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sábado, 29 de junho de 2019

Um cronista americano


A nova adaptação do romance It, de Stephen King, estreada em 2017, evidencia o quanto este escritor americano deve a Lovecraft na tentativa de edificação de um universo negro coeso; em principal, na série de livros The Dark Tower, espécie de mapa e breviário desse mundo autoral, o arranjo taxonómico dos agentes do mal e do bem parece feito propositadamente num plano cósmico que remete para concepções lovecraftianas — especialmente na natureza extraterrestre daqueles que, poder-se-ia pensar, seriam demónios

O monstro de It, já o sabíamos do romance, é uma entidade espacial — extraterrestre, por conseguinte —, mas comporta-se tal qual um demónio das mais tradicionais concepções demoníacas assacadas da teologia: passando ao lado do facto de que não é fácil conjectuar sobre como se comportaria um extraterrestre, na literatura de bruxaria é prerrogativa dos demónios 1) conhecer as propriedades ocultas (pensamentos dos homens, inclusive) porque os seres espirituais vêem a essência das coisas, assim como 2) usar essas propriedades ocultas de modo físico, mas ilusório, de maneira a ludibriar vítimas humanas e 3) por fim consumir as almas ou, pelo menos, manietá-las. Em suma, estes são os poderes da Coisa, completa representação daquilo em que consiste um demónio, até na revelação final de que é feito de luz (éter). Com efeito, estas espécies de criaturas feitas de luz morta — deadlights, no original — são a criação mais lovecraftiana de King, pois quem olhar para essa luz ou morre ou enlouquece, um tropo desenvolvido por Lovecraft para reforçar a ininteligibilidade dos seus antagonistas extraterrestres, cujas formas arquitectadas para além da compreensão humana enlouqueciam quem as contemplava.

Porém, King não é Lovecraft: não só lhe falta uma certa petulância aristocrática que Lovecraft injectava nos seus textos e que funcionava muito bem (King é, em oposição, uma voz totalmente popular, da rua, e muito mais sentimental), como as criaturas que inventa não descolam do plano terreno — estão demasiado interessadas nas personagens humanas para que o sentimento de altivez alienígena se faça sentir. São, em suma, demónios secularizados.

Nesse aspecto, quase todos os vilões preternaturais da cultura popular dos ultimos setenta ou oitenta anos são demónios ou entidades espirituais secularizadas, postas em cenários "científicos" ou materialistas. Assim, o modo de derrotá-los é, de igual modo, secular, plebeu: em It, para regressar ao tema, o grupo de miúdos vence o vilão, obrigando-o a hibernar forçadamente, somente por ultrapassar o medo que sentem por ele. No romance a estratégia encontra-se melhor explanada e até tem um nome (o Ritual de Chüd), cifrando-se numa espécie de braço de ferro mental entre crianças e criatura, que deixa esgotadas as primeiras. No fundo é a ideia secular que "o poder está dentro de nós", atomização no indivíduo de uma ajuda espiritual tradicional. Aqui não há necessidade de introduzir conhecimento (grimórios, objectos) na luta contra o mal: basta "ter coragem". Nem o sinal da cruz pica o ponto, mesmo como mera coordenada cultural do mundo em específico no qual a acção decorre. Neste ponto, a ficção de Lovecraft conceptualiza com mais realismo a natureza humana e a natureza alienígena das suas entidades: estas não estão interessadas em dialogar connosco e nós não temos nenhuma capacidade intrínseca de derrotá-las. Lovecraft é um escritor ateu e as suas criaturas também o são! O mais perto que King andou deste conceito foi no conto The Mist, em que um rombo inter-dimensional deixa entrar na nossa esfera de existência uma macrofauna que levará em pouco tempo o ser humano à extinção (a adaptação para cinema deste conto é muito eficaz, mas o final, embora poderoso, já não comporta o niilismo lovecraftiano original).

No fundo, a minha crítica é dirigida à incoerência interna dos elementos semânticos: sou incapaz de ver na Coisa uma entidade cósmica com milhões de milhões de anos de existência. Só vejo um demónio cristão secularizado colocado num contexto secularizado de luta contra o Mal. No livro, o astigmatismo é ainda pior, porque esse contém outras entidades cósmicas, do Bem, que dão uma mãozinha para derrotar o monstro.

King brilha com grande luz é na construção de ambientes e personagens: poucas vezes se encontram personagens tão bem caracterizadas e com personalidades tão bem buriladas. O paradoxo de King é que, apesar da sua grande imaginação e capacidade inventiva, ele é bem capaz de ser um melhor escritor pós-realista, uma espécie de Faulkner para o século XXI, ponha-se nestes termos, que um escritor do sobrenatural. Este lado mais "literário" de King costuma vir à tona nos contos e nos textos de menor dimensão, como no intrigante The Girl Who Loved Tom Gordon ou nas emocionantes colectâneas Different Seasons ou Hearts in Atlantis, que contém retratos notáveis de uma América profunda, secreta e lírica. Não é à toa que dois dos melhores grandes filmes das últimas décadas sobre a América (Stand by Me de Rob Reiner e The Shawshank Redemption de Frank Darabont) tenham sido adaptações de dois contos de King de Different Seasons. O lugar de King nas letras americanas já estará garantido, precisamente, pelo seu talento de cronista do seu tempo, de intérprete do Espírito americano.

domingo, 10 de março de 2019

Lista de Compras da Revista LOUD! na FNAC Chiado



O vídeo que gravei na FNAC Chiado para a rubrica Lista de Compras da Revista LOUD! já está disponível no perfil de YouTube dessa publicação: nesta entrevista poderão descobrir quais foram as minhas recomendações musicais e literárias para essa sessão.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Autógrafos na Feira do Livro de Lisboa


Fãs e amigos, informo que o horário da minha passagem pela Feira do Livro de Lisboa é o seguinte: próximo sábado, dia 10, das 16H00 às 19H00, junto aos pavilhões da Europress (B9 e B11), distribuidora da Kingpin Books. Não estarei na Feira em outra altura. Apareçam.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Sobre os livros de bolso em Portugal

À aproximação da Feira do Livro de Lisboa, algumas observações de relance sobre um assunto que ainda me estupefacta e para o qual ainda não encontrei uma resposta satisfatória (e acreditem que tenho pensado muitíssimo nisto, desde há anos): porque é que em Portugal não há um mercado saudável de livros de bolso?

A natureza do livro de bolso é ser um livro barato, que possa ser lido durante o dia-a-dia: nos transportes públicos enquanto se vai para o trabalho; nos bancos de jardim, à hora-de-almoço; e, evidentemente, em casa. É um livro feito a pensar em quem, de facto, deseja o conteúdo e não a forma; embora se possa privilegiar uma edição de bolso anotada ou comentada por especialistas, se for caso disso - facto que, em regra, não encarece em nada a publicação. Com efeito, são as sumptuosas tiragens dos livros de bolso - na ordem das dezenas ou das centenas de milhares de exemplares impressos - que baixam totalmente os custos de produção; os quais decrescem pelo facto de que, como consistem em livros de pequeno formato - octvavos ou quartos, por exemplo (e o quarto não é assim tão pequeno quanto isso) -, não precisam de encadernações robustas (que são caras). Basta-lhes uma simples capa de cartolina, colada na lombada. Olhando por cima do ombro para o passado recente lembro-me de algumas editoras que fizeram um magnífico trabalho na edição de livros de bolso, mas quando olho em frente, para o presente, não vejo um labor idêntico (em número de editoras e em número de edições). O livro comum posto à venda em Portugal é um livro de médio formato, com valores de produção médios ou baixos e com um preço de venda ao público que se aproxima, na maioria das vezes, dos vinte e cinco euros. O preço relaciona-se directamente com a tiragem (em teoria..): um título do qual se imprime mil ou mil e quinhentas cópias - três mil, vá lá - não pode ter o mesmo preço de venda ao público que um título do qual se imprima cem mil ou trezentos mil exemplares. Isso é perfeitamente razoável, como é evidente. O que já não é tão evidente assim é a razão pela qual, no tal passado recente (vinte, trinta anos atrás), se podia encontrar uma deslumbrante oferta de livros de bolso nas livrarias.
Havia leitores para eles?
Se sim, onde estão?
Nunca existiram e editava-se por carolice - ou (colocando a questão de uma forma mais nobre) por espírito de missão? Seria proveitoso descobrir respostas expressivas para estas interrogações.

Por outro lado, o livro de bolso, infelizmente, nunca se libertou - em Portugal, pelo menos - da aura de coisa ordinária - de res rasca - que o impregna; pois, nas mentes da maioria dos indivíduos, se algo custa barato é porque não tem qualidade. Isto não é totalmente axiomático, pois cada objecto é orbitado por uma espécie de preço invisível, perspirado à sua aproximação e que alarma quando se está a pedir demasiado ou pouquíssimo: em ambos os casos, desconfia-se. O bom consumidor é, pois, uma criatura do médio, nunca dos extremos. Nessa óptica, se o tal livro comum descrito acima (de preço de capa de vinte e cinco euros) fosse apresentado a custar sete seria, imediatamente, recebido com sobrolho sublevado: sete euros será um preço natural, acessível ou convidativo, mas não é um preço, digamos, "prestigiante" (leiam, entre outros, Torsten Veblen ou Joseph Schumpeter para aprofundar esta problemática).

As respostas são esquivas, é certo. Mas também é certo que a cultura do livro de bolso, seja lá porque razão for, nunca medrou entre nós. Entre outros livros, resta-me comprar nos alfarrabistas essas pequenas e portáteis preciosidades editadas em antanho; e que, por vezes, até são as únicas edições que existem de determinados títulos que, entretanto, nunca mais foram eleitos para reedição - o que é lamentável.


sábado, 23 de abril de 2016

Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor


Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor ou dia do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare - que, pese as teorias das conspirações pugnadas por indivíduos que, na maioria, não têm a mais ténue noção sobre o que é escrever, realmente existiu e foi o autor das famosas peças teatrais que lhe são justamente atribuídas.
Mas sobre a formulação da efeméride supracitada inicialmente, há um interessante erro de percepção; pois se a primeira parte do enunciado consiste em «Dia Mundial do Livro», porque não se redigiu deste modo a segunda?: «e dos Direitos do Escritor». É que autores há de vários tipos, mas só uma determinada estirpe desse conjunto escreve livros: os escritores. Infelizmente, não falta e não faltará quem seja tão escritor quanto uma cadeira se possa denominar ainda de árvore, mas isso são outros quinhentos.
Gostava de esclarecer que na minha relação com os livros não me considero um bibliófilo, porque, no meu livro de estilo, um bibliófilo é, sobretudo, um coleccionador que procura e adquire livros segundo exigências muito específicas: primeiras edições; encadernações de um ou outro feitio ou oficina exclusivos; somente edições diferentes do mesmo título ou apenas edições dos trabalhos de um único autor ou temática. Seja em que caso for, o labor do coleccionismo comporta-se como um percolador, que distingue particularismos restritos. A minha relação com os livros faz-se pela via do conteúdo: eu procuro o conhecimento; o que me interessa num livro não é o livro como objecto, mas a erudição. Assim, gostava de evocar aqui a ideia de que o Dia Mundial do Livro deverá ser de todos os livros, sem quaisquer tipos de cegueira ditados por decíduas modas, cartilhas de fátuos fazedores-de-opiniões ou constrangimentos mercantilistas - desde o livro de bolso ao incunábulo. E escolham com sabedoria, porque não há tempo para ler-se tudo.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Inspector Literário


My literary inspector scrutinizing two new chapbooks I bought today - World Cat Day (in Europe, at least). Hard readers pet better.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Duas recomendações históricas para Janeiro


No final deste mês serão editados dois livros de história que aguardo com entusiasmo: Final Solution: The Fate of the Jews 1933-1949 de David Cesarani (falecido no passado mês de Outubro) e The Holy Roman Empire: A Thousand Years of Europe's History de Peter H. Wilson.

O primeiro consiste numa observação sobre a Solução Final Para a Questão Judaica, segundo a perspectiva "funcionalista", por oposição à "intencionalista" (eu considero a perspectiva "intencionalista" muitíssimo mais realista; no limite, consideraria igualmente credível uma perspectiva "mista", mas de pendor "intencionalista"), e aparenta ser um dos títulos mais robustos escritos sob esse ponto de vista. Vale a pena lembrar que foi Cesarani que compôs outro retrato de Adolf Eichmann, descrevendo-o num novo estudo como sendo um doutrinado agente anti-semita, totalmente comprometido com a ideologia nacional-socialista, do que cifrar-se apenas como o calculista e ambicioso burocrata sem ideologia descrito por Hanna Arendt.

O segundo é um vasto volume que escalpeliza o longo e convoluto período do Sacro Império Romano-Germânico, desde Carlos Magno até Napoleão, ao mesmo tempo que examina os efeitos dessa entidade política no desenho do mundo contemporâneo.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Grandes livros de 2015


Este ano, reformulei a lógica de recomendações literárias de final de ano: em vez de escolher os "melhores" livros de 2015, escolhi os livros que, independentemente de serem os melhores do ano ou não -- sempre um critério subjectivo e não-livre de influências conjunturais --, me despertaram mais a atenção, pela sua originalidade e pertinência editorial; além disso -- e, neste aspecto, foi, de facto, uma orientação rigorosa --, somente escolhi livros escritos ou traduzidos em português (todos, claro, de não-ficção). No final de 2016, o(s) critério(s) será (serão) outro(s), certamente, mas este ano o resultado é o seguinte (sem qualquer ordem de preferência):

1) Animais e Companhia na História de Portugal (coord. Isabel Drumond Braga e Paulo Drumond Braga). Círculo de Leitores -- um livro espectacular que, de modo completíssimo, examina o papel e a presença dos animais, em múltiplos campos, ao longo da história de Portugal. Um volume essencial para o historiador e para quem gosta de animais.

2) Casas das Elites de Lisboa: Objectos, interiores e vivências - 1750-1830, de Carlos Franco. Scribe, Produções Culturais, Lda. -- análise profunda de uma vinheta temporal e social, partindo do estudo das vivências das elites lisboetas para chegar a uma tessitura mais densa, inserida no contexto nacional.

3) Casas com Escritos: Uma História da Habitação em Lisboa, de Margarida Acciaiuoli. Editorial Bizâncio -- em conjunto com a leitura do livro citado anteriormente, o panorama apresentado por esta obra ganha ainda mais fôlego. De facto, os estudos da vida quotidiana lisboeta, de meados do século XVIII até à actualidade, em principal nesta perspectiva direccionada para o espaço habitacional, ficam supinamente enriquecidos com estas edições de 2015.

4) História Política da Cultura Escrita, de Diogo Ramada Curto. Verbo -- excelente conjunto de ensaios e reflexões sobre o modo como a produção intelectual foi sendo instrumentalizada -- e influenciada -- pelo(s) poder(es) político(s) ou pelos poderes que, às tantas, também fizeram (e fazem) política.

5) Uma História da Curiosidade, de Alberto Manguel. Tinta-da-China -- ensaio sobre a curiosidade é uma definição redutora para este livro delicioso que, como podem ver pela fotografia que ilustra este texto, é o preferido do meu gato -- por sinal, bastante curioso.

6) História do Corpo (dir. Jean-Jacques Courtine, Alain Corbin, Georges Vigarello). Círculo de Leitores -- obra em seis volumes, na qual o corpo humano e suas representações e objectificações ao longo das eras são estudados com apuro numa abordagem interdisciplinar.

7) Racismos: Das Cruzadas ao Século XX, de Francisco Bethencourt. Temas e Debates -- já falei sobre a edição original deste livro (em inglês) na minha lista de fim de ano de 2014 e é essa a edição que podem ver na imagem; todavia, este ano foi dada à estampa a versão portuguesa deste ensaio sobre o racismo e não posso deixar de mencioná-la, pois é um trabalho destemido e inestimável.

Boas Festas -- leiam bons livros e, sobretudo, pensem sobre o que leram e entreteçam relações entre matérias, à partida, díspares, pois a variedade deleita o pensamento.
David Soares, Dezembro 2015.


segunda-feira, 27 de julho de 2015

Vídeo de "Recordar os Esquecidos" com Fernando Pinto do Amaral e David Soares



Vídeo da sessão de Recordar os Esquecidos, que ocorreu no passado sábado, dia 25, na livraria Almedina do Atrium Saldanha, com moderação de João Morales e Fernando Pinto do Amaral e comigo como convidados. O índice de títulos abordados é o seguinte:
1) «O Barão de Lavos» de Abel Botelho (00:00);
2) «A Velhice do Padre Eterno» de Guerra Junqueiro (17:35)
3) «Justine» de Lawrence Durrell (38:52);
4) «O Caos e a Noite» de Henry de Montherlant (51:00);
5) «A Mulher Pobre» de Léon Bloy (1:01:10)
6) «Todos os Contos e Novelas» de Joaquim Paço d'Arcos (1:18:43)
7) «Poesia Completa» de Anrique Paço d'Arcos (1:28:20)
8) «Diálogos de Roma» de Francisco d'Ollanda (1:36:52)
9) «Enciclopédia dos Mortos» de Danilo Kis (1:54:45)

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Günter Grass (1927-2015)


Só agora soube da morte de Günter Grass: morreu um dos melhores escritores de sempre e uma das minhas mais ricas e queridas influências. A importância da obra de Grass na minha formação autoral foi enorme e são raros os meus livros em que não se encontra uma referência ou homenagem a passagens e personagens dos seus livros. A literatura ficou mais pobre e desinteressante: adeus, Grass. Vemo-nos, como habitual, na estante.
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PS: acabam de informar-me que hoje, 13 de Abril, também morreu o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), cujos livros admiro. Enfim, sem comentários.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Vídeo da tertúlia literária "Letras e Ideias"



Quem não foi à tertúlia literária "Letras e Ideias", agendada na programação da passada terceira edição do festival Livros a Oeste, na Lourinhã, pode ver este vídeo dessa conversa, com a minha participação, a participação de Rui Tavares e com moderação de João Morales (organizador do festival). Uma verdadeira conversa sobre letras e sobre ideias: desfrutem.

domingo, 1 de junho de 2014

Livros a Oeste 2014: muitas letras e ainda mais ideias

No 3º Festival Livros a Oeste (Lourinhã), na tertúlia literária "Letras e Ideias", comigo, Rui Tavares e João Morales (moderador). Quem não foi não sabe o que perdeu.
Para reflexão à lente dos acontecimentos políticos europeus dos últimos dias (que se debateram e sobre os quais escrevi nesta ligação e, ainda, aqui), deixo-vos com um dos conceitos que imaginei durante a conversa: a despolitização da esfera pública é, na verdade, uma politização radical por via do conformismo.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

Livros de que o meu gato gosta


Plutão, o meu gato, gosta de esconder-se nos espaços exíguos entre as prateleiras e os livros. Adora o cheiro deles e, às vezes, selecciona uns quantos, deitando-os ao chão e puxando-os das estantes com as garrinhas. Eis alguns dos livros que, até este momento, ele já escolheu e assinalou como seus preferidos, espojando-se sobre eles:

- Rats: A Year With New York’s Most Unwanted Inhabitants, de Robert Sullivan (este até o caçou – será pelo título?)

- A Perfect Red: Empire, Espionage and the Quest For the Colour of Desire, de Amy Butler Greenfield

- Sex Crimes From Renaissance to Enlightment, de William Naphy

- Stories Toto Told Me, de Frederick Rolfe (Barão Corvo)

- Don Renato, de Frederick Rolfe (Barão Corvo)

- Against the Day, de Thomas Pynchon

- Gravity’s Rainbow, de Thomas Pynchon

- História da História em Portugal, de Luís Reis Torgal, José Maria Mendes e Fernando Catroga (na imagem)


sábado, 26 de abril de 2014

Sobre eReaders #3

Tenho escrito várias vezes sobre eBooks e eReaders e orgulho-me da previdência desses textos (como o meu artigo Sobre eReaders, publicado a 18 de Agosto de 2010 e que antecipou conceitos relacionados com a não-leitura em eReaders que foram explanados a 21 de Setembro desse ano no site Technology Review do MIT).
Nesse sentido, a breve argumentação seguinte (intitulada Sobre eReaders #3) deverá ser lida na sequência dos pensamentos contidos em Sobre eReaders, Os Cangalheiros da Literatura e Sobre eReaders #2.

Discerni que existe, ainda, um factor importante a adicionar a esta problemática: uma espécie de Efeito de Halo, sob o qual se criou uma fortíssima e galopante virtualização da vida. Este sintoma (é, de facto, um sintoma) foi descoberto em 1920 pelo psicólogo norte-americano Edward Thorndike e consiste na ilusória observação de que algo que mostra ser útil em resolver um problema específico será, de igual modo, útil em resolver outros problemas que em nada se lhe relacionam. É, directamente, o inverso daquilo a que eu chamo de Estanquidade: leia-se, a incapacidade de perceber que algo que se manifesta numa determinada área é exactamente a mesma coisa que está exposta em outras áreas diferentes.
Um exemplo realista de um Efeito de Halo é achar-se que um indivíduo que demonstra ser compentente a fazer sapatos também será exemplar em fazer mesas, bifes wellington e mergulho de apneia. É, sobretudo, uma ilusão alimentada pela positiva impressão inicial que o indivíduo - ou um objecto - provoca: há uma inclinação inata para se achar que aquilo que se considera simpático, bonito ou interessante é universalmente aplicável.
Um exemplo do meu conceito de Estanquidade é a incapacidade de compreender que uma ideia aprendida numa determinada área (na disciplina de história, conceba-se) é exactamente idêntica a outra que se encontra em campos distintos (em antropologia, sociologia ou até matemática): como a mesma ideia surge incrustada em diferentes conhecimentos ela parece diferente, quando, na verdade, não é. Tanto o Efeito de Halo como a Estanquidade são alucinações: um peca por excesso forçado, a outra por restrição forçada. Ora, o fenómeno dos eReaders é algo que se inscreve numa hegemonia forçada da tecnologia digital a todas as áreas da vida.

A tecnologia digital é óptima em certos casos e, assim, sob a alucinação do Efeito de Halo, acha-se que ela será uma ferramenta magnífica para resolver todos os problemas e que é universalmente aplicável; inclusive em espaços nos quais ela, em rigor, não é precisa para nada - desnecessária e até insegura.
Faz-me lembrar o entusiasmo que os engenheiros e o público oitocentista sentiram pelos sistemas pneumáticos de transporte que, durante muitas décadas, foram laudados como o último grito da tecnologia futurística (a tónica colocada no facto de ser a tecnologia do futuro foi unânime). Desde as instalações de tubos pneumáticos criadas para transportar cartas e pequenos objectos de prédio em prédio até à projecção de sistemas mais ambiciosos que pudessem transportar pessoas e mercadorias pesadas de cidade em cidade foi um pequeno passo, mas, por motivos variados, nenhumas das redes pneumáticas de transporte imaginadas para o efeito se cristalizou no êxito almejado pelos seus criadores.
Hoje é fácil sorrir diante da ingenuidade desses pioneiros do século XIX, mas nada nos garante que a tecnologia digital venha a estar sempre connosco ou que a própria Internet não desapareça de maneira irreversível. Os livros, por seu mérito, são objectos robustos no sentido tecnológico e perfeitos no sentido de utilização. Em suma: quanto mais delicada é uma tecnologia - e mais ramificada se encontra, criadora de redes de dependência muito grandes -, mais probabilidades ela tem de não recuperar de um acidente imprevisto. Pensem na fragilidade de um órgão vital comparada com a relativa robustez dos membros: se perdermos um braço ou uma perna as probabilidades de morrermos são menores do que se o coração parar ou o fígado colapsar, porque o corpo é extremamente sensível às redes de dependência que estes órgãos criam (nem sequer falei no cérebro).

Em suma: o facto do computador ser uma máquina maravilhosa não obriga a que se transforme tudo à nossa volta num computador (desde telemóveis a automóveis) - nem tão-pouco que se computorize os livros. Quebrem a alucinação do Efeito de Halo: se não aceitam hegemonias nos campos da política ou das ideias, por que razão haveriam de aceitá-las no território da tecnologia? Se isso acontecer, poderemos como Axël, o anti-herói criado por Auguste Villiers de l'Isle-Adam, suspirar com resignada complacência: «Viver? Os nossos servos farão isso por nós.»

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Contra as vanity presses



A emergência das chamadas vanity presses no nosso mercado do livro é um fenómeno intrigante, apenas compreensível quando cotejado com a ignorância do público-leitor e dos aspirantes a escritores sobre como funciona esse mercado, mas, também, com a complacência com que a sociedade portuguesa contemporânea olha para o oportunismo e para a charlatanice – principalmente quando estas defectividades usam gravata. É uma constatação que condiz com o facto de que Portugal é o terceiro país mais corrupto da Europa Ocidental e o trigésimo terceiro país mais corrupto do mundo. (Vale a pena reflectir sobre estes rankings vergonhosos.)

Esclarecendo quem não esteja familiarizado com o tema, informo que uma vanity press é uma falsa editora literária à qual os pretendentes a escritores pagam para que esta lhes imprima os manuscritos.
Segundo a Lei de Yog, cunhada pelo autor norte-americano James D. MacDonald, «o dinheiro deve ir sempre na direcção do autor» – é uma estratégia heurística que deveria servir de detector de embustes, mas há quem esteja disposto a pagar quantias elevadas às vanity presses (às vezes milhares de euros) para que o seu manuscrito seja impresso. Recuso a designação de publicado, porque, com efeito, não existe publicação nenhuma nessa situação: por via de uma publicação, o livro tem como destinatário um público-leitor; no caso de uma impressão feita por uma vanity press, o livro tem como alvo o próprio autor e os amigos dele, porque como não existe qualquer tipo de distribuição do livro para as livrarias (ou verifica-se uma distribuição tão residual que mais vale a pena dizer que ela não existe, de todo) estes é que têm de vender (ou oferecer) os livros cuja impressão pagaram e que o autor, entretanto, guardará numa arrecadação ou numa garagem.
Como o único objectivo de uma vanity press é fazer dinheiro à custa dos sonhos ou das vaidades dos candidatos a escritores (há quem seja enganado, mas também há quem saiba muito bem ao que vai), não existe nenhum filtro que decida quais os títulos que merecem ser impressos, facto que concorre para que se crie uma bolha de títulos péssimos, sem nenhum valor literário ou até sem um grau elementar de simples entretenimento. Sintetizando: se uma aparente editora pede dinheiro a um autor para lhe publicar o livro, ela não é editora nenhuma, mas uma vanity press – o equivalente literário da sanguessuga.

Contudo, as vanity presses, em toda a sua repugnância, não existem por virtude própria: existem para explorar o nicho de mercado aberto por manuscritos de candidatos a autores recusados por editoras. Nesse imenso conjunto de obras de mérito desigual exubera o lixo literário e manuscritos verdadeiramente inqualificáveis, mas é verdade que também existe uma pequena percentagem de obras interessantes. É lamentável que, por vezes, obras dessa natureza tenham de partilhar o espaço de escritos tão revoltantes que só puderam ver a luz do dia porque alguém pagou para que eles fossem impressos.

Leitores: não comprem livros impressos por vanity presses.
Aspirantes a escritores: não paguem para que os vossos manuscritos sejam impressos.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Dez Verdades Sobre Livros


Era para ter publicado isto ontem, Dia Internacional do Livro, mas só tive oportunidade agora. Consiste em Dez Verdades Sobre Livros que, de acordo com a minha experiência, são inequívocas.

1) Não abandonem a leitura de um livro chato: ser chato não significa mau, apenas significa chato. Não é motivo para abandonar uma leitura.

2) Existem falsos artigos de marca e existe falsa literatura - tão barata (no sentido epistémico) quanto os óculos e os relógios que se vendem nas feiras (no sentido trambiqueiro). Caveat emptor.

3) Se lerem um livro por semana, lerão mais de cinquenta livros por ano. É um bom começo: não desperdicem esse tempo lendo coisas inúteis.

4) Os livros são como os medicamentos: a mistura latitudinária de leituras diferentes opera efeitos secundários imprevistos.

5) Os livros gostam de ser tratados sem cerimónias: empilhem-nos no chão, sublinhem as páginas, ponham-lhes chávenas de café em cima, deixem-nos abertos durante a noite. Porém, não dobrem as páginas: é falta de respeito.

6) Entre o eBook e a leitura existe uma intransponível intransferência.

7) A verdadeira literatura é verbal. Se não gostam de palavras, vejam apenas filmes ou séries televisivas, mas não leiam os guiões de cinema e televisão disfarçados de livros que recheiam as livrarias.

8) Leiam dicionários. Os dicionários são livros de ficção: a maioria do léxico contemporâneo foi inventada por escritores: romancistas, poetas, filósofos. Ao enriquecerem o vosso vocabulário estarão a fortalecer-se contra a literatura perfunctória de que falam os Pontos 2, 3 e 7.

9) O libertino Gustave Flaubert foi cliente de uma prostituta cujo nome de baptismo era Crucifixo: ou seja, não julguem os livros pelas capas.

10) Nunca se irá encontrar uma velha fotografia ou uma antiga carta de amor dentro de um eBook.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Próximas leituras


Algumas das minhas leituras para as próximas semanas.

 

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Sobre eReaders #2

O escritor norte-americano Nicholas Carr (The Shallows) publicou há quatro dias no seu weblog um artigo em que divulga relatórios estatísticos actualizados sobre a venda de eBooks que comprovam o declínio desse mercado: escreve Carr que «The AAP [Association of American Publishers] findings are backed up by a remarkable new Nielsen report indicating that worldwide e-book sales actually declined slightly in the first quarter from year-earlier levels — something that would have seemed inconceivable a couple of years ago» (sublinhado meu).
Os relatórios divulgados por Carr podem ser consultados aqui e aqui.

Apesar dessas ligações ainda profetizarem, desesperadamente, que 2014 será um ano espectacular para a venda de eBooks, é inegável que 2013 não está a sê-lo e que a morte definitiva desse suporte está para breve: um suporte recebido com enorme entusiasmo por editores sem escrúpulos e sem espírito que, contando com o beato deslumbramento sentido pelos tecnófilos mais tontos diante de tudo o que cheira à santidade da novidade, pensaram em produzir livros digitais sem os custos de impressão e distribuição, mas com preços de venda ao público da mesma grandeza daqueles com que são vendidos nas livrarias os livros de papel - chico-espertismo do mais abissal nível merceeiro que, felizmente, não medrou. Além disso, parece que esses chicaneiros da edição nunca pensaram (ou não quiseram pensar) que um livro disponível para venda em formato digital seria logo pirateado até à exaustão. Que lhes faça bom proveito.

É, pois, com regozijo que danço na sepultura dos eBooks, dos eReaders e de outras eStultices similares - monstros modernos que me repugnam profundamente. Aliás, há três anos que ando a cavar essa sepultura, como poderão ler nos meus artigos Sobre eReaders e Os Cangalheiros da Literatura, publicados em Agosto e Setembro de 2010, que vos convido a reler ou a descobrir: artigos que, neste momento, à luz dos supracitados relatórios de vendas, posso perfeitamente apelidar de predizentes.

Quando o tempo dá razão a um homem é sinal de que as suas ideias eram, de facto, as melhores.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

O "segredo"


Pilhas incompletas das leituras para os próximos dias (incompletas, porque ainda não recebi tudo o que estou à espera). Este é que é o "segredo" para se ser escritor: esqueçam os cursos de escrita criativa da treta e os workshops duvidosos. Quem não tiver tempo para investir na leitura, na erudição e na construção de uma boa e variada biblioteca dificilmente lá chegará. Não acreditem no lugar-comum do escritor boémio que luta com bloqueios criativos e que no último minuto pensa numa ideia genial. A verdade "glamourosa" é apenas esta: ascetismo e pestanas queimadas. Take it or leave it.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Filmes de papel

Escrever é uma arte feita de liberdade absoluta, na qual, de facto, a imaginação é o limite; mesmo assim, não falta quem se sinta confortável em adstringir-se com os rudes espartilhos veiculados nos conselhos dos cesaropapistas da "escrita criativa" (haverá outra?). Um desses ensinamentos mais tóxicos - sobretudo para principiantes - é o de que se deve "mostrar em vez de contar". Ora, "mostrar em vez de contar" é um critério pescado à escrita de ficção para cinema e televisão e não deveria ser aplicado em literatura, porque escrever um texto literário é muito diferente de escrever um argumento cinematográfico ou televisivo. E, assim, por culpa deste desastrado ensinamento, as livrarias enchem-se de falsos livros, cuja única desculpa para existirem parece ser a de que consistem em meros esboços das futuras adaptações cinematográficas e televisivas que farão deles.

O espírito neo-romano que embebe a actualidade, sobrevalorizante do mais elementar carácter utilitarista das pessoas e das artes, influencia a criação de obras literárias cada vez mais homeopáticas; ou seja, obras em que o princípio activo literário está muitíssimo diluído em água - tanto que, na maioria das vezes, é inexistente. Desapareceu, pois, o discurso indirecto; desapareceu, também, a adjectivação - desapareceu, enfim, tudo aquilo que impede a personagem X de ir ter com a personagem Y no menor número possível de páginas. Os poucos romances que ainda se apresentam como herdeiros de uma tradição verdadeiramente literária, em todas as acepções dessa designação, são desconsiderados pela crítica como sendo bizantinos, no sentido pejorativo. Mas quem sabe a sério de história não esquece que foi em Bizâncio que, a partir de finais do século III, se conservaram os modos e a cultura clássicos, em oposição ao barbarismo que medrou na metade ocidental do império romano. É uma alegoria simples de entender, até por quem não sabe ler.

E, na verdade, há muitos leitores que não sabem ler: sabem ver filmes de papel. Se lhes dessem um livro autêntico para as mãos não saberiam o que fazer com ele.