores. Além do diploma da especialidade, engenheiro, arquitecto, médico, não importa o quê… Letras, matemática… Tinha de ter o diploma do curso de ciências pedagógicas para exercer pedagogicamente a actividade, para se ser professor. E esse curso ensinou-me muita coisa porque tive professores excelentes, na Faculdade de Letras, como por exemplo o filósofo e investigador Delfim Santos, o Artur Moreira de Sá, professor de filosofia e de psicologia aplicada, o Edmundo Curvelo, professor de Lógica moderna… Era o mais avançado da lógica booleana e daquela lógica moderna que havia na altura… um dos grandes nomes do pensamento português… E outros professores, nomes que, depois, se tornaram conhecidos na ensaística… E uma das cadeiras que nós tínhamos chamava-se Psicotécnica, que ensinava a estudar as reacções psicológicas das pessoas, dos alunos, e isso ensinou-me muita coisa, curiosamente… Foi aí que aprendi o famoso Teste de Szondi, para se descobrir a verdadeira personalidade de uma pessoa. Esse Teste de Szondi é muito interessante: tira-se uma fotografia a uma pessoa, de frente; depois pega-se nessa fotografia e corta-se ao meio; depois pega-se na metade direita e duplica-se, invertendo-a, como num espelho, e forma-se uma cara inteira feita com as duas metades simétricas “direitas”. Em seguida repete-se o processo com a metade esquerda e obtém-se uma nova cara feita com as duas metades simétricas “esquerdas”. Obtêm-se assim duas fotografias da mesma cara completamente diferentes, e quando olhamos para elas… ficamos horrorizados porque vemos numa delas o Dr. Jekyll e na outra o Mr. Hyde! Todas as pessoas têm isso. Ficamos a ver o lado bom e o lado mau da pessoa. É horrível, horrivelmente fascinante… Nós ainda aprendemos uma série de coisas, além de outros testes… Um outro foi o famoso Teste de Rorschach, o das manchas de tinta… O Teste de Rorschach é fascinante e é composto por dez manchas… O que é estranho é que a gente mostra uma mancha de Rorschach a uma pessoa… “O que é que isto lhe parece?”. Uma diz: “Isto parece uma borboleta.” Depois mostra-se a mesma mancha a outra pessoa e ela diz: “Isto parece uma caveira.” Isto fazia-me confusão à cabeça… Interessante como uma olha para a mancha e diz que lhe parece uma borboleta e outra olha para a mesma mancha e diz que lhe parece uma caveira… De repente, fez-se luz no meu espírito: “espera lá, já percebi o segredo da crítica, sobretudo da crítica portuguesa…” A tal crítica que é impressionista, não da crítica estrangeira que é mais científica. Não se presta a isto que vou dizer agora. A crítica portuguesa, de livros, de filmes, do que quiser, é impressionista, vive mais de impressões fugazes do que de critérios, e, então, o que é que verificamos? O que é que eu descobri? Por que é que há umas críticas, em relação ao mesmo filme ou ao mesmo livro, em que uma diz maravilhas e outra diz horrores?  Porque é assim… A crítica em Portugal não faz a análise do objecto criticado: faz a psicanálise do crítico. Repare bem na diferença. Você começa a ler as críticas que se escrevem aí e consegue fazer a psicanálise de quem escreveu a crítica. A crítica portuguesa, na maior parte dos casos, age por impressões e não por análise objectiva. Fazer uma análise objectiva de uma obra de arte poderá ser um contra-senso, reconheço isso. Há sempre uma carga de subjectividade na crítica, por muito científica que seja, é evidente. Agora… Há certas regras e certos critérios que já vêm de longe, e que começaram por ser estabelecidos no século XVI pelo dominicano português Frei Francisco Foreiro, com as suas famosas dez regras de exame e avaliação de livros, para uso dos censores da Inquisição, e que o papa ordenou que fossem de norma para toda a Igreja… Como eu costumo dizer, a crítica portuguesa aproveitou do Foreiro o seu pior lado, que é o lado censório, e esqueceu do Foreiro o seu melhor lado, que é o lado científico.

DS – Aproveitou só as metades esquerdas do Foreiro.

AdM – Ora exactamente. A partir daí, fiquei descansado: está bem, os críticos podem dizer o que quiserem. No fundo, o que escrevem é sobre eles próprios e não sobre o que eu fiz, não há problema nenhum. O que eu fiz é apenas uma mancha de Rorschach. É um pretexto… Eles agora olham e vêem uma borboleta ou vêem uma caveira, mas o problema é deles, não é meu.

DS – Há pouco falávamos que em Portugal… E esta é uma temática que nós, enfim, discutimos muitas vezes… A de que Portugal é um país em que o Fantástico, nas suas mais variadas vertentes, não medra… Haverá várias circunstâncias para que isso aconteça, mas, por outro lado, tenho intuído… E este é um raciocínio que tenho formulado algumas vezes… Até que ponto é que Portugal não é um falso país meridional? No sentido em que é muito mais atlântico e, talvez, até muito mais setentrional do que Espanha ou do que Itália…

AdM – Os países mediterrânicos, exactamente.

DS – Acho que nós… Não sei se será em virtude do modo como o país foi formado no século XII, por elites vindas do Norte da Europa, é sempre um pouco abstracto fazer estas análises, mas até que ponto é que Portugal, apesar de ser um país que ainda sofre muito por ter tido um peso inquisitorial muito forte, uma disciplina católica muito rígida, ao fim e ao cabo, não tem, também, a contradição de ser um falso país meridional? Porque não vejo aqui a mesma matriz que vejo, por exemplo, em Espanha…

AdM – Isso é profundamente verdade.

DS – Não é contrasensual que, assim sendo, e ao mesmo tempo, o Fantástico não tenha medrado? Aqui?

AdM – Isso é interessantíssimo, o que acaba de dizer, porque põe o dedo na ferida. Repare, Portugal deve ser, provavelmente, de todos os países mediterrânicos, entre aspas… Portugal é um país atlântico, mas ainda tem uns eflúvios mediterrânicos… É um país que sofreu, não podemos esquecer, duas grandes invasões… Para além das etnias que já cá existiam quando chegaram os Romanos… Os Cempsos, os Cynetes, os Sepes, os Lusis, ou Lusitanos, toda uma série de etnias que existiam por cá, de origem celta que se instalaram na Ibéria e passaram a chamar-se celtiberos, povos indo-europeus que vieram de outras zonas e se instalaram por aqui e os Lusitanos eram um deles… Os Sepes, por exemplo, tinham como símbolo a serpente… Há uma série deles, ainda há vestígios arqueológicos disso. Depois vieram os Romanos, que se instalaram aqui, mas não foram os Romanos no sentido “romano” do termo, o que é interessante… Quem se instalou aqui foi a soldadesca e foram os comerciantes, portanto o português é uma língua que vem da soldadesca e dos comerciantes, não é o latim falado pelas elites, enfim, se calhar por isso é que o português tem estes problemas todos que a gente sabe.

DS – Parte desses colonos eram romanizados e não “verdadeiros” romanos, eram etnias que foram sendo romanizadas e integradas no exército.

AdM – E que depois aprenderam a língua e ficaram a falá-la. Acontece que, em dado momento, houve aqui duas grandes invasões que, de facto, marcaram muito este país. A primeira foi a chamada invasão dos bárbaros, a partir do século V, do século VI, que entraram por aqui adentro. Os suevos…

DS – Os visigodos, os vândalos…

AdM – Os vândalos…

DS - …que, depois, foram para o Norte de África.

AdM – Sobretudo, os suevos, de origem germânica, que ficaram com toda aquela zona do Norte, o actual Minho, digamos assim, a região a Norte do Douro, a Galiza… E, a seguir, os visigodos, os “godos do oeste”, que expulsaram os suevos… Na verdade não expulsaram os suevos, eles acabaram por ser assimilados e desapareceram, ficando aqui apenas os visigodos que eram germânicos, o que é extremamente interessante. A gente lê o «Eurico, o Presbítero» do Alexandre Herculano e os nomes são de origem germano-goda… Aliás, todos os estudos que tive de fazer, durante muitos anos, para escrever aquele romance do qual já falámos, lendo e estudando, por exemplo, documentos do século X, da zona portucalense, percebe-se que os nomes são todos germano-godos. Os nomes de Maria, José, João, Joaquim, são nomes que começam a aparecer a partir do século XII, ou a reaparecer, porque são nomes bíblicos. João é um nome bíblico, Joaquim é um nome bíblico… Antes disso, não. Os nomes no «Eurico, o Presbítero», por exemplo, como Roderico, Ranimiro, Hermengarda ou Teodemiro são nomes nitidamente germânicos, ou germano-godos. Há uma componente germânica muito forte, como digo, ou nórdica, mas, depois, logo a seguir, no século VIII, em 711, vieram os árabes. Não eram propriamente árabes, mas povos numa situação islâmico-árabe, melhor dito. Eram todos povos do Norte de África, mas que traziam a tradição árabe, uma tradição islâmico-árabe, que eram, como eu costumo dizer, a civilização da cisterna… A sul do Tejo, realmente, não existem fontes. É fascinante olhar para o mapa das fontes termais de Portugal, porque a norte do Tejo há fontes que nunca mais acabam. É no Luso, é no Vimeiro, no Buçaco, no Vidago, no Gerês, Monção, Chaves, Pedras Salgadas, enfim… No sul do país há em Monchique, em Castelo de Vide e…

DS – E pouco mais.

AdM – E pouco mais. Há três ou quatro fontes. Quer dizer… Os árabes… Chamemos-lhes árabes, agora, para abreviar…

DS – Para efeito de simplificação.

AdM – Exacto. Portanto, os árabes instalaram aqui na zona aquilo que eu chamo de civilização ou, melhor, a cultura da cisterna. Como não tinham fontes, tinham de escavar poços e armazenar água em cisternas. Ao Norte, isso não era preciso, porque havia fontes que nunca mais acabavam. Eis portanto duas culturas, a cultura da fonte e a cultura da cisterna. A cultura da fonte é nórdica, a cultura das valquírias, do ouro do Reno, dos Nibelungos, do País da Névoa… Repare até que no Minho, e em Trás-os-Montes, chove com muita frequência, o Porto é um sítio de nevoeiro… Aquilo é nórdico. Depois, vamos aqui para o Sul e temos a cultura da cisterna, do Norte de África. As casas algarvias são pintadas de branco e com terraços… Aliás, no meu filme «O Princípio da Sabedoria», eu fiz de propósito uma panorâmica sobre aquela vila algarvia onde decorre a acção do filme… As pessoas não darão por isso, porque estão concentradas no filme, mas aquela vila parece uma aldeia árabe do Norte de África, com as casinhas brancas e com os terraços, tudo aquilo tem um ar árabe. Há essa contradição, que estava a apontar há pouco, e muito bem… Aqui o Fantástico não medra porque oscila numa zona conflituante entre o hipotético fantástico que poderia existir, de origem nórdica, visigótica, portanto, e, depois, o outro fantástico que não chega a existir, que é o das Mil e Uma Noites, o das mouras encantadas, que não chega a ser um fantástico no sentido anglo-saxónico do termo. Os anglo-saxões não conhecem as mouras encantadas. E as mouras encantadas, geralmente, estão nos poços: encantam os incautos camponeses, que vão buscar água aos poços e ouvem umas vozes, como as das sereias, que lhes dizem “olha, vem aqui amanhã, ao meio-dia em ponto, que encontrarás um tesouro”. Faz parte do folclore, não é? E, no dia seguinte, ao meio-dia em ponto, o incauto camponês desce ao poço e a moura encantada atira-se a ele e enfeitiça-o… Há várias lendas associadas, como a das ghoules, espécie de vampiros-fêmeas da tradição pré-islâmica que sorvem os espíritos dos incautos que se apaixonam por elas, e por aí fora. Mas esta ideia da moura encantada não passou para o folclore anglo-saxónico, digamos assim. Por outro lado, nós não absorvemos completamente, pelo lado visigótico, a ideia dos Nibelungos, do País da Névoa, que é um gótico nitidamente típico da Europa Central… E estamos aqui numa zona que se tornou ambígua e essa ambiguidade acentuou-se, porquê? Por culpa da Igreja Católica, porque ainda houve uma fase, no princípio da nacionalidade, com o D. Afonso Henriques, que era templário, com D. Afonso II e D. Afonso III, com o próprio D. Dinis, que teve conflitos com a Santa Sé… O nosso país foi excomungado várias vezes… Com a rainha Santa Isabel, que era uma herética… O mestre dela era o Arnaldo de Vilanova, como prova aquela famosa carta que ela escreveu ao irmão, Jaime II de Aragão, na qual se refere a Arnaldo chamando-lhe «meu bom mestre», e em que ela fala na expectativa de uma próxima visita dele a Portugal… Mas não se sabe se veio ou não… Há quem especule sobre isso, se ele terá vindo ou não a Portugal… Esse Arnaldo de Vilanova, talvez catalão, talvez aragonês como Isabel, era alquimista e astrólogo e os seus livros foram considerados heréticos e queimados na praça pública… A rainha Santa Isabel fazia parte da família daqueles imperadores… Descendia de Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico, neto de Frederico Barba-Ruiva, que tiveram grandes conflitos com o papa…

DS – Exactamente.

AdM – Esses imperadores que insultavam os papas de todas as maneiras e feitios e que eram excomungados várias vezes, portanto a Isabel de Aragão descende de uma família de excomungados. O D. Dinis, também, e o pai…

DS – O D. Afonso III, também. Foi excomungado várias vezes.

AdM – Também. Depois, o D. Dinis é que lá compôs a situação política, porque lhe convinha estar mais ou menos bem com a Santa Sé, por causa dos reinos de Castela, de Aragão, aqueles reinos que se viravam uns contra os outros, e o D. Dinis manteve aí um equilíbrio, nisso ele foi genial… E, realmente, a Igreja católica, aqui, era de um catolicismo especial, como no caso da Isabel de Aragão, do D. Dinis, do próprio culto do Espírito Santo, que vem do Joaquim de Fiore, mas que é uma tradição popular… Vamos lá a ver: o culto do Espírito Santo não é, exactamente, aquilo que as pessoas dizem, tem uma raiz pagã. Isso sempre foi muito forte em Portugal. Aliás, quem explica isso muito bem é o Moisés Espírito Santo nos seus livros sobre as origens populares da religião, do cristianismo português. E eu, como fiz a minha tese com ele, como sabe, tive muitas oportunidades de falar com ele e de ler os livros dele, acho que, realmente, é verdade: Portugal é um país pagão. Oficialmente, não é, é católico. Oitenta e sete por cento dos portugueses são católicos, são as estatísticas oficiais… É tudo mentira, mas, pronto, isso é outra história, porque eles contabilizam os baptizados… E estes são cerca de noventa por cento… Depois, é ao contrário: noventa por cento desses baptizados desbaptizam-se ao longo da vida. Mas, quer dizer, essa matriz católica que, a pouco e pouco, se foi infiltrando… Vemos isso por todo o país, nas aldeias, nas festas populares, nas ermidas que foram adaptadas de santuários pagãos, por exemplo à deusa lusitana Ataegina, que a Igreja católica transformou em ermidas à Nossa Senhora de Qualquer Coisa… O D. Dinis teve de fazer acordos com a própria Santa Sé, por razões políticas e os descendentes dele, os reis seguintes, a mesma coisa, foram fazendo acordos… Aquela história que toda a gente sabe, a dos templários, a de que ele não correu com eles, mas fingiu respeitar a decisão do papa… Portanto, encerrou a Ordem do Templo, mas não completou a decisão. Isto é, todos os bens do Templo, ele não os entregou à Santa Sé: ficou com eles, guardados. Isso até foi muito mal visto pelo Dante, por ter obedecido ao Papa e acabado com os templários. O Dante morreu antes de ter visto a fundação da Ordem de Cristo, é interessante. Ele escreveu a «Divina Comédia» e morreu pouco depois, logo não assistiu ao truque do D. Dinis. Por que é que Dante o criticava? Há uma passagem em que ele o critica duramente, porque D. Dinis se apropriou dos bens dos templários, chamando-lhe «avarento», um dos grandes avarentos do seu tempo… embora o coloque no Paraiso. Claro que o D. Dinis sabia que se os entregasse à Santa Sé ficaria sem eles… Ele apropriou-se dos bens já com a mira de os devolver a uma nova ordem, que era a Ordem de Cristo, continuadora da Ordem do Templo, e foi isso que ele fez. Ora bem… Isto é só para dizer que, entretanto, meteu-se cá a Igreja católica e ela, como sabemos, até nos nossos artigos falamos sobre isso, é contra tudo o que contém esoterismo, sobrenaturalidades mágicas, porque implicam deformações. Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança e nós vemos que no maravilhoso medieval há anões, sereias, fadas, grifos, unicórnios, figuras fabulosas, mesmo com forma humana, que não são criadas à imagem de Deus, portanto há aí uma distorção. E a distorção, realmente, é a irreverência, é a blasfémia. A Igreja nunca viu isso com bons olhos e a partir do momento em que, passado pouco tempo, a seguir ao D. Manuel I, veio o D. João III e trouxe a Inquisição, a nossa queda disparou… Porque nós, na fase ascendente, ainda conseguimos fazer os Descobrimentos, foi a fase em que, aqui, árabes e judeus confraternizavam, e, portanto, a ciência árabe e a ciência judaica… Os árabes tinham uma ciência extraordinária, toda a alquimia árabe desaguou aqui… Nós não podemos esquecer que quando lemos livros ingleses e franceses sobre alquimia, que dizem que “ah, a alquimia entrou na Europa em mil-cento e carqueja”, eles esquecem que existe uma coisa chamada Península Ibérica que também faz parte da Europa. No “território portugalense”, que era assim que se dizia na altura, já os treze famosos preceitos herméticos do Hermes Trismegisto eram conhecidos no século VIII. E, no entanto, só são conhecidos em França e em Inglaterra a partir do século XII e é a isso que as histórias se referem. Há um desconhecimento… E nós como temos tendência para ler livros franceses, ingleses, americanos, livros da cultura da Europa Central, esquecemos a nossa própria cultura e, no século VIII ou no século IX, a nossa própria cultura era muito mais avançada do que, por exemplo, a da corte de Carlos Magno, o grande imperador… O Carlos Magno era uma anedota, a corte dele era de uma ridicularia, comparada com a alta cultura do al-Andalus, aqui na Península, a civilização islâmico-árabe… Eram cabanas e casebres comparados com os palácios muçulmanos de Córdova, e, mesmo aqui, os do Algarve.

DS- Basta ir a Granada, por exemplo.

AdM – Sim, Granada, Sevilha, além de Córdova… Em Portugal, agora, já não existem restos, mas todo o Algarve… e Alentejo… Odemira… Silves, Alcácer, Beja… Até Setúbal, até Lisboa… A quantidade… Por exemplo, quem define isso muito bem é o Adalberto Alves naqueles seus livros «O Meu Coração É Árabe», «As Sandálias do Mestre», «Portugal e o Islão Iniciático»… A poesia e a arte que se faziam aqui na zona que hoje é Portugal eram de uma qualidade extraordinária. Esses fulanos já tinham, comparando com a corte de Carlos Magno, um luxo… Um luxo das Mil e Uma Noites… O luxo de Carlos Magno, coitadinho, era o dos casebres… Para os franceses, ingleses, alemães, etc., aquilo era o máximo, esquecendo que havia aqui uma cultura… Nessa época, já aqui na zona da península, a biblioteca do emir Abd-ar-Rahman III (mais tarde califa de Córdova), tinha quatrocentos mil volumes. Pode imaginar o que era uma biblioteca com quatrocentos mil volumes manuscritos? Existiu aqui. O Carlos Magno se tivesse, para aí, doze ou treze…

DS – A maior parte da nobreza não sabia ler.

AdM – Não sabia ler.

DS – Nem era função dela.

AdM – Guerreavam-se. Eram guerreiros.

DS – A função deles era fazer a guerra.

AdM – Saber ler era para os monges e para uns poucos — muito poucos — eruditos…                                                              

DS – Claro.

AdM – Portanto, até aos Descobrimentos nós ainda conseguimos ser um país realmente evolutivo. A partir da expulsão de árabes e judeus, no reinado de D. Manuel I, cujas culturas tinham feito os Descobrimentos… A partir da Inquisição… Bom, a partir daí o país acabou. A sensação que eu tenho… É como nós temos vindo a escrever nos nossos artigos: essas raízes desapareceram e ficámos sem nada. Depois, o que é que fomos buscar? Fomos buscar os restos da Europa Central. Os livros franceses, ingleses, alemães… No tempo do Marquês de Pombal eram os livros alemães… Ele foi casado com uma austríaca e também viveu na corte…

DS – De Viena.

AdM – De Viena. E até há historiadores da época que se queixam de que se chegava à corte de D. José I e só se ouvia falar alemão e não se ouvia falar português. Seja como for, fosse alemã, fosse francesa, fosse inglesa, a cultura passou a ser importada a partir da Europa Central e nós esquecemos as nossas raízes mais profundas, as verdadeiras, que eram as raízes islamo-árabes e visigóticas. E que eram extremamente interessantes. A pouco e pouco, com a Igreja, sobretudo a partir do reinado de D. João III, em seguida o Absolutismo… Quando chegou o Iluminismo, cá está!... O Iluminismo do século XVIII era todo da Europa Central: era o dos filósofos alemães e franceses, sobretudo, que se instalou cá, e a mentalidade portuguesa foi formatada por essa cultura da Europa Central que, realmente, não tem nada a ver connosco. Nós tivemos uma cultura sui generis que se tivesse conseguido medrar tínhamos, provavelmente, um Fantástico extremamente interessante. Eu não faço ideia de qual seria. Já viu o que era um Fantástico reunir as mouras encantadas com as valquírias, com o ouro do Reno e os Jinns das cisternas? A gente lê «As Mil e Uma Noites» e fica fascinada. Não esqueçamos que «As Mil e Uma Noites» contam histórias compiladas no século IX! Reflectem uma realidade que também tínhamos aqui na península e que não se compara com a realidade dos restantes medievalismos europeus, das gentes que não se lavavam, que cheiravam mal… Aqui havia uma preocupação de higiene quase obsessiva, até porque o Alcorão diz que temos de nos lavar cinco vezes por dia. Essa ideia de que na Idade Média era tudo uma porcaria e ninguém se lavava… Ela é bastante verdade, realmente, sobretudo a partir do século XII, mas nos tempos em que os árabes andaram por aqui, durante a civilização islamo-árabe e a visigótica, havia uma certa preocupação com a higiene, até porque era de ordem religiosa. Perdeu-se, como é evidente. São estas perdas todas que fazem com que nós, hoje, não tenhamos um Fantástico em Portugal. No fundo, o que é o Fantástico? É uma descoberta. Nós quando enveredamos pela literatura fantástica, pelo cinema fantástico, no fundo estamos a enveredar por um campo desconhecido. É o chamado “fascínio da descoberta”. É um mundo de maravilha, cá está o tal maravilhoso medieval, que se tornou Fantástico, e é essa descoberta do indescobrível, a descoberta do infilmável, a descoberta do indizível ou do invisível, que, realmente… É um interstício. São as tais assimptotas que se vão aproximando e nós estamos sempre entre elas. O criador de Fantástico, no fundo, não está preocupado com as curvas, em si. Essas já estão definidas matematicamente. Essas já foram referenciadas, já têm uma fórmula, já estão definidas por uma equação. O que ele quer é o que está entre elas. É aquilo que ainda não tem fórmula matemática. E é isto que eu quero explorar. Só posso explorá-lo através da imaginação, do visionarismo, da intuição e toda uma série de ferramentas de captação da “coisa”, entre aspas, que não são reconhecidas pela ciência. A ciência não reconhece o visionarismo. Pode reconhecer em termos clínicos, não é? “O visionário, coitado, sofre desta e daquela patologia” e classificam a patologia. Isso não me interessa: interessa-me é o visionarismo autêntico de um visionário, de um místico, no sentido de ver para além… É o tal interstício entre as duas assimptotas. É isso que eu quero explorar.

DS – No que diz respeito à capacidade de… É preciso haver sempre um equilíbrio… O ouro e a prata… O ouro é a imaginação, as ideias que temos, a prata é o lado mais lunar de meter as mãos à obra, porque uma coisa não existe sem a outra. E no que diz respeito a esse lado mais lunar, chamemos-lhe isso, ao ver os filmes do António, é extraordinário constatar que possuem uma superioridade técnica surpreendente. Não só no que concerne aos meios de produção e ao modo como são usados para criar certos efeitos, como no que concerne à apresentação de alguns modos de narrar que estavam muitíssimo à frente do seu tempo. Coisas que, hoje em dia, estão a ser exploradas em títulos de vanguarda. É extraordinário, por exemplo, «A Promessa» que tem aquele final com cores carregadas… Em «Os Emissários de Khalôm», estou a lembrar-me, aquele anúncio sobre…

AdM – A bolha. «Esteja em férias em plena guerra nuclear.»

DS – Tudo isso são coisas que vieram a ser exploradas por outros realizadores e entendidas nas obras desses realizadores como sendo algo absolutamente visionário. O facto de o António ter feito tudo isso antes é revelador de uma vontade de desbravamento, de uma argúcia…

AdM – São os tais interstícios…

DS - …absolutamente extraordinária. O experimentalismo nos seus filmes e a direcção de actores são sempre fabulosos… Num filme do António, os actores representam sempre todos muito bem. Fale-me um pouco de como, ao longo da sua carreira, é que este lado lunar do domínio da técnica e do experimentalismo… Vamos a ver… Eu não acho que o experimentalismo nos filmes do António esteja ao serviço da colmatação de falhas que poderiam ser impossíveis de transpor, por culpa de sermos um país com pouca tradição de cinema e não poder fazer-se coisas tão arrojadas como no cinema norte-americano ou no inglês, mas o seu experimentalismo, lá está!, não vai por aqui. É um experimentalismo verdadeiramente artístico. Há uma vontade artística de experimentar coisas novas, de mostrar coisas novas. É como se o experimentalismo técnico dos seus filmes servisse, não a falta de meios, mas antes, e com muito mais luz, a voz da obra. Que veicula a voz da obra. Porque o experimentalismo de «A Promessa» é muito diferente do experimentalismo de «Os Emissários de Khalôm», por exemplo, ou de «O Princípio da Sabedoria». Ou seja, é um lado técnico de magia, de magia do efeito, que está ao serviço da própria obra, da própria voz da obra. E é assim que ele faz sentido.

AdM – Eu também acho que sim, que isso é verdade. Ainda bem que me diz isso, porque me faz ver as coisas em retrospectiva, de ver com outra clareza as coisas que fiz. Mas de facto era isso. Havia, por um lado, evidentemente, a ideia de colmatar as deficiências que sempre existiram em Portugal, em relação à técnica do cinema. Técnica, no sentido mais lato, enfim, mais vulgar, porque nós aqui não temos os meios que Hollywood sempre teve. Mesmo antes de haver os computadores e as tecnologias informáticas e cibernéticas que existem hoje, lá já existiam empresas que faziam efeitos especiais muito sofisticados. De efeitos mecânicos, de efeitos com maquetes, muito bem feitos, que nós aqui não tínhamos e, por isso, precisávamos de inventar determinado tipo de substitutos. Os meus colegas cineastas não se preocupavam com isso, não pensavam nisso, porque o cinema deles não é um cinema “com efeitos”, entre aspas.

DS – É um cinema de “plano fixo”.

AdM – É. É um cinema normal, de filmar o que lá está e pronto… Tudo bem. Mas o cinema normal a mim nunca me serviu e eu sempre quis filmar o infilmável ou filmar o invisível. E, portanto, para além da preocupação de colmatar as deficiências que existiam, havia outra que é a de um perfeccionsimo estético e isso é verdade. Isso também se deve, talvez, a um defeito… Não é bem um defeito, é o facto de a minha formação ser de arquitectura… Mas não podemos esquecer que o facto de eu ter ido para arquitectura foi também uma consequência. O ter feito arquitectura não é causa de eu, depois, ter uma certa estética nos filmes. A arquitectura, por sua vez, é uma consequência, porque eu, desde muito novo, desde miúdo com oito ou nove anos de idade, já escrevia histórias, inventava histórias e gostava muito de as ilustrar, portanto fazia histórias aos quadradinhos com bonecos para ilustrar, por isso aquela ideia de as imagens se sucederem umas às outras, terem uma certa sequência e, depois, a história ser contada assim, já fazia nessas idades e até as mostrava aos meus colegas de escola que achavam graça a isso. Depois vinha a professora dizer “ai, o Macedo tem tanto jeitinho para fazer estas histórias engraçadas” e tal… Portanto, quando fui para arquitectura, aliás mais pressionado por razões económicas, porque, no fundo, eu queria ter ido para Letras… Queria ser escritor, mas ir para Letras era muito caro e não pôde ser e acabei por ir para arquitectura. E ainda bem, porque a arquitectura revelou-me montes de visualidades novas, sobretudo os mundos tridimensionais, coisa que a pintura nunca me daria. Uma pintura ou uma escultura, uma pessoa vê-as de fora: a arquitectura tem de ver-se por dentro. Vive-se por dentro. E quando concebe a arquitectura, o arquitecto tem de conceber os vários espaços e os desníveis, não é?, e a colocação dos vários blocos no espaço. Tem de visualizar a três dimensões e, por fim, a quatro dimensões. Porque as pessoas deslocam-se dentro desse espaço, portanto há uma quadridimensionalidade, há um espaço-tempo, que está em jogo. E isso é extraordinário para o cinema. Depois, percebi que o curso de arquitectura era extremamente útil para o cinema. Sempre foi muito importante para mim que nos meus filmes e em qualquer coisa que eu fizesse em cinema tivesse um lado estético, uma certa beleza “estética”, entre aspas, passe o chavão. Desde os meus primeiros filmes, mesmo os documentários, o «Verão Coincidente», a «Nicotiana», sempre me preocupou o enquadramento… A mim sempre me fez muita confusão… O mistério do enquadramento… Repare, o que é o enquadramento? Eu tenho uma câmara, fotográfica ou de filmar, e vou fotografar ou filmar um aspecto do universo… Pode ser este em que estamos agora, aqui, não é? Pode ser na rua, pode ser na praia, em qualquer sítio, na floresta… Eu pego na câmara, aponto e depois fico perplexo, porque digo assim “espera lá, o universo é infinito à minha volta”. E o que é que eu vou fotografar? Tenho de fazer uma escolha. Posso fotografar um bocadinho para a esquerda ou um bocadinho para a direita, um bocadinho para cima ou um bocadinho para baixo, ou recuar um pouco, ou aproximar-me… A partir deste momento, a perplexidade instala-se: “o que é que eu vou fazer”? E por que é eu escolho fotografar assim, um bocadinho mais para a esquerda, em vez de fotografar assado, um bocadinho mais para a direita? Eu tenho de fazer uma escolha: pior ainda, eu tenho de fazer uma renúncia. Como já dizia o Sartre: «Escolher é renunciar». Portanto, quando escolho, escolho um bocadinho do universo, porque o enquadramento é limitado, e estou a renunciar ao melhor, o melhor que o universo tem e que é tudo o resto. Escolher aquele bocadinho é um problema. Daí o apuramento do enquadramento. A preocupação do enquadramento. É a primeira fase, digamos assim, da busca da estética. Em segundo lugar, uma vez escolhido o enquadramento, o que é que eu meto lá dentro? O que meto lá dentro pode ter formas, pode ter sombras, pode ter contrastes, pode ter claro-escuro, pode ter cores, pode ter determinado tipo de movimentos, mais: esses movimentos podem ser intrínsecos ao enquadramento… Podem andar lá pessoas que se movimentam ou automóveis ou outros objectos ou pode ser o próprio enquadramento que se move: coisa que não existe no teatro. Eu no teatro estou sentado na plateia e estou quieto: eu no cinema pego na câmara e desloco-me com ela. Isto é, o espectador que está sentado na plateia do cinema em dado momento desloca-se com a própria câmara e isso cria uma quadridimensionalidade, cria uma outra responsabilidade. E é essa busca de uma estética, por um lado, e daquilo que se mete, por outro, que implica, na minha cabeça, e sempre implicou, uma grande preocupação de um rigor muito grande: isto é, que o espectador se sentisse, não direi confortável, mas que se sentisse de tal maneira agarrado por aquilo que está a ver e que não rejeitasse. Que agarrasse. E daí uma das coisas primeiras, que está naquilo que disse, que é a direcção de actores.

DS – Sempre fantástica nos seus filmes.

AdM – Dei-me logo conta muito cedo, desde muito jovem. Ia ao cinema ver um filme estrangeiro, americano, inglês, francês, óptimo… Via um filme português… Uma pessoa arrepiava-se toda, quer dizer, ficava com os cabelos todos em pé, porque aqueles fulanos falavam como no Teatro D. Maria II. Jesus, como é que eu vou resolver isto? Eu, no cinema, não posso fazer isto. Nos meus dois primeiros documentários, esse problema não se pôs, porque havia uma locução, como havia nos documentários, de forma geral, mas no cinema de fundo, com actores a representar… Era um cabo dos trabalhos. Eu era cineclubista nos anos cinquenta… Comecei a filmar nos anos sessenta… O «Verão Coincidente» que é o meu primeiro filme é de 1962, o «Domingo à Tarde», a minha primeira longa-metragem é de 1964 para 1965. O filme saiu em 1965, mas foi filmado entre 1964 e 1965… Eu ia ver filmes portugueses nos anos cinquenta e mal um actor abria a boa e dizia “bom dia”, ou qualquer outra coisa aparentemente banal, a plateia partia-se a rir à gargalhada, porque a inflexão, pretensamente séria, resultava ridícula…

DS – Ainda por cima, já eram aqueles actores… Que vieram pós-Vasco Santana…

AdM – É que esses actores, os antigos, tinham graça naturalmente. Quando o Vasco Santana dizia “bom dia”, as pessoas riam-se porque ele tinha muita graça a dizê-lo. Quando um “actor a sério” dizia “bom dia”, com aquele ar de sério, as pessoas partiam-se a rir, porque aquilo tinha um repique atroz. Eu dizia: “estou tramado, como é que eu vou descalçar esta bota?” Entretanto, reparei que no documentarismo português os espectadores não se riam. Por exemplo, num documentário sobre uma fábrica de conservas ouvia-se a voz do locutor a dizer, em português: “esta é uma fábrica de conservas, o peixe entra por aqui, é descascado ali, as latas entram por ali, depois deita-se-lhe o azeite em cima, patati, patatá” e as pessoas não se riam, não reagiam mal. Engoliam aquilo, a locução, perfeitamente. E eu disse: “espera lá, isto é curioso, porque é um fenómeno”. Afinal, a língua portuguesa não era horrível, nem o espectador português não gostava de ouvir falar português no cinema: era mentira, porque quando vão ver documentários, fossem turísticos a descreverem as belezas do Algarve, ou fossem industriais, a descreverem o fabrico das conservas de atum, as pessoas não se riem, acham a língua portuguesa normal. Acham normal o locutor a descrever-lhes aquilo… Portanto, havia aqui alguma coisa que não estava bem. São os actores que representam mal… Mas depois comecei a ver com atenção e percebi que, se eu fingisse que não ouvia o que eles diziam numa dessas fitas portuguesas normais, dessas muito más, os movimentos e comportamentos dos actores não estavam nem mal, nem bem, mas quando abriam a boca… Santa Bárbara nos valha… E eu disse: “espera lá, que eu já descobri o truque”… Já sei o que é que eu vou fazer. Quando fiz o meu primeiro filme de longa-metragem, que foi o «Domingo à Tarde», disse: “bom, se eu começo o filme com esta gente a falar normalmente, a plateia parte-se a rir à gargalhada”… Não aguenta ouvir diálogos em português. Mas se eu puser uma locução, as pessoas engolem. O «Domingo à Tarde» começa no hospital com o médico, ouve-se a voz dele, tipo locução, a dizer “nesse dia, estava muito atormentado, porque a doente de não-sei-quê, na enfermaria, morreu e estava grávida”, portanto uma história pungente contada em locução. E a locução é do Rui de Carvalho, que tem uma boa voz, a locução é excelente. E os dez primeiros minutos do filme são em locução. Não se pode repetir isto em todos os filmes, como é evidente, mas, para o meu primeiro filme, eu disse “se, no meu primeiro filme, mal os gajos abrem a boca todos se começam a rir à gargalhada estou arrumado”, portanto tive de inventar um truque. E o truque foi esse: como ninguém se ria nos documentários sobre o atum e nos documentários sobre o Algarve, que tinham um locutor, o meu filme começaria com um locutor. Então, as primeiras cenas do filme, uns bons dez minutos, são com o médico, que é o Rui de Carvalho, a explicar o seu dia-a-dia, os problemas, vai descrevendo-nos o que está a acontecer. Mais a assistente, a Isabel Ruth, a falar com ele… Mas não se ouve o que eles dizem. Ouvem-se os sons próprios da cena, mas não as palavras. Repare, tive esse cuidado. Nas cenas que estão a ser filmadas com a locução do Rui de Carvalho, a explicar o que está a acontecer e os problemas que ele teve nesse dia, etc., ouvem-se os sons todos: eles mexem nos papéis, ouvem-se os papéis; mexem no telefone, ouve-se o telefone… Mas quando abrem a boca, não se ouve nada. Só fala a locução do Rui de Carvalho. E o espectador engole aquilo, perfeitamente. Quando se passa para a consulta, que é das primeiras cenas do filme, ainda se ouve a locução mas já se começa a ouvir, em fundo, o vozear de uma consulta, de uma sala de espera, e só quando a locução se começa a diluir e a calar é que se ouvem as primeiras vozes dos actores. Acho que até é uma enfermeira que diz ao médico “está aqui uma pessoa à sua espera”, mas di-lo com um ar muito… “de pantufas”… que começa a surgir por baixo da locução. Há um cruzamento entre o fim da locução e o princípio do diálogo.

(Continua.)